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terça-feira, 14 maio, 2024

Martí: soy loco por ti, América

Emiliano José*

Soy loco por ti, América - YouTube

Soy loco por ti, América

Yo voy traer uma mujer playera

Que su nombre sea Martí

Que su nombre sea Martí […]

El nombre del hombre muerto

Ya no se puede decirlo, quem sabe?

Antes que o dia arrebente

Antes que o dia arrebente…

(Trecho de Soy loco por ti,

America, de Capinan e Gilberto Gil)

Corria o ensolarado 22 de novembro de 2018.

Havana, rua Obispo, gente e mais gente, intenso comércio.

Boa caminhada, e entro no Instituto Cubano do Livro.

Subo naquele elevador do século passado, portas sanfonadas, de ferro, tais e quais o elevador do Banco Comercial do Brasil, quando iniciei minha trajetória de bancário no centro da capital paulista, outubro de 1960.

Espero até ser atendido por Juanito, o diretor do Instituto Cubano do Livro.

Juan Rodríguez Cabrera dirigia o Instituto havia algum tempo.

Acompanhando-me, Jorge Ferrera, querido amigo, veterano militante comunista da Ilha de Cuba.

Juanito nos recebe, efusivamente.

Discuti com ele a publicação de alguns livros meus pelo Instituto.

Acatou a ideia.

Decidido isso, perguntei:

– Você poderia me conseguir alguma coisa sobre José Martí, algum livro dele?

Não conhecia nada dele.

Ele então me disse Martí morreu com 42 anos, e a obra dele chega a 42 livros.

Difícil resolver minha demanda.

Levei um susto, susto de ignorante.

Me recolhi.

Juanito foi à estante, pegou um livro, o único sobre Martí à mão.

Biografia de José Martí, Cesto de LLamas.

Ele o ganhara do autor, Luis Toledo Sande, cuja primeira edição data de 1996, a última reimpressão de 2018.

Mostrou-me a dedicatória de Sande pra ele datada de 12 de janeiro de 2018.

Folheei, assim meio invejoso.

Devolvi o exemplar, único no Instituto.

Juanito tomou da caneta e escreveu:

“Emiliano, querido Hermano, reciba este regalo em nombre de Luis, el autor y de un que lo apreciamos y lo sentímos cerca de este pueblo que lucha por ser por siempre, libre y soberano. Um abraço, Juanito”.

Surpreso e honrado.

Um regalo inesquecível.

Há um sem número de publicações em torno de José Martí, o chamado Apóstolo da Revolução Cubana.

A leitura do livro de Sande, primeira incursão minha em torno da história dele, tardia como se vê.

Quem terá sido este homem?

Sob grilhões, numa pedreira

Menino, menino foi posto a ferros.

Não é metáfora.

Nasceu em Havana, a 28 de janeiro de 1853.

Filho de Mariano de los Santos Martí y de Navarro, natural de Valência, Espanha, e de Leonor Antonia de la Concepción Micaela Pérez y Cabrera, de Santa Cruz de Tenerife, Islas Canárias.

O pai integrava o Real Corpo de Artilharia como primeiro sargento, quando o filho nasceu. Dois anos depois, subtenente de Infantaria.

Martí, no colégio San Anacleto, conhece, em 1860, Fermín Valdéz Dominguez. Nasce então amizade a crescer ininterruptamente, firmada na vocação de ambos por liberdade e justiça.

Na província hoje conhecida por Matanzas, para onde o pai fora transferido, conhece o rosto rural de Cuba. Depara com o horror da escravidão no campo.  Até então, só havia atestado a existência da escravidão na modalidade doméstica, urbana. Mais benigna, menos terrível. Fará seu primeiro juramento revolucionário:

– Lavar com a própria vida o crime da escravidão.

O pai volta pra Havana, e em março de 1863 Martí começa a estudar na Escola de Instrução Primária Superior Municipal de Varones.

Conhece Rafael María de Mendive, figura essencial para Martí nessa fase da vida, espécie de tutor, mestre cujo interesse levou o pai de Martí a consentir Mendive custear os estudos dele até o momento do bacharelado.

Faz admissão e é aprovado em setembro de 1866 para a Segunda Enseñanza de La Habana, e se incorpora ao Instituto, situado numa parte do Convento de Santo Domingo, rua Obispo, 8.

Dia 10 de outubro de 1868, aluno do Instituto de Segunda Enseñanza de La Habana. Dia decisivo para a história da Ilha e para Martí: Carlos Manuel de Céspedes liberta os escravos dele, chama-os à luta pela independência de Cuba, conclama a quem mais quisesse segui-lo, e inicia luta. Martí se envolve profundamente ao lado daquela guerra. Publica a folha separatista “El Diabo Cojuelo” e o primeiro e único número da revista “La Patria Libre”, tudo com conteúdo independentista, contra a dominação espanhola.

