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quinta-feira, 18 abril, 2024

Uma lição que o coronavírus está prestes a ensinar ao mundo

 Jonathan Cook Blog
Se alguma doença ensinar sabedoria além do que compreendemos sobre o quanto a vida é precária e preciosa, o coronavírus já trouxe duas lições.
A primeira dessas lições é que, em mundo globalizado, todas as vidas estão tão entrelaçadas que a ideia de nos vermos como ilhas – sejam indivíduos, comunidades, nações ou alguma espécie que seria exclusivamente privilegiada – tem de ser compreendida como prova de má consciência. Na verdade, sempre estivemos unidos, parte de uma rede miraculosa de vida sobre nosso planeta; e, além dele, poeira de estrelas num universo insondavelmente grande e complexo.
É sempre uma arrogância cultivada em nós por aqueles narcisistas que subiram ao poder mediante o próprio egoísmo destrutivo, que nos cegou para a mistura necessária de humildade e admiração que deveríamos sentir ao observar uma gota de chuva numa folha ou a luta de um bebê para engatinhar, ou o céu noturno que se mostra em todas aquelas incontáveis glórias longe das luzes da cidade.
E agora, quando começamos a entrar em períodos de quarentena e autoisolamento – como nações, comunidades e indivíduos – tudo isso deve ser tão mais claro! Foi preciso um vírus para nos mostrar que só chegamos à nossa máxima força, mais vivos e mais humanos, quando estamos juntos.
Ao ser despojados do que mais precisamos, pela ameaça de contágio, somos lembrados de o quanto damos por assegurada a comunidade, de o quando abusamos, usamos mal e esvaziamos a comunidade. Temos medo, porque os serviços de que precisamos em tempos de dificuldade e trauma coletivos foram transformados em mercadorias que exigem pagamento, ou tratadas como privilégios aos quais o acesso agora é testado, racionado ou simplesmente apagado. Essa insegurança está na raiz do desejo atual de acumular.
Quando a morte nos assedia, não recorremos a banqueiros, nem a executivos, nem a gestores de fundos de hedge. Pois essas são as pessoas mais altamente recompensadas por nossas sociedades. Se salários são medida de valor, essas são as pessoas que mais valem!
Mas não são essas as pessoas das quais precisamos, como indivíduos, como sociedades, como nações. Ao contrário, precisaremos de médicos, enfermeiros, profissionais de saúde pública, cuidadores e assistentes sociais que estarão lutando para salvar vidas alheias, com risco para a própria vida deles.
Durante essa crise de saúde, podemos de fato ver quem e o que é o mais importante. Mas recordaremos o sacrifício, o valor deles, depois que o vírus sair das manchetes? Ou voltaremos aos negócios como de costume – até a próxima crise –, recompensando fabricantes de armas, bilionários proprietários da mídia, chefes das empresas de combustíveis fósseis e parasitas de serviços financeiros que extraem do dinheiro de outras pessoas, que comem?
“Aceite, que dói menos” [Take it to the chin]
A segunda lição decorre da primeira. Apesar de tudo o que nos foi dito ao longo de quatro décadas ou mais, a sociedade capitalista ocidental está longe de ser o modo mais eficiente de nos organizarmos. É o que aparecerá, nu e cru, à medida que se aprofundar a crise do coronavírus.
Ainda estamos muito profundamente imersos no universo ideológico do Thatcherismo e do Reaganismo, quando nos diziam quase literalmente: “Sociedade não existe”. Como esse mantra político resistirá ao teste das próximas semanas e meses? Por quanto tempo podemos sobreviver como indivíduos, mesmo em quarentena, mais do que como partes de comunidades que cuidam de todos nós?
Os líderes ocidentais que defendem o neoliberalismo, como são obrigados a fazer hoje em dia, têm duas opções para enfrentar o coronavírus – e ambos exigirão desorientar muita gente, para que nos impeçam de ver pelas frestas das mentiras e das hipocrisias desses líderes.
Nossos líderes podem recomendar que o cidadão “engula sem reclamar” [ing. “take it on the chin”], nas palavras do primeiro-ministro britânico Boris Johnson. Na prática, significará permitir o que é efetivamente abate seletivo de seres humanos – os mais pobres e idosos –, abate que aliviará os governos do peso financeiro de esquemas de pensão e aposentadorias.
Tais líderes alegam que seriam impotentes para intervir ou reduzir a crise. O que se observa é que, confrontados com as contradições inerentes à sua visão de mundo, eles de repente se tornam fatalistas! Repentinamente esquecem que creem com fé de fundamentalista de igreja de televisão na eficácia e na perfeita justiça promovida pelo livre mercado. Dirão que o vírus era contagioso demais para ser contido, robusto demais para os serviços de saúde, letal demais para dar ao Estado tempo suficiente para salvar vidas. Assim fugirão desavergonhadamente da responsabilidade pelas décadas de cortes na saúde e pelas privatizações que tornaram esses serviços ineficientes, inadequados, pesados e inflexíveis.
