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terça-feira, 8 outubro, 2024

ACULPA É DOS AFEGÃOS?

Por Martin Ortiz*/Le Monde Diplomatique

Ao contrário de Biden, militares, diplomatas e acadêmicos americanos sabem e reconhecem que a culpa pelas cenas de horror em Cabul não pode ser atribuída aos próprios afegãos.

As imagens de Cabul, capital do Afeganistão, difundidas nos últimos dias causaram espanto no mundo e rapidamente suscitaram questionamentos sobre a atuação dos EUA e seus aliados no país centro-asiático durante os quase 20 anos de ocupação. O presidente norte-americano, empurrado para a defensiva, tratou de desvencilhar-se da tragédia, transferindo ao governo afegão e às suas forças armadas a responsabilidade pelas cenas armagedônicas que tanto chocaram a opinião pública mundial.

Para além da contradição entre o discurso frio de Biden e o fato de os EUA terem sido os fiadores e patrocinadores diretos de quem o líder americano agora acusa de serem os responsáveis, o posicionamento do político democrata contrasta fortemente com os balanços e as reflexões sinceras que militares, diplomatas e acadêmicos dos EUA têm feito acerca dos erros cometidos ao longo das duas décadas de guerra, os quais seguramente contribuíram para a sensação generalizada de que os esforços envidados, bem como os trilhões de dólares gastos e as milhares de vidas perdidas, foram em vão.

O embaixador P. Michael McKinley, em artigo para a revista Foreign Affairs, intitulado We All Lost in Afghanistan (“todos nós perdemos no Afeganistão”), ecoa com clareza esse peso na consciência que paira sobre a burocracia americana diretamente envolvida no conflito e no processo de construção e consolidação de um estado democrático no país. McKinley, que serviu como embaixador no Afeganistão entre 2014 e 2016, aparenta concordar com o entendimento de Biden de que a mera postergação da retirada americana por um ou dois anos não teria evitado as tristes cenas dos últimos dias. No entanto, o diplomata – ao contrário do presidente americano – reconhece a extensa responsabilidade dos EUA pelo fracasso.

No aspecto militar, McKinley destaca que as confiantes descrições que os relatórios do Departamento de Defesa americano faziam acerca das forças militares afegãs, enumerando um robusto contingente próximo a 350 mil soldados e policiais, bem equipados e com uma capacidade de atuação segura o suficiente para “proteger os principais centros populacionais e responder a ataques do Talibã” levaram a uma presunção de que as forças oficiais afegãs seriam uma das mais capacitadas da região. Isso, contudo, demonstrou-se verdadeiro apenas no papel: as evidências de campo traziam à tona problemas gravíssimos como os milhares de “ghost soldiers” (soldados existentes nos registros, mas indisponíveis para mobilização concreta), as constantes deserções, além de frequentes desvios de equipamentos e recursos, que já indicavam uma situação de fragilidade institucional das forças afegãs. Segundo o diplomata americano, esses fatores eram conhecidos e as autoridades americanas responsáveis pela consolidação da força militar afegã poderiam ter feito mais para corrigi-los.

Além disso, a demora em investir na estruturação de forças militares e policiais afegãs logo após 2001, quando o Talibã estava na defensiva, certamente contribuiu para que os insurgentes passassem a ganhar terreno a partir de 2013. A formação de uma força aérea afegã, por exemplo, demorou quase uma década para ser priorizada. Para piorar, a retirada de milhares de prestadores de serviços essenciais para a manutenção e operação das aeronaves inviabilizou o pleno funcionamento da aeronáutica afegã na hora em que mais se precisou dela. No mesmo sentido, toda a saída rápida e desorganizada do pessoal contratado para prover diversos outros serviços logísticos fundamentais para as operações das forças militares afegãs é apontada como um dos maiores descuidos da gestão da retirada americana.

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O presidente dos Estados Unidos Donald J. Trump se reúne com membros do serviço no Aeródromo de Bagram, no Afeganistão, (Foto: Exército dos Estados Unidos da América/ Fotos Públicas)

No âmbito diplomático, o tratamento leniente que os americanos dispensaram ao Paquistão durante todos esses anos é tido como fator-chave entre os que permitiram ao Talibã reunir todos os recursos necessários para resistir à ocupação norte-americana e retomar o poder antes mesmo de os estrangeiros concluírem a retirada. A cientista política da Universidade de Georgetown, C. Christine Fair, em um contundente artigo para a Foreign Policy, não esconde a indignação – que muitos diplomatas e militares americanos também já externaram – com a suavidade de Washington perante Islamabad, a despeito dos sabidos laços entre o Paquistão e a insurgência talibã e diversos outros grupos radicais islâmicos. Nem mesmo o fato de Osama bin Laden ter sido encontrado naquele país, tendo as autoridades paquistanesas negado por quase uma década que o líder da al Qaeda estaria em seu território, foi capaz de ensejar uma posição mais firme de Washington. Nesse ínterim, os talibãs seguiram utilizando tranquilamente o país vizinho como refúgio para se organizar, se financiar, se armar e recrutar. Os EUA, por sua vez, tão categóricos na hora de aplicar sanções contra cubanos, venezuelanos, russos, bielorrussos e iranianos, demonstraram um estranho receio em adotar uma postura mais assertiva contra um país que abertamente solapava seus esforços no Afeganistão. As razões para isso são incertas: McKinley alega que Islamabad seria um ator crucial para garantir uma resolução pacifica da guerra contra o Talibã, enquanto a Professora Fair expõe um certo medo dos americanos de que o Paquistão entrasse em colapso, fornecesse armas nucleares a terroristas ou provocasse uma escalada nuclear com a Índia. Independentemente dos motivos, todos concordam que tolerar o apoio paquistanês aos insurgentes foi um dos mais significativos erros dos americanos e um dos fatores que mais contribuíram para a resiliência e o recrudescimento do Talibã.

Na esfera política, por fim, a rápida tomada de poder pelos insurgentes evidenciou não apenas a fragilidade do “estado democrático afegão”, como também sua completa falta de legitimidade e aderência perante seu próprio povo. Sinais disso não faltaram: eleições com baixíssimo comparecimento, acordos tíbios entre oposição e situação, disputas étnicas, maior relevância dos poderes tribais que do poder central, e a interferência direta e aberta dos EUA sobre as decisões de Cabul. Isso levou naturalmente a um isolamento cada vez maior da capital afegã, ao mesmo tempo em que o Talibã demonstrava seguir com forte apoio popular em outras partes do país e, ainda, com capacidade de reunir novas gerações de aderentes.

No seio da sociedade americana, o desgaste político de um conflito caro e sem um propósito claro (principalmente após a morte de bin Laden), foi se acumulando. Obama mencionou a retirada, mas preferiu passar a batata quente para seu sucessor; Trump deu início às conversas com os inimigos e acertou o cronograma; e Biden, finalmente, resolveu livrar-se logo do problema, implementando a retirada sem pensar no dia de amanhã. O resultado foram as cenas de desespero e horror no aeroporto de Cabul difundidas mundo afora. Nada disso, contudo, pode ser jogado no colo de quem apoiou e contou com o apoio dos americanos desde 2001. O fragilíssimo estado democrático afegão que os EUA se propuseram a construir e suas forças armadas que os americanos falharam implacavelmente em estruturar são muito mais vítimas que culpados pelo fracasso dessa tentativa longa e aventureira de construir uma nação.

*Martin Ortiz é advogado e estudante de temas internacionais, bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e pela Universidade Jean Moulin –Lyon III (França).


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