Preso a 21 de outubro de 1869 por estar de posse de papéis considerados revolucionários pelo governo espanhol, julgado pelo Conselho de Guerra Ordinário, é condenado, em 4 de março de 1870, a seis anos de prisão. Submetido, com 17 anos, a trabalhos forçados numa pedreira, prisão denominada Canteras de San Lázaro. Diariamente ele e vários outros prisioneiros eram levados para um extenuante, brutal trabalho, doze horas seguidas sob o sol inclemente. Ali, Martí desenvolveu mais e mais o espírito solidário:

“Yo suelo olvidar mi mal cuando curo el mal ajeno”.

Solidariedade manifestada de modo particular a dois anciões presos: Nicolás del Castillo e Juan de Díos.

Castillo tinha 76 anos.

Díos, escravo com problemas mentais causados pelos inenarráveis sofrimentos sofridos sob a escravidão.

E ainda se solidarizava de modo especial com os meninos Tomás, negro de 11 anos, e Lino Figueiredo, de 12.  Lino, além de tudo foi acometido de varíola, e tinha crises, delírio com a febre constante. Martí o auxiliava, sem se incomodar com a possibilidade do contágio. Todos os prisioneiros viviam sob grilhões de ferro atados aos pés e à cintura, Martí inclusive.

A experiência das Canteras de San Lázaro aos 17 anos de idade contribuiu decisivamente para forjar a têmpera de Martí, cuja trajetória estará marcada sempre por não temer os perigos nem ceder diante dos sacrifícios.

Por variados caminhos, articulações da família, sobretudo, face à saúde debilitada em decorrência da vida na prisão, Martí tem a pena convertida em deportação para a Espanha. Em 16 de fevereiro de 1871, já se encontra em Madrid.

Não deixará de registrar a experiência da prisão. Dante, ele dirá, não esteve num presídio. Tivesse experimentado os tormentos de um, haveria desistido de pintar o inferno. A experiência lhe permitiria copiar, e a pintura do inferno sairia bem mais intensa.   O retrato de tal experiência está em El presídio político en Cuba, cujo texto bastaria para dar-lhe um lugar honroso na literatura cubana.

Concebeu-o para denunciar, no coração da Metrópole, as bestialidades do presídio, impostas aos cubanos independentistas. A obra não é regida pela irracionalidade do ódio nem pelo horror daquele inferno. Transpira espírito fraternal, onde o autor reafirma a solidariedade dele com os companheiros de tormento em meio àquele terrível regime carcerário.

Nesse texto, não iremos nos deter na magistral obra literária de Martí, imensa e de notável riqueza. Vamos nos ocupar, e parece já estar claro, do papel político dele, do intelectual dedicado à Revolução, à unidade da América, com claros acentos bolivarianos, e dedicado de modo especial, fervor intenso, à independência de Cuba.

Quem era mesmo aquele gigante, mais tarde conhecido como O Apóstolo da Revolução Cubana?

Revolução, só com participação popular.

A chamada Revolução Cubana se dá em três tempos, ou quatro.

O primeiro passo foi dado por Carlos Manuel de Céspedes, um latifundiário iluminado, capaz de em 10 de outubro de 1868 libertar os escravos dele e iniciar a guerra da independência, marcado pelo chamado Grito de Yara, a perdurar por dez anos¸ encerrada em 1878.

Logo depois, a chamada Guerra Chiquita – de 1879 a 1880, liderada por Calixto García. Foi derrotada facilmente pelos espanhóis, por desorganizada.

Martí observa toda essa movimentação, estuda os muitos erros cometidos, e dedica toda a vida após a saída da prisão a preparar nova guerra da independência, fundando para tanto o Partido Revolucionário Cubano, em 1892, tentando sempre configurar táticas e estratégias diferentes das duas guerras iniciais, de modo a conquistar a independência da Ilha.

Tinha confiança na confiança de revolucionários corajosos, dispostos a ir à luta. Alertava, no entanto: só teriam chances de amparados pela mobilização popular.

“Abandonados pelo povo, um punhado de heróis pode chegar a parecer – aos olhos dos indiferentes e dos infames um punhado de bandidos”.

Muito antes, registre-se, uma crítica ao que viria a ser o foquismo, nos anos 1960.

A luta liderada por Martí deu-se entre 1895-1898, a última das três guerras pela independência dos cubanos contra o domínio espanhol. Depois de anos de organização, Martí invadiu a Ilha em três frentes. Não viu a vitória: morreu logo no início, em combate, aos 42 anos de idade. Comandava pequeno destacamento de patriotas cubanos, quando deparou com tropas espanholas nas proximidades do vilarejo de Boca de Dos Rios. Atingido, perdeu a vida.