Ou, pelo contrário, os políticos usarão seus ‘especialistas’ de televisão e aliados na mídia corporativa, para obscurecer o fato de que estão silenciosamente e temporariamente se convertendo ao socialismo, para lidar com a emergência.
E eles mesmos mudarão as regras de bem-estar  para as maiorias, de modo que todos os que estão na economia de dizimação que as ‘autoridades’ criaram – empregados com contratos de zero hora – não espalhem o vírus, porque são trabalhadores que não podem se dar ao luxo de fazer quarentena ou tirar dias de folga por doença.
Mais provavelmente, nossos líderes tentarão usar as duas saídas ao mesmo tempo.
Crise permanente
Se reconhecida, a conclusão a ser tirada da crise – que todos somos igualmente importantes, que precisamos cuidar uns dos outros, que ou afundamos ou nadamos juntos – será tratada como mera lição isolada e fugaz, específica para essa crise. Nossos líderes recusam-se a tirar lições mais gerais – que chamam a atenção para a responsabilidade deles, na crise –, sobre como sociedades humanas não pervertidas devem funcionar o tempo todo.
De fato, nada há de único e específico na crise do coronavírus. É simplesmente uma versão ampliada da crise menos visível em que estamos agora permanentemente atolados. Enquanto a Grã-Bretanha afunda sob inundações a cada inverno, enquanto a Austrália queima todo verão, enquanto os estados do sul dos EUA são destruídos por furacões, e suas grandes planícies tornam-se caldeirões de poeira, ao mesmo tempo em que a emergência climática vai-se tornando cada vez mais tangível, aprenderemos essa verdade, lenta e dolorosamente.
Aqueles profundamente investidos no sistema atual – e todos de tal modo destruídos pela lavagem cerebral que não conseguem ver as falhas dele –, esses defenderão o sistema até o fim. Nada aprenderão do vírus. Apontarão estados autoritários, e alertarão que tudo pode piorar muito.
Apontarão o dedo para o alto número de mortos no Irã, como confirmação de que nossas sociedades, serviçais do lucro, são melhores. E ensinarão a ignorar os danos terríveis que os EUA infligimos aos serviços de saúde do Irã, com anos de sabotar a economia iraniano mediante sanções ferozes. Os EUA deixamos o Irã ainda mais vulnerável ao coronavírus, arquitetávamos a “mudança de regime” – para intervir no país, sob o pretexto de preocupação “humanitária”. – O mesmo que os EUA tentamos fazer em outros países cujos recursos queríamos controlar, do Iraque à Síria e à Líbia.
O Irã será responsabilizado por uma crise que os EUA procuramos, que nossos políticos procuraram e para a qual agiram (mesmo que a velocidade e os meios os tenham surpreendido), sempre tentando, os EUA, derrubar os líderes iranianos. Os fracassos do Irã serão citados como prova da superioridade do modo de vida dos EUA, enquanto, com ares de falsa retidão e ultraje, protestaremos contra uma “interferência russa”, mesmo que não saibamos nem dizer de que “interferência” se trataria.
Valorizar o bem comum
Aqueles que defendem nosso sistema, mesmo quando a própria lógica interna desse sistema entra em colapso diante do coronavírus e de uma emergência climática, nos falarão da imensa sorte que temos por viver em viver em sociedades livres, nas quais alguns – executivos da Amazon, serviços de entrega em domicílio, farmácias, fabricantes de papel higiênico – ainda podem conseguir algum dinheiro rápido do nosso pânico e medo. Enquanto um explorador ainda explorar alguém, enquanto um barão ladrão estiver engordando e enriquecendo, haverá ‘informação’ de que o sistema funciona – e funciona melhor do que qualquer outra coisa que se possa imaginar.
Mas, de fato, sociedades do capitalismo em estágio avançado, como EUA e Reino Unido, terão dificuldade para reivindicar até os sucessos mais limitados contra o coronavírus. Será que Trump nos EUA ou Johnson no Reino Unido – exemplos do capitalismo de tipo “o mercado sempre sabe mais” – conseguirão fazer melhor que a China o trabalho de conter e lidar com o vírus?
Esta lição nada tem a ver com sociedades autoritárias versus sociedades “livres”. Trata-se aqui de sociedades que valorizam a riqueza comum, que valorizam o bem comum, acima da ganância e do lucro privados, acima de proteger os privilégios de uma elite da riqueza.
