Helena Iono – Direto de Buenos Aires
O fato de que em poucas semanas os acontecimentos na Argentina se concentraram ao redor da vice-presidenta Cristina Kirchner – a reativação da antiga Causa Vialidade (obras públicas em Santa Cruz), a imediata tentativa de magnicídio, e a seguida condenação a 6 anos e inabilitação eterna a cargos públicos, não é fruto da casualidade. É expressão concreta de que o chamado lawfare contra o peronismo-kirchnerismo, superou a fase do envenenamento midiático, saltando à farsa da execução judicial condenatória que, se falida, aciona o golpe de Estado violento.
Que Estado? O Estado mafioso e paralelo, apoiado pelo poder financeiro concentrado, como bem definido por Cristina no seu discurso. Abre-se a olhos vistos um processo golpista contra o Estado democrático sustentado pelas forças políticas do governo da Frente de Todos. Além da integridade da vice-presidenta, estão novamente em risco os direitos humanos de todo cidadão argentino, após 39 anos da derrota da ditadura.
“Esta não é uma condenação pelas leis da Constituição, ou pelas leis administrativas ou pelo código penal. Esta é uma condenação que tem origem num sistema penal que eu, quase ingenuamente, em 2 de dezembro de 2019 chamei de lawfare, e ultimamente, também resgatei o conceito de Partido Judicial; talvez devido a uma espécie de formação juvenil, de leitora, teórica e analista. Mas, isso não é nem lawfare, nem Partido Judicial. Isto é Estado paralelo e máfia. Máfia judicial. Trata-se da confirmação de um sistema para-estatal que decide sobre a vida, a liberdade e o patrimônio do conjunto dos argentinos e que está por fora dos resultados eleitorais.” (CFK)
Novo cenário político na Argentina: Cristina Kirchner interpela o Poder
O discurso da vice-presidenta voltou-se contra o acusador. Contundente como a cobrança de um pênalti. Cristina pôs, como militante, advogada e arquiteta comunicacional de massas, a máfia judicial e midiática dirigida pelo Clarin no banco dos réus. Mostrou publicamente todos os chats de um grupo de Telegram revelados por um sistema de filtrações (semelhante a WikilLeaks, Panamá Papers ou Intercept no Brasil) que comprovam ocultamentos sobre o financiamento irregular de uma viagem (de juízes, empresários da mídia hegemônica, ex-agentes do serviço secreto, funcionários ministeriais (PR0) da cidade de Buenos Aires), para fins incógnitos, a uma mansão no Lago Escondido (Bariloche), de propriedade do magnata inglês, Joe Lewis. Enfim, neste caso, sim, uma verdadeira associação ilícita. Tal poder de fato protesta através da grande mídia, contra a “invasão de privacidade”, a “espionagem ilegal”, quando não duvidaram em utilizar esses instrumentos contra dirigentes peronistas ou kirchneristas.
No Brasil, as revelações da Intercept destaparam a verdadeira cara da Lava Jato (conspiração entre o ex-juiz Moro e o procurador Dallagnol) o que desencadeou o processo de crise e revisão no STF. O reconhecimento judicial da inocência de Lula, após 580 dias de injusta prisão e a sua recolocação através do voto popular na presidência da República, se dão no bojo de uma crise interna da burguesia agro-indústrial nacional, de redução do mercado interno, diante do ataque neoliberal das corporações financeiras, e do esvaziamento do Estado social com o bolsonarismo e as privatizações. A própria mídia golpista (Rede Globo) sem apoio, recuou. Uma expressão contundente dessa crise de poder e revisão do Judiciário, é a firmeza do presidente do TSE, Alexandre de Morais, contra o golpismo institucional dos bolsonaristas.
Na Argentina, atualmente sob um governo democrático, cogita-se que as filtrações sobre o escândalo no Lago Escondido, podem ser também produto da não coesão mafiosa do poder econômico concentrado e monolítico dirigido por Hector Magneto (Clarin); tudo em vésperas da disputa interna na oposição frente às eleições de 2023. O certo é que na tentativa de bloquear o peronismo, condenando Cristina Kirchner, o rei está desnudo. Porém, está intacto porque controla e vive em simbiose com uma Corte Suprema de 4 juízes; dois dos quais colocados por decreto de Macri; um deles, é bivalente e auto-consagrado presidente da Corte e do Conselho da Magistratura. Vale rever a entrevista à Folha de São Paulo, onde Cristina deixa bem claro o que há que fazer: não só ampliar o Conselho, mas acabar com as corporações judiciais, submetendo os magistrados ao voto popular, sem comprometer a independência de poderes. Citou o bom exemplo do poder Judiciário consolidado por Evo Moráles na Bolívia.
Momento e discurso histórico
Mas, a condenação da Cristina Kirchner, sobretudo o impedimento perene a exercer qualquer cargo público é dos mais graves fatos políticos dos últimos tempos, que põe em alerta e movimento o peronismo. Como dito por Axel Kicillof: “Trata-se de uma proscrição do peronismo, através da pessoa mais representativa. A condenação a Cristina é o funeral da credibilidade na Justiça”. Em 1955, o peronismo foi proscrito com Peron banido por 18 anos. Naquela época foi sob bombardeio militar da Casa Rosada. Agora, trata-se de uma junta judicial-midiática. Um Estado paralelo que “quer Cristina morta ou condenada”.