Visse a vitória, provavelmente não gostasse do resultado.

Os EUA resolveram entrar no conflito e decidiram a parada a favor deles, contra Espanha. Uma guerra de dez semanas, apenas. Tinha início ali o protagonismo do País no plano internacional, preparando terreno para suceder o Império Britânico, em decadência. Terminada a guerra, com vitória dos EUA, Espanha derrotada, houve o controle temporário do gigante americano sobre Cuba.

Em 10 de dezembro de 1898 foi assinado o Tratado de Paris, sacramentando a derrota espanhola. EUA assumiram todas as colônias de Espanha fora de África. Cuba, sob jurisdição do Governo Militar dos EUA, forma o governo civil, e ganha a independência em 20 de maio de 1902.

Independência relativa, vamos registrar.

Martí não gostaria.

Os EUA impuseram várias restrições ao novo governo, incluindo a proibição de alianças com países considerados inimigos por eles. Reservou-se o direito de intervir na Ilha, quando sentisse os interesses deles atingidos.

E grave, muito grave, estabeleceu um contrato de arrendamento perpétuo da Baía de Guantánamo, datado de 1903, persistente até os dias atuais. Como sabido, mais recentemente, os EUA têm feito de Guantánamo um centro de torturas contra prisioneiros políticos, ou terroristas, como eles chamam. E além de tudo, constitui-se numa Base Naval dentro de território cubano.

A enfeixar toda essa série de medidas voltadas a colocar Cuba sob o jugo norte-americano, a Emenda Platt, aprovada pelo Congresso dos EUA, impressionante pela desfaçatez com que enumera os compromissos de subordinação de Cuba.

Os ideais do Apóstolo

Tudo isso se diz para chegar à quarta etapa da Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro.

Diria: o tsunami Fidel chega para completar a Revolução Cubana.

De alguma forma, chegava para realizar os ideais de Martí.

Para superá-las, no bom sentido.

Acolher tais ideais e dar passos adiante.

Fidel, como se sabe, não chegou como marxista pronto ao assumir o poder. A rigor, a ofensiva dos EUA contra a Ilha depois de 1959, levou-o velozmente em direção ao marxismo, e daí em diante a história é conhecida. Aqui, como o leitor já percebeu, o protagonista é Martí. Fidel Castro reclama outro momento, por extraordinário e por ter garantido a Revolução Cubana, numa epopeia extraordinária.

Martí tinha o sonho de uma América Unida.

Poderíamos qualificá-lo como um bolivariano, sem pesar a mão.

Tinha o projeto da independência de Cuba.

Aos olhos dele, e desde jovem, a realidade cubana mostrava maior “disposição radical entre os humildes”. E por outro lado, era evidente o reformismo acomodatício dos opulentos. Martí, correndo mundos na organização da Revolução Cubana, dizia com convicção, não animá-lo tanto a ajuda econômica dos ricos. A comovê-lo muito mais, a ajuda, a solidariedade dos pobres. Estes, sacavam das enormes carência deles o que não podiam em favor da Revolução. Lutavam, ele dizia, por uma “república invisível” e talvez ingrata, incapaz de reconhecer a força e a paixão dos pobres de la tierra.

Cuba haveria de se libertar não apenas do colonialismo espanhol. Mas, também, e àquela altura já fundamentalmente, bater-se, na visão martiniana, contra os planos expansionistas dos EUA. Tudo isso seria a antessala indispensável para chegar a uma nova situação política, projetada por Martí, garantia de transformações de fundo.

Pensou um programa para a Ilha: educação de qualidade para todos, desenvolvimento da economia agrária, busca de harmonia social e distribuição equitativa da riqueza como maneira de garantir a justiça social, organização dos operários, direito de greve e a solidariedade dos trabalhadores como meio de se obter remuneração justa pelo trabalho, exclusão da igreja de toda e qualquer participação nas estruturas de poder político-social, eliminação da educação religiosa nas escolas públicas.

Numa visão ampla sobre as concepções de Martí, marcado pela luta anticolonial, parece, na leitura de Luis Toledo Sande, haver relativo distanciamento dele do pensamento marxista, considerando não haver, no marxismo de então, conforme Sande, uma preocupação com a luta nacional, o que me parece discutível. Teria tido contatos com representantes da Primeira Internacional. E não teria influenciado os comunistas com as ideias dele sobre o conflito colonial. Martí, no entanto, quando da morte de Marx, em 1883, disse ele ser merecedor de honra por haver se posto ao lados dos oprimidos e por ser “alma comida del ânsia de hacer bien”.

