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segunda-feira, 29 abril, 2024

A paranóia quanto às novas Rotas da Seda prosseguirá com Biden

Por Pepe Escobar

Nada de fundamental mudará sob a administração Biden, permanecendo como prioridade a guerra híbrida contra a China.

Sete anos após o seu lançamento pelo presidente Xi Jinping, primeiro em Astana depois em Jacarta, as Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cintura e Estrada (BRI), tornam a oligarquia plutocrática dos EUA cada vez mais demente.

A implacável paranoia a propósito da “ameaça” chinesa tem muito a ver com a via de saída oferecida por Pequim a um Sul Global constantemente endividado pela exploração do FMI/Banco Mundial.

No antigo regime, as elites político-militares eram constantemente corrompidas em troca de um acesso ilimitado das empresas aos recursos do seu país, associado a programas de privatização e de austeridade pura e simples (“ajustamento estrutural”).

Isso durou décadas, até que o BRI tornou-se o novo jogo em termos de construção de infraestruturas – oferecendo uma alternativa à marca imperial.

O modelo chinês permite toda espécie de impostos paralelos, vendas, locações, alugueres, arrendamentos – e lucros. Isto significa fontes adicionais de receitas para os governos anfitriões, com um corolário importante: a ausência dos ditames neoliberais puros e duros do FMI e do Banco Mundial. Isto está no cerne da célebre situação “vence-vence” da China.

Além disso, a orientação estratégica global do BRI sobre o desenvolvimento das infraestruturas, não só na Eurásia mas também na África, constitui uma grande mudança no jogo geopolítico. O BRI posiciona vastos segmentos do Sul Global para tornarem-se independentes da armadilha da dívida imposta pelo Ocidente. Para numerosas nações, trata-se de uma questão de interesse nacional. Neste sentido, o BRI deve ser considerado como o derradeiro mecanismo pós-colonial.

O BRI é de facto de uma simplicidade à Sun Tzu aplicada à geoeconomia. Jamais interromper o inimigo quando ele comete um erro – neste caso, sujeitar o Sul Global a uma dívida perpétua. Depois utilizar suas próprias armas – neste caso uma “ajuda” financeira – para desestabilizar sua proeminência.

Tomar a estrada com os mongóis

Nada disto, com certeza, se destina a fazer serenata ao vulcão paranóico, que continuará a cuspir um dilúvio de alertas vermelhos 24 horas por dia, 7 dias por semana, ridicularizando o BRI como sendo “mal definido, mal gerido e visivelmente falho”. “Visivelmente”, é claro, apenas para os excepcionalistas.

Como era de esperar, o vulcão paranóico alimenta-se de uma mistura tóxica de arrogância e ignorância grosseira da história e cultura chinesas.

Xue Li, director do Departamento de Estratégia Internacional do Instituto de Economia e Política Mundial da Academia Chinesa de Ciências Sociais, mostrou como “depois de a iniciativa Cintura e Estrada ter sido proposta em 2013, a diplomacia chinesa mudou, passando de um baixo perfil a uma atitude mais proativa nos assuntos mundial. Mas a política de “parceria ao invés de aliança” não mudou e é pouco provável que mude no futuro. O facto é que o sistema de diplomacia de aliança preferido pelos países ocidentais é a opção de alguns países do mundo e que a maior parte dos países opta por uma diplomacia não alinhada. Além disso, a grande maioria deles são países em desenvolvimento da Ásia, África e América Latina.

Os atlantistas estão desesperados pois o “sistema de diplomacia de aliança” está em declínio. A esmagadora maioria do Sul Global está em vias de se reconfigurar num Movimento dos Não-Alinhados (MNA) novamente dinamizado – como se Pequim houvesse encontrado um meio de fazer reviver o espírito de Bandung de 1955.

Os universitários chineses gostam de citar um manual imperial do século XIII, segundo o qual as mudanças de política devem ser “benéficas para o povo”. Se elas não beneficiam senão funcionários corrompidos, o resultado é o luan (“caos”). Assim, os chineses do século XXI enfatizam a política pragmática mais do que a ideológica.

Rivalizando com as dinastias Tang e Ming, é de facto a dinastia Yuan que oferece uma introdução fascinante às engrenagens da BRI.

Portanto remontemos um pouco ao século XIII, quando o imenso império de Gengis Khan foi substituído por quatro canatos.

Tínhamos do canato do Grande Khan – que se tornou a dinastia Yuan – que reinava sobre a China, a Mongólia, o Tibete, a Coreia e a Manchúria.

Tínhamos o Ilcanato, fundado por Hulagu (o conquistador de Bagdad), que reinava sobre o Irão, o Iraque, o Azerbaijão, o Turquemenistão, certas parte da Anatólia e do Cáucaso.

Tínhamos a Horda de Ouro que reinava sobre a estepe noroeste da Eurásia, do leste da Hungria à Sibéria, e sobre os principados russos.

E tínhamos o canato de Chaghadaid (nomeado após o segundo filho de Gengis Khan) que reinava sobre a Ásia Central, do Xinjiang oriental ao Uzbequistão, até à chegada ao poder de Tamerlão em 1370.

Esta época assistiu a uma enorme aceleração do comércio ao longo das Rotas da Seda mongóis.