Apesar de que a renuncia de Cristina Kirchner à candidatura presidencial em 2023 foi inesperada, deixando uma sensação de orfandade, sobretudo ao eleitorado e à militância kirchnerista, a totalidade do seu discurso é de combate e de chamado à reorganização das forças políticas do peronismo. O processo judicial não está encerrado. Espera-se uma reação do peronismo. Por enquanto, Cristina Kirchner, renuncia à candidatura, mas não à política. “Me condenam porque condenam um modelo de desenvolvimento econômico”. Proscrevem um modelo de país, de justiça social da década kirchnerista. O seu enfoque não são as eleições, mas a urgência em sanar um problema estrutural de dependência à economia neoliberal gestida por uma máfia. Sem isso, qualquer solução eleitoral em 2023, do oficialismo ou da oposição macrista estará afundada num poço anti-democrático de exclusão social .
De fato, o ataque central a Hector Magnetto (Clarin) e ao juiz Ercolini como figuras centrais do poder midiático-judicial do chamado Estado paralelo, deu a pauta e a ordem do dia para o governo da Frente de Todos e os movimentos sociais. Não foi a palavra final, mas um ultimatum a que se os funcionários que não funcionam não se movem, se a Reforma Judicial ampliando o Conselho da Magistratura não anda no Congresso, se a restituição da Lei dos Meios de Comunicação não avança, a democracia estará efetivamente acabada. Não apenas o governo peronista, mas a democracia.
Rechaços e reações
Após o escândalo das conversações dos implicados (juízes e empresários) revelando a estratégia para esconder a fonte de financiamento da viagem ao Lago Escondido, o presidente Alberto Fernandez ordenou em rede nacional de rádio e TV a investigação sobre tal associação ilícita, Judicial-Midiática, e garantiu a devida cassação dos envolvidos. Imediatamente, o Ministro da Justiça anunciou a séria de medidas atinentes. Leia.
Bloco de deputados e senadores FdT rechaçaram a condenação e a proscrição de cargos públicos da vice-presidenta, Cristina Kirchner. Exigem audiência com o presidente Rosatti da Corte Suprema para que o Conselho da Magistratura se mova. Fala-se em criação de uma Comissão Bicameral de investigação que convoque os implicados no caso do Lago Escondido a depor frente ao Parlamento.
O Conselho de Direção da Faculdade de Filosofia e Letras, Professores e alunos de Direito da UBA, exigem julgamento acadêmico do juiz Ercolini (responsável por várias causas sem provas contra o kirchnerismo), juiz e professor de direito na universidade; vários pronunciamentos pela sua expulsão por inabilidade ética e moral.
A reação internacional se alarga, começando pelo alerta do Papa Francisco e da Junta Promotora do Comitê Pan-americano de Juízas e Juízes pelos Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana.
No próximo dia 19 no Centro Cultural Kirchner se realiza a reunião do Grupo de Puebla, que já lançou um comunicado rechaçando a sentença judicial que “abre um novo capítulo da guerra jurídica (lawfare) que tem se desenvolvido na região contra as lideranças progressistas como Lula, Evo e Correa”. A solidariedade com Cristina é latino-americana e mundial com pronunciamentos de Lula, López Obrador, Luis Arce, Evo Moráles, Xiomara Castro , Miguel Diaz-Canel, Nicolás Maduro, José Mujica e tantos outros. Prepara-se também o terreno para levar a causa contra Cristina Kirchner à Corte Internacional de Justiça. No mesmo dia 19 finalmente a Frente de Todos, os movimentos sociais, La Câmpora, Centrais Sindicais (CTAs e CGT), se dirigirão à reunião do Grupo de Puebla em apoio à vice-presidenta Cristina Kirchner, que dará o discurso final.
Perspectivas
Um grande desafio para o próximo ano restante até as eleições de 2023 para o governo atual da Frente de Todos: acelerar e aprofundar o compromisso de 2019, num contexto mundial, “convulsionado, mas cheio de possibilidades para uma real mudança dos últimos séculos”, como bem caracterizado por Pepe Escobar na TV247, onde o Sul global tende a desalinhar-se com o mundo unipolar e concentrado das corporações financeiras, fortalecendo o BRICS, ao lado da China/Russia.
O vitorioso retorno de Lula na presidência do gigante Brasil golpeia o dito lawfare regional, que, reage dando um trágico salto no Peru contra Castillo, eleito democraticamente, e ameaçando a vizinha Argentina. Como dito no início, o lawfare neste país entrou numa fase violenta, acionando o Estado mafioso judicial-midiático paralelo. As Instituições democráticas, o futuro imediato dos direitos da cidadania à vida, à palavra, à alegria, à organização e à manifestação estão em risco. Abriu-se um novo cenário que não é apenas eleitoral: o peronismo está convocado por Cristina Kirchner a reorganizar-se com decisão política, interpelando o Poder concentrado, assumindo a comunicação midiática e a mobilização popular permanente.