A arte entra na guerra porque ela joga com os limites da nossa sensibilidade. Não são apenas os nossos juízos e avaliações estéticos que estão em jogo, e sim nossos juízos políticos e morais, isto é, nossa cultura. A arte nos obriga a uma abertura do mundo, ela amplia nossos horizontes, tanto sensíveis quanto intelectuais, e isto é tudo que este governo mais deseja combater.
O agora ex-secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, foi demitido por pronunciamento em que anunciava o programa do governo federal para a área no ano de 2020. De um governo que, dia sim e no outro também, nega a ciência, ataca as universidades e a liberdade acadêmica, agride a imprensa, não havia qualquer razão para imaginar que, com as artes, ele agiria de modo diferente. Não se esperava, porém, que o vídeo em que o programa é apresentado provocasse medo.
Segundo o ex-secretário, a arte deve – assim mesmo, deve – estar atrelada a nossos supostos mitos fundadores: a pátria, a família, o amor a Deus. Mais ainda, a arte deve estar a serviço da luta contra o mal. Dessa arte, continuava o então esteta do planalto, surgirá uma forma estética vinculada à nossa nacionalidade pura. Basta a gente imaginar Paulinho da Viola, Cartola ou Vinícius de Morais em uma luta contra o mal para ver que a coisa toda é, do ponto de vista da arte, um completo disparate. Além do mais, só um tolo imagina que, hoje, deva-se pintar como Mestre Ataíde, esculpir como Aleijadinho, ou compor como Carlos Gomes. É preciso reconhecer, portanto, que, não tivesse essa figura poder, tudo isso seria risível.
Além do vídeo, outras ações do Secretário já chamavam a atenção: nomeação para a Fundação Palmares de indivíduo que afirmara que a escravidão havia sido benéfica, nomeação posteriormente barrada na justiça; nomeação como presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de um indivíduo que destaca, no resumo do currículo, ser “filho primogênito de Fulana”, ex-diretora de uma escola de Belas Artes; nomeação como presidente da Funarte de sujeito que afirma serem os Beatles obra do demônio; a anulação de nomeação, para cargo a ser exercido na Casa de Rui Barbosa, de um dos mais brilhantes cientistas políticos do país, pois ele teria ideias execráveis sobre o presidente.
Goebbels
Vejamos as ideias de Roberto Alvim: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo – ou então não será nada”. E compare essas ideias com as de Goebbels, o responsável pela política cultural do nazismo: “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante – ou então não será nada”. Afinal, quem tem ideias execráveis?
O plágio aqui é o de menos! O próprio secretário, com a rapidez das redes sociais, defendeu-se afirmando uma “coincidência retórica”. Afirma que jamais citaria Goebbels. Mas não nega, ao contrário afirma, que compartilha dos mesmos ideais estéticos. Imagino que, assim como Hitler e Goebbels, ele avalie toda a arte moderna e contemporânea como arte degenerada. E arte degenerada era, por exemplo, Pablo Picasso, Piet Mondrian, Paul Klee, Marc Chagall.
A demissão do secretário em nada altera a avaliação que se tem sobre o governo, qual seja, um governo integralmente abjeto. Destarte, pouco antes do anúncio em canal da Secretaria Especial de Cultura, o agora ex-secretário, junto com o infame Ministro da Educação, participou de live com o Presidente da República, em que foi apresentado como a verdadeira cultura do Brasil. E lá está tudo: uma arte conservadora, que dignifique o brasileiro, que apresente a verdade, a verdadeira história do Brasil, que salve o Brasil da sua suposta decadência moral.
Olavista
Roberto Alvim não era, portanto, figura exótica ao governo. Muito pelo contrário. Talvez mais do que nenhum outro ele tornou evidente a verdadeira natureza deste governo, e por isso caiu. Mas suas ideias são compartilhadas, de modo claro, não apenas com Presidente, mas com o obscuro ministro das Relações Exteriores e o infame ministro da Educação, ou seja, com a ala olavista deste governo cujo projeto é, sem tirar nem pôr, totalitário.
Ninguém tem mais o direito de ser ingênuo. Não há escolha difícil aqui. Não havia escolha difícil antes. No vídeo em que aparecem juntos o presidente e o seu secretário de Cultura, o presidente insiste em que é preciso combater uma arte que se destinaria a uma minoria, combater um modo de representar a história que não encontraria, segundo ele, sustentação na realidade. Com isso, em especial no que diz respeito à representação da história, o governo se reafirma como aqueles que negam os crimes cometidos durante a ditadura de 1964, que negam toda a violência que marcou a história do Brasil, violência dirigida contra negros e índios. Afinal, para eles, trabalhar o nosso passado, fazer a crítica do nosso passado é, nas palavras do presidente, “coisa de cachorro que gosta de osso”, coisa de gente de esquerda que melhor faria se tivesse se deixado assassinar durante a ditadura, gente que recusa a naturalização da violência e da pobreza, que insiste em afirmar que este país, por mais que se tenha feito no sentido contrário, ainda está assentado na exclusão.
Desde a campanha, Bolsonaro colocou como seu objetivo exterminar aqueles que fizeram oposição à ditadura, ou seja, exterminar o Brasil democrático. A esquerda fez a sua crítica, e não há entre nós movimento de esquerda sério, consistente, que não faça a crítica do enfrentamento da ditadura pela via da luta armada.