Em 2008, depois de décadas de dar aos bancos tudo que queriam – rédea livre para lucrar vendendo ar engarrafado – as economias ocidentais praticamente implodiram, quando estourou uma bolha inflada de liquidez vazia. Os bancos e serviços financeiros foram salvos por ‘resgates’ com dinheiro público – dinheiro dos contribuintes. Nem nos deram a chance de escolher o que fazer com o nosso dinheiro: ‘explicaram’ que os bancos eram “grandes demais para falir”.
O povo dos EUA compramos os bancos, com nossa riqueza comum. Mas, como a riqueza privada, é a estrela norteadora da nossa época, não foi dada ao povo permissão para sermos proprietários dos bancos que compramos. E tão logo foram salvos, resgatados pelo povo dos EUA – um socialismo pervertido, a favor dos ricos -, os bancos voltaram a render dinheiro privado, novamente enriquecendo numa pequena elite… até o próximo colapso.
Sem lugar para onde voar
Os ingênuos podem pensar que só aconteceu daquela vez. Mas as falhas do capitalismo são inerentes e estruturais, como o vírus já está demonstrando; e a emergência climática levará para dentro de nossa casa, com ferocidade alarmante nos próximos anos.
O fechamento das fronteiras significa que as companhias aéreas estão rapidamente descendo pelo ralo. São gigantes que, evidentemente, não guardaram dinheiro para um dia chuvoso. Não pouparam, não foram prudentes. Vivem num mundo cruel onde precisam competir com degoladores rivais, afastá-los dos negócios e ganhar o máximo de dinheiro possível para os acionistas.
Agora não há para onde as companhias aéreas possam voar – não terão meios visíveis de ganhar dinheiro, por meses a fio. Como os bancos, são grandes demais para falir. E, como os bancos, agora exigem que se gaste dinheiro público para mantê-los com a cabeça fora d’água, até que possam, mais uma vez, obter fazer lucros de usurário, rapidamente, para seus acionistas. E depois das companhias aéreas virão muitas outras empresas, à caça do nosso dinheiro.
Cedo ou tarde, o público estará novamente forte para socorrer essas empresas com fins lucrativos, que só são realmente eficientes no ‘serviço’ de ajudar o aquecimento global e a varrer a vida do planeta. As companhias aéreas serão ressuscitadas até que chegue a inevitável próxima crise chegue – na qual com certeza serão players chaves.
A marca de bota marcada no rosto
O capitalismo é um sistema eficiente para uma pequena elite ganhar dinheiro a um custo terrível e cada vez mais insustentável para a sociedade em geral – e só até que capitalismo, como sistema, para de funcionar satisfatoriamente para as elites. Nesse ponto, a própria sociedade tem de assumir a máquina calculadora, para ‘resgatar’ os ricos, porque só assim o ciclo pode recomeçar. Como uma bota marcada no rosto humano – para sempre, como George Orwell advertiu há muito tempo.
Mas não é que o capitalismo seja só economicamente autodestrutivo; também é imoral. Novamente, devemos estudar os exemplos da ortodoxia neoliberal: Reino Unido e EUA.
Na Grã-Bretanha, o Serviço Nacional de Saúde – que o mundo outrora invejou – já entrou em declínio terminal, após décadas de privatização e terceirização de serviços. Hoje, o mesmo partido conservador que iniciou a canibalização do Serviço Público de Saúde britânico, implora a empresas, como fabricantes de automóveis, que produzam ventiladores hospitalares, que em breve serão necessários para ajudar pacientes com coronavírus.
Tempo houve em que, em emergências, estados ocidentais poderiam direcionar recursos, públicos e privados, para salvar vidas. As fábricas seriam redirecionadas para atender ao bem comum. Hoje, estados e governos comportam-se como se existissem para promover negócios e para aplicar as próprias forças e esperanças na sanha pelo lucro e no egoísmo que levem aquelas empresas a se interessar pelo mercado de ventiladores ou de camas hospitalares… ou não haverá ventiladores ou camas hospitalares necessárias à saúde pública.
As falhas nessa abordagem ficam escandalosamente visíveis, se se examina a resposta que um fabricante de automóveis pode dar à solicitação de que adapte suas fábricas para produzir ventiladores.
Se o fabricante de automóveis não se convencer de que pode ganhar dinheiro mais facilmente com camas hospitalares, ou se entender que há lucros a recolher, maiores ou mais rapidamente, se continuar a fabricar carros num momento em que os mais ricos fogem ainda mais de qualquer transporte público, por medo do contágio… os doentes morrem. Se o fabricante de automóveis demorar a decidir, esperando aferir se a demanda por ventiladores mantém-se e justifica a adaptação das fábricas… os doentes morrem. Se atrasar, na esperança de arrancar subsídios de um governo temeroso da reação popular… os doentes morrem. Se baratear os custos de produção, para aumentar os lucros e conseguir que nenhum especialista médico controle a qualidade dos ventiladores… os doentes morrem.