Todos estes governos controlados pela Mongólia privilegiaram o comércio local e internacional. Isto traduziu-se por uma expansão dos mercados, dos impostos, dos lucros – e do prestígio. Os canatos fizeram concorrência entre si para atrair os melhores cérebros comerciais. Eles executaram a infraestrutura necessária às viagens transcontinentais (a BRI do século XIII) e abriram caminho para múltiplos intercâmbios Leste-Oeste e trans-civilizacionais.

Quando os mongóis conquistaram os Song no sul da China, eles estenderam mesmo o comércio terrestre da Rotas da Sede às Rotas Marítimas da Seda. A dinastia Yuan controlava dali em diante os poderosos portos do sul da China. Assim, quando havia turbulências por via terrestre, o comércio fazia-se por via marítima.

Os principais eixos passavam pelo Oceano Índico, entre o sul da China e a Índia, e entre a Índia e o Golfo Pérsico ou o Mar Vermelho.

As cargas eram encaminhadas por via terrestre para o Irã, o Iraque, a Anatólia e a Europa; por via marítima, através do Egipto e do Mediterrâneo, para a Europa; e do Aden para a África Oriental.

Uma rota marítima de comércio de escravos entre os portos da Horda de Ouro no Mar Negro e no Egito – gerida por comerciantes muçulmanos, italianos e bizantinos – estava igualmente em vigor. Os portos do Mar Negro faziam transitar mercadorias de luxo que chegavam por via terrestre provenientes do leste. E as caravanas deslocavam-se ao interior das terras a partir da costa indiana durante as perigosas estações da monção.

Esta atividade comercial frenética era a proto-BRI, que atingiu seu apogeu nos anos de 1320 a 1330 até o colapso da dinastia Yuan em 1368, paralelamente à Peste Negra na Europa e no Médio Oriente. O ponto-chave: todas as rotas terrestres e marítimas estavam ligadas entre si. Os planeadores da BRI do século XXI beneficiam de uma longa memória histórica.

“Nada de fundamental mudará”

Comparemos agora esta riqueza de intercâmbios comerciais e culturais com a paranóia pedante, provinciana, anti-BRI e globalmente anti-China nos Estados Unidos. O que obtemos é que o Departamento de Estado, sob a férula de Mike “Mentimos, enganamos, roubamos” Pompeo, publica uma diatribe ridícula sobre o “desafio chinês”. Ou a marinha dos Estados Unidos que repõe em serviço a Primeira Frota, provavelmente baseada em Perth, para “ter uma pegada Indo-Pacífico” e assim manter “uma dominação marítima na era da competição das grandes potências”.

Ainda mais preocupante, eis um resumo da enorme Lei de Autorização da Defesa Nacional (NDAA) de 2021, com 4.517 páginas e um orçamento de 740,5 mil milhões de dólares, que acaba de ser aprovada pela Câmara por 335 votos contra 78 (Trump ameaçou vetá-la).

Trata-se do financiamento de Pentágono no próximo ano – que será supervisionado em teoria pelo novo general da Raytheon, Lloyd Austin, o último “general comandante” do Estados Unidos no Iraque que dirigiu o CENTCOM de 2013 a 2016 e que a seguir através de portas giratórias retirou-se para cargos sumarentos como membro do conselho de administração da Raytheon e, sobretudo, do conselho de administração da Nucor, poluidor ultra-tóxico do ar, da água e do solo.

Austin é um personagem porta-giratória que apoiou a Guerra no Iraque, a destruição da Líbia e supervisionou a formação dos “rebeldes moderados” sírios – aliás, Al-Qaida reciclados – que mataram inumeráveis civis sírios.

O NDAA, como era de esperar, está pesadamente carregado “de ferramentas para dissuadir a China”.

Ele incluirá:

  • Uma “Iniciativa de Dissuasão no Pacífico” (PDI), um código para conter a China no Indo-Pacífico reforçando o Quad.
  • Operações maciça de contra-espionagem.
  • Uma ofensiva contra a “diplomacia da dívida”. Isto é absurdo: os acordos da BRI são voluntários, numa base vence-vence, e abertos à renegociação. Os países do Sul Global privilegiam-nos porque os empréstimo são com taxa de juro baixa e a longo prazo.
  • Reestruturação das cadeias de abastecimento mundiais que levam aos Estados Unidos. Boa sorte. As sanções contra a China permanecerão em vigor.
  • Pressão geral para forçar as nações a não utilizar o 5G da Huawei.
  • Reforçar Hong Kong e Formosa como Cavalos de Tróia para desestabilizar a China.
  • O director da Inteligência Nacional, John Ratcliffe, já deu o tom: “Pequim tem a intenção de dominar os Estados Unidos e o resto do planeta no plano económico, militar e tecnológico”. Tenham medo, muito medo do malvado Partido Comunista Chinês, “a maior ameaça para a democracia e a liberdade do mundo desde a Segunda Guerra Mundial”.

Eis-nos aqui: Xi é o novo Hitler.

Portanto, nada mudará fundamentalmente depois de Janeiro de 2021 – como Biden-Harris prometeram oficialmente: será novamente a guerra híbrida contra a China, posicionada por todo o espectro, como Pequim compreendeu perfeitamente.

E então? A produção industrial da China continuará a crescer ao passo que nos Estados Unidos continuará a diminuir. Haverá outros avanços dos cientistas chineses, tais como a computação quântica fotonica – que permite realizar 2,6 mil milhões de anos de cálculo em 4 minutos. E o espírito da Dinastia Yuan do século XIII continuará a inspirar o BRI.

O original encontra-se em www.legrandsoir.info/…

Este artigo encontra-se em https://resistir.info

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