Helena Iono, correspondente em Buenos Aires
O decreto presidencial de intervenção na empresa agroexportadora Vicentin, rumo à sua expropriação, declarando-a de utilidade pública, mediante próxima aprovação de projeto de lei no Congresso, tem um grande impacto socioeconômico na Argentina, herdeira de uma impagável dívida-externa deixada pelo governo anterior de Macri e empenhada no duro combate à pandemia do covid-19.
A Vicentin, cujo proprietário é Gustavo Nardelli e sócios, é um gigantesco conglomerado produtor-exportador de grãos, oleaginosas e farinha, de 30 mil toneladas de alimentos/dia, baseado em mais de 2.600 produtores de cereais, em quebra já nos finais de 2019, com uma dívida de 1,5 bilhões de dólares, dos quais 430 milhões com entidades financeiras internacionais. A empresa endividada com os seus credores privados, fornecedores e 5000 trabalhadores ameaçados de desemprego, é acusada de numerosas fraudes. Entre elas, um enorme financiamento da campanha presidencial de Macri e a aquisição de créditos de 262 milhões de dólares do Banco público La Nación, concedidos pelo ex-diretor, Javier González Fraga, na era Macri (2015-2019). A parcela final dos empréstimos (100 milhões de dólares) foi autorizada em fins de novembro de 2019, após a derrota eleitoral de Macri, e recebida dias antes de terminar o seu mandato. Após o recebimento, Vicentin se declarou em quebra e abriu o concurso aos credores. Que manobra! Típica de usurpadores do patrimônio público. Claudio Lozano, o atual diretor do Banco La Nación, logo ao início do governo de Alberto Fernandez, já suspeitou de tais manobras, bem como outras liberações de empréstimos multimilionários a agro-exportadoras por Macri; o mesmo que suspendeu a retenção do Estado sobre as arrecadações de exportação das oligarquias rurais. Já é bem conhecida a política neoliberal de governos como o do Brasil de Guedes-Bolsonaro que cortam gastos sociais do Estado, pensões, saúde e educação, para enriquecer a oligarquia financeira.
A Vicentin é além de tudo acusada de fuga de capitais. Há várias investigações em andamento. Seja na área judicial, através do promotor Javier Gerardo Pollicita, como no legislativo; o senador Oscar Parrilli (Frente de Todos), junto a uma Comissão de Assuntos Institucionais propõe criar uma Comissão Especial de Investigação bicameral no Congresso para investigar eventuais irregularidades nas relações entre Vicentin e o Banco La Nación. Outras, levantadas por legisladores na província de Santa Fé, onde se situa a Vicentin, que averiguam ativos não declarados no exterior, em off-shores no Paraguai, Uruguai e Panamá, que fogem do alcance e do controle dos credores e da justiça argentina. Leia.
Intervenção e expropriação
“Os argentinos devem estar contentes pois caminhamos rumo a uma soberania alimentar”. “Intervenção e expropriação”. “Se não nos metemos, estamos favorecendo a concentração desse mercado”. “O único caminho que temos é o da lei da expropriação”. “A bomba explodiu há tempo, quando a Vicentin disse que não podia pagar os produtores, que era impossível cumprir com os compromissos financeiros e abriu o concurso de credores”. “Nós a queremos resgatar porque há somente sete cerealistas na Argentina e quatro são estrangeiras”. “O mundo em que o tema alimentar depois da pandemia se torna central, é importante”. (Alberto Fernandez)
A intervenção imediata na Vicentin já se deu e está sustentada por bases legais. Porém, a expropriação depende ainda da lei no Parlamento. Esta é mais que justificada, pois quando se fala em resgate não implica render-se ao desejo do empresário para que o Estado seja acionista, o sócio que coloca o dinheiro e não decide nada e é cúmplice do saqueio. O resgate se refere ao Banco La Nación que não pode suportar uma dívida não paga, como a da Vicentin, que ameaça a sua falência. O Banco La Nación é o maior credor em relação aos outros bancos; emprestou 300 milhões de dólares e a AFIP (Receita Federal) 110 milhões de dólares. Portanto a maior perda é a do Estado e do povo, se não há expropriação. Ela é necessária porque ao não reembolsar os empréstimos, o Estado recupera através de instalações produtivas e dos ativos que vão a um Fundo fiduciário da YPF-Agro de um setor estratégico para a soberania alimentar, fundamental para enfrentar a pandemia. Atualmente a Vicentin engloba instalações de cereais e oleaginosas, produção de biodiesel, uma fábrica têxtil, de suco concentrado e de vinho, e exportação de mel; e compõe o mercado da carne e de alimentos.