Democracia
Desde 1979, com a publicação de “Democracia como valor universal”1, de Carlos Nelson Coutinho, a esquerda tem, na democracia, sua orientação. Foi esta esquerda, democrática, que mais efetivamente trabalhou para o final da ditadura. A determinação da centralidade da questão democrática para o pensamento e a prática da esquerda foi um movimento lento, mas consistente, de modo que a resistência que havia em abraçar a democracia é hoje residual.
Se ainda há uma retórica revolucionária e mesmo um imaginário revolucionário, ambos são negados cada vez mais pela prática parlamentar da negociação e do compromisso, pela participação em eleições, nas quais precisamos conversar e convencer pessoas que pensam diferente, sem que tenhamos de abrir mãos de nossos ideais.
Os militares que chegaram ao poder junto com Bolsonaro, porém, jamais aceitaram a democracia. Sempre se consideram injustiçados por não terem sua suposta moralidade cívica reconhecida. São figuras movidas pelo ressentimento, que se querem apresentar como conservadores dos “verdadeiros” valores da brasilidade.
Sob a bandeira do conservadorismo, contudo, o que eles desejam – e agem para que tal desejo se realize – é a destruição de nossa democracia, o extermínio dos opositores do governo, o estreitamento de nossos horizontes de expectativas quanto à construção de uma país mais justo, mais igual, com mais liberdade, mais democrático. A eles se somaram uma elite econômica irresponsável, indiferente, quando não contrária à democracia, lideranças evangélicas inescrupulosas e, para dizer com todas as letras, criminosas, mas também milhões de brasileiro desesperançados, cuja vida é de tal modo massacrada e ameaçada no cotidiano, que a democracia, para estes, fica em segundo plano. Pois não é evidente, para quem tem a sobrevivência sob constante ameaça, que é a democracia, a política, e não o autoritarismo, que deve orientar a vida em comum.
Cultura
A arte entra nesta guerra porque ela joga com os limites da nossa sensibilidade. Não são apenas os nossos juízos e avaliações estéticos que estão em jogo, e sim nossos juízos políticos e morais, isto é, nossa cultura. Diferente do que pensa um badalado físico-economista, pessoa que pontifica com frequência nas páginas da grande imprensa, não se trata de questão privada. A arte nos obriga a uma abertura do mundo, ela amplia nossos horizontes, tanto sensíveis quanto intelectuais, e isto é tudo que este governo mais deseja combater. Foi justamente o potencial político desta abertura que Hannah Arendt viu na Crítica do Juízo de Kant. A arte apresenta uma ampliação do possível, e uma compreensão do contingente, sem abrir mão das conquistas duradouras da civilização. À ideia de uma arte revolucionária, transformadora, que apresenta uma nova linguagem, à imagem de uma revolução no modo de pensar, que nos mostra o limite de nosso ponto de vista, corresponde, no plano da política, a reforma e progresso das instituições. Dizendo de modo claro: ou a arte desafia limites ou ela é nada.
Há todo um mundo da arte e da cultura que, felizmente, passa ao largo do Estado. Não, porém, de um estado autoritário, bem entendido. Mas a pesquisa em arte e cultura, a experimentação de novas linguagens, em especial de linguagens a que o mercado é algo refratário, elas precisam do apoio indireto, não direcionado, não instrumental. Porque só assim, quando ela é livre para, inclusive, definir de modo arriscado os seus próprios critérios, ela é capaz de combater o único mal que ela efetivamente combate: o obscurantismo, a ignorância. A política cultural importante é justamente aquela que consegue apresentar, para a maioria, aquilo que a minoria, os artistas, estão experimentando. Não é simples, há tensão, há incompreensão, mas faz parte do jogo, faz parte da vida.
Nossa cultura está mal, é verdade. Não, porém, a nossa cultura artística, e sim a nossa cultura política. Afinal, foi dela que saíram os monstros que estão no poder e que ela não foi capaz de repelir. Mas a arte irá resistir a eles. A arte, a ciência, a intelectualidade, enfim, nós que produzimos cultura, não vamos ceder um milímetro de terreno a esta monstruosidade que se chama governo Bolsonaro. As forças políticas com compromisso democrático precisam reagir e enfrentar o governo, construindo o instrumento para o seu afastamento. Rodrigo Maia e David Alcolumbre precisam ter claro que o impeachment se faz necessário. E nós precisamos ir às ruas. Precisamos nos manifestar, fazer espetáculos, ganhar a cena e o público. Afinal, este governo que está aí não tem apenas cheiro de coisa velha, de naftalina, de farda que estava guardada no armário. Este governo exala Zylikon B.
Daniel Tourinho Peres é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia.
1 Coutinho, Carlos Nelson. “A democracia como valor universal”. “Encontros com a Civilização Brasileira, São Paulo, 1979. A reflexão de Carlos Nelson centrou-se na relação entre socialismo e democracia. Mais recentemente quem tem se dedicado, entre nós, a fazer a crítica da relação entre esquerda e democracia, é Ruy Fausto. Ver em especial Fausto, Ruy. A esquerda difícil, Perspectiva, São Paulo, 2007.