Um liberal, Martí.

Um liberal radical.

Tão radical, tão seriamente empenhado na busca da justiça social, a ponto de ser acolhido pela Cuba socialista como Apóstolo da Revolução, como já lembrado. A seu tempo, um revolucionário. Determinado a fazer a independência de Cuba, mesmo ao preço da própria vida, e tinha essa consciência desde muito cedo.

Um liberal estranho.

Dizia não à Pátria Liberal.

Ao contrário, defendia a Pátria Livre, consigna tão ao gosto dos cubanos, dos revolucionários de Sierra Maestra.

Sempre um inimigo do expansionismo imperialista.

“Só uma resposta unânime e viril” – ele dirá em abril de 1890, nos EUA – “para poder libertar de uma vez os povos espanhóis de América, da inquietude e perturbação”. Critica um predomínio de um vizinho “pujante e ambicioso”. Vizinho sempre atuante para apoderar-se de territórios nacionais alheios, como México, Nicarágua, Santo Domingo, Haiti e a própria Cuba. Vizinho disposto a conter pela intimidação tratativas da Colômbia com outros países.

Desde muito cedo, um ardoroso antiescravista, já revelamos. Quando se fala um liberal, portanto, há de se compreendê-lo naquele contexto histórico, com cuidado para não trazê-lo para o conceito de liberal dos dias atuais, em geral confinado a um pensamento à direita. Um liberal a advogar e praticar o nacionalismo revolucionário. Tinha convicção, e levou isso à prática: só a luta armada, a guerra levaria à independência de Cuba.

A visão dele de autonomia face ao imperialismo levava-o a defender o surgimento de instituições nascidas nos próprios países, nada de imitar metrópoles. Tais instituições autóctones se afirmam trabalhosa e seguramente, ele pensava, sobre as instituições importadas.

Era homem movido a esperança. Apostava no ser humano. Acreditava e luta por uma vida futura melhor. Convicto da utilidade da virtude. Revolução para ele havia de ser popular, contar com o protagonismo do povo. Tinha certeza: completar a epopeia protagonizada por Bolívar significaria enfrentar desafios e tarefas muito mais complexos.

Não era amante da fortuna material. Expressou isso umas tantas vezes. Não acreditava fosse boa a raiz de um povo devotado a um amor exclusivo e veemente e desassossegado pelo dinheiro, ou fortuna material, como dizia. Os EUA de então eram assim, e continuam a ser.

Todo esse ideário político o eternizou. Na América. Em Cuba, onde, dizem alguns cubanos, chega a ser mais citado que Fidel.  Verdade ou não, tornou-se um símbolo da Revolução Cubana. Diria, insistindo, muito mais pelo arcabouço, densidade de suas ideias.

Martí nos ilumina com a luz dele, a apontar no horizonte um mundo sonhado pela humanidade, um mundo necessário para que ela possa continuar existindo, mundo capaz de cultivar a dignidade, a nos convocar para a luta, como dito no final do livro de Sande.

Tais ideias não morreriam com ele.

Ele próprio, Martí, profetizou:

Mi verso crescerá; bajo la hierba

Yo también creceré.

Cresceu.

Foram sementes plantadas, a ecoar no coração dos povos, a germinar nas classes trabalhadoras de todos esses continentes onde vivem os pobres de la tierra, a quem ele dedicou a vida, para quem deixou versos sensíveis, em Guantanamera:

Yo soy bueno y como bueno

Moriré de cara al sol

Yo soy bueno y como bueno

Moriré de cara al sol.

 

Con los pobres de la tierra

Quiero yo mi suerte echar

Con los pobres de la tierra

Quiero yo mi suerte echar  

Referências

ALTMANN, Werner. O pensamento político e religioso de José Martí.Ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ihu/003cadernosihu/pdf. Consulta em 24/05/2023

GUERRA Chiquita. Wikipédia, consulta 24/05/2023.

GUERRA dos Dez anos. Wikipédia, consulta 24/05/2023.

GUERRA da Independência Cubana. Wikipédia, consulta 24/05/2023.

LEMOS, Mariana. José Martí: 167 anos de história e legado em “Nuestra América”. Brasil de Fato : São Paulo, 31/1/2020.

MARTÍ, José. Wikipédia, consulta 24/05/2023.

SANDE, Luis Toledo. Cesto de Llamas : Biografia de José Martí. Havana : Editorial Patria Inc., 2018.

*Emiliano José é autor de “O cão morde a noite”, “Os comunistas estão chegando”, “Lamarca, o Capitão da Gerrilha” em parceria com Oldack Miranda, “Marighella, o inimigo público número um” entre tantos. Jornalista, integra a Academia de Letras da Bahia.

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