O plano governamental é poder controlar a companhia colocando em campo a YPF-Agro, que pertence à YPF e atualmente vende combustíveis e intercambia grãos, fertilizantes, agroquímicos e insumos agrícolas. A YPF-Agro seria a chamada “empresa testigo” (testemunha). Leia. Desta forma, a intenção é o Estado controlar e impedir a concentração e o monopólio estrangeiro (Cargil, Dreyfus), participar na planificação do mercado agrícola e de alimentos (incluindo o controle de preços), na geração de dólares comerciais do complexo agroexportador. Atualmente, na Argentina, 10 agroexportadores controlam 90% da venda internacional de grãos; a maioria são multinacionais estrangeiras ou sociedades entre empresas locais e capital externo.
Não se pode esquecer que a medida salva também 5.000 postos de trabalho, sobretudo em tempos de pandemia; diga-se de passagem que várias comissões internas de trabalhadores de fábricas de azeite e desmontadores da Província de Santa Fé, afetados pela falência da Vicentin, assinam manifestos em apoio à expropriação do governo. Este é um passo audaz do governo na meta da Fome Zero, da Soberania alimentar, que poderá estimular e coordenar a pequena e média agricultura familiar. O MST e o MPA junto aos projetos do PAA criados nos governos do PT são os principais protagonistas da luta pela soberania alimentar no Brasil. Isso é o que permite ao MST, hoje, doar solidariedade e 15 toneladas de alimentos aos pobres vitimados pelo Covid-19.
Como era de se esperar, corporações empresariais se dividem em prós e contras. A UIA (União Industrial Argentina) e ex-presidentes da Federação Agrária apoiam a expropriação de Vicentin. Enquanto isso, a Associação Empresária Argentina (AEA) e o Foro de Convergência Empresarial rechaçam . A maioria destes coincidem com as forças políticas da oposição macrista, seus porta-vozes midiáticos, e a militância dos panelaços anti-quarentena, anti-salário dos políticos; são os que pouco se importam das mortes e usam a pandemia como guerra ideológica; os desestabilizadores do governo, que não podiam deixar de berrar contra a expropriação, sem saber sequer o que significa: “todos somos Vicentin!”; “é uma supressão dos direitos de propriedade!”, “não queremos uma Venezuela!”, “é uma chavinização da economia!”, “não queremos comunismo!”, “isso é um delito de lesa humanidade!”.
Mas, o governo de Alberto Fernandez e Cristina Kirchner devem caminhar com toda razão a passos largos para que a dívida externa, a economia arrasada e a pandemia não ceifem mais vidas. Por isso, o processo contra o vírus continental do lawfare toma corpo na Argentina. Vem à tona a descoberta de um amplo esquema de espionagem ilegal dirigido por Macri, através de agentes incrustrados na AFI (Agência Federal de Inteligência), não somente contra Cristina Kirchner, mas um amplo arco de funcionários e dirigentes políticos, empresários, jornalistas, opositores e até aliados do próprio governo macrista e familiares, prisioneiros políticos (em pleno cárcere). Esse é um outro capítulo, que compõe o esquema tenebroso do chamado lawfare, das garras da ditadura judicial-midiática, que impôs a dominação econômica golpista do poder concentrado das finanças internacionais contra a soberania e os direitos humanos dos povos como na Argentina de Macri e no Brasil de Bolsonaro.
A decisão do governo sobre Vicentin causou surpresa neste contexto regional adverso, com governos vizinhos como os do Brasil, Chile, Uruguai, Bolívia e Equador, na ausência de uma UNASUR que sequer se reúne pela pandemia. Dado que o papel do Estado passa a ter protagonismo como antídoto ao covid-19 no mundo, a oligarquia financeira e empresarial golpista, vê por traz do caso Vicentin, o fantasma das nacionalizações de Eva e Perón, dos anos 1945-50 (Junta Nacional dos Grãos, Controle do comércio exterior, Ferrovias, Fábrica nacional de aviões, etc.). A mídia hegemônica, vocifera contra Cristina Kirchner que, frente ao juiz de Lomas e Zamora (que lhe apresentou as provas de espionagem ilegal do macrismo contra ela), apontou contra Clarin e a Corte Suprema de Justiça. Nesse caldo político, o anúncio da expropriação de Vicentin, gera nos opositores o pânico do retorno do kirchnerismo que nacionalizou a YPF (Petróleo), Correio Argentino, Aerolíneas Argentinas, AySA (Águas e Esgotos), etc.
A pandemia do covid-19 faz saltar toda a podridão e os problemas do sistema vigente. Não basta mais denunciá-los. Urgem soluções. E elas se entrelaçam. Por isso, na Argentina, os prazos e as agendas se aceleram entre votações pela Lei de expropriação de Vicentin, Lei emergencial para impostos às grandes fortunas e a Reforma do Sistema Judiciário. E é preciso prever que não será fácil, pois a oposição ainda tem um poder judicial-midiático quase intacto.