As taxas de sobrevivência não dependerão nem do interesse pelo bem comum, nem do quanto nos mobilizemos para ajudar os necessitados, nem do planejamento para o melhor resultado, mas dos caprichos do mercado. E não apenas no mercado, mas das percepções humanas defeituosas e errôneas quanto ao que sejam ou como operem as forças do mercado.
Sobrevivência do mais apto
Se isso não fosse suficientemente ruim, Trump – em surto de vaidade inflada – está mostrando como esse motivo de lucro pode ser estendido, do mundo dos negócios que ele conhece tão intimamente, para o mundo cínico-político que aos poucos ele vem aprendendo a dominar. Segundo relatos, nos bastidores Trump só faz procurar desatinadamente uma bala de prata. Está conversando com empresas farmacêuticas internacionais, tentando encontrar alguém que esteja próximo de encontrar e desenvolver uma vacina, cujos direitos exclusivos de produzir os Estados Unidos consigam comprar para explorar contra todo o planeta.
Matérias jornalísticas sugerem que Trump deseja oferecer a vacina exclusivamente ao público dos EUA, o que, em ano eleitoral equivaleria a ser reeleito. Esse seria o ponto mais baixo da filosofia cão-morde-cachorro – a sobrevivência do mais apto, o mercado determina a visão de mundo – que fomos encorajados a adorar nas últimas quatro décadas. É como as pessoas comportam-se quando lhes é negada uma sociedade mais ampla, pela qual sejam responsáveis e que é responsável por elas.
Visão de mundo obscuramente atrofiada
Mas ainda que Trump deixe ou tenha de deixar outros países beneficiar-se de sua vacina privatizada, nada terá a ver com ajudar a humanidade ou sobre algum bem maior. Só terá a ver com Trump, o empreendedor-presidente, jogar os lucros crescentes só para os EUA sobre o lombo de seres humanos desesperados e sofredores, ao mesmo tempo em que se autovende como herói político no teatro global.
Ou, mais provavelmente, será mais uma chance para que os EUA demonstrarem suas credenciais “humanitárias”, recompensando os países “bons” presenteando-os com a vacina, ao mesmo tempo em que países “do mal” – Rússia, para começar – não ganharão o direito de proteger seus cidadãos.
Visão de mundo obscenamente atrofiada
Será ilustração perfeita no cenário global – e em negrito tecnicolor – de como funciona a via norte-americana de comercializar a saúde. É o que acontece quando a saúde é tratada não como bem público, mas como mercadoria sempre à venda, como privilégio para incentivar a força de trabalho, como régua para aferir quem é bem-sucedido e quem não é bem-sucedido.
Os EUA, de longe o país mais rico do planeta, têm sistema de saúde disfuncional, não porque não pudessem pagar por um bom sistema, mas porque a visão política que os EUA acolhem e reforçam é tão obscenamente atrofiada pelo culto à riqueza, que se recusa a reconhecer o bem comum, e escolhe desrespeitar a riqueza comum de uma sociedade saudável.
O sistema de saúde dos EUA é de longe o mais caro do mundo, mas também o mais ineficiente . A grande maioria dos “gastos com saúde” não contribui para curar os doentes, mas enriquece um setor de saúde de empresas farmacêuticas e companhias de seguros de saúde.
Analistas descrevem um terço de todos os gastos com saúde dos EUA – US $ 765 bilhões por ano – como “dinheiro desperdiçado”. Mas “desperdício” é um eufemismo. De fato, é dinheiro enfiado nos bolsos das empresas que se autodenominam “indústria da saúde” porque vivem de fraudar a riqueza comum dos cidadãos norte-americanos. E a fraude é ainda maior porque, apesar desse enorme gasto, mais de um em cada dez cidadãos dos EUA não tem cobertura significativa de saúde.
Como nunca antes, o coronavírus desnudará e porá em foco a ineficiência depravada desse sistema – o modelo de assistência médica com fins lucrativos, de forças de mercado que atendem aos interesses de negócios de curto prazo, e não a interesses de longo prazo de todos nós.
Há alternativas. No momento, os norte-americanos podem escolher entre um socialista democrático, Bernie Sanders, que defende a saúde como direito, porque é bem comum, e um chefe do partido Democrata, Joe Biden, que defende os lobbies de negócios dos quais ele depende para obter dinheiro para si e para financiar o próprio sucesso eleitoral. Sanders está sendo marginalizado e difamado, como ameaça ao modo de vida americano, por um punhado de corporações proprietárias que possuem a mídia americana, enquanto o outro está sendo impulsionado para a nomeação democrata por essas mesmas corporações.
O coronavírus tem uma lição importante e urgente para nos ensinar. A questão é: já estamos capacitados para ouvir?*******

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