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quarta-feira, 17 abril, 2024

Um povo desmemoriado

Fernando Horta /JornalGGN

Foto: Ricardo Stuckert

O povo brasileiro sempre foi culpado pelos males que o atinge. Quando eu digo culpado, falo alguém que sempre o culpa. Normalmente os mesmos que lhe infligem os maiores danos. Sempre o povo foi caracterizado como “preguiçoso” e “matreiro”, como repetiu o general fascista, mistura de índio com negro que se acha europeu, recentemente. Além disto, dentro de um discurso elitista, foi um povo que nunca teve “brio” sequer para ter “heróis”. No deslumbramento “viralático” pelos franceses, ingleses ou norte-americanos, nossas elites negavam Zumbi, Dandara, Pagu ou Carlos Prestes. De João Cândido a Leonel Brizola, para ficar no século XX, todos são retratados como agitadores sociais, não adaptados, mal-educados, “antirrepublicanos” ou mesmo “invejosos”. A verdade é que nada na nossa imensa história de lutas serve à elite.

Uma das maiores acusações ao povo brasileiro é, contudo, o “desmemoriamento”. Ouvimos que o povo brasileiro não tem memória provavelmente desde o século XIX. É a “chaga” que permite que “os políticos” ou “a corrupção” se espalhem por todo o país. É uma forma de culpar o povo pelo que a ele é imposto e, ao mesmo tempo, esconder o sujeito real da ação. Não é o empresário que corrompe. Não é político que se deixa corromper. É povo que não tem “memória”.

A memória é a apreensão subjetiva do passado simpático. Subjetiva porque é mediada pelos conhecimentos e percepções do sujeito, e “simpático” porque somente pode ser memoriado o passado que efetivamente deixou impressão no sujeito, nenhum outro. Assim, existem algumas estratégias que são usadas para cortar a memória individual.

A primeira estratégia é a redução dos tempos sensíveis. Para quem tem fome, todo o passado começa na última refeição e o futuro é a esperança da próxima. Para trabalhadores pagos a valores semi-escravos, os ciclos do tempo são de trinta dias para trás e trinta para frente. É o tempo que recebi o salário até o momento que vou receber de novo. Fora disso é romantização sentimental do passado e não com relação política. A manutenção da população em situação de desespero por sobrevivência tem como resultado a amputação dos tempos. A diferença entre o passado rememoriado e o futuro planejado são uns poucos meses. Não há formação de sujeito político sem uma visualização clara dos tempos. Sem sair das necessidades materiais o homem não planeja e só luta por sobrevivência.

Quando Lula elevou a renda das populações mais pobres, transformou os ciclos de apreensão do tempo em algo mais longos. As populações mais pobres já sonhavam com a formatura dos filhos, os ciclos tornaram-se de 4 anos. Os empregos estáveis e os reajustes anuais aumentavam o futuro e o passado na mesma proporção. Ao contrário do que falam alguns críticos, o governo Lula politizou o povo ao devolver-lhe a condição de referência temporal mais ampla, e isto se verifica até hoje nas pesquisas eleitorais.

A segunda estratégia de dominação que as elites e o sistema capitalista usa para o controle dos tempos é o monopólio sobre a narrativa. Uma mídia oligopolizada e financiada estrutural e conjunturalmente com dinheiro público deforma e conforma as narrativas como bem entender. Paul Ricoeur já mostrava como este uso político da história cria passados e molda o presente das sociedades, em seu livro “A memória, a história e o esquecimento”. No Brasil não é diferente. E, se é verdade que os governos Lula e Dilma mantiveram um afluxo de dinheiro para a mídia privada, também é verdade que foi pela inserção popular do consumo que se criou no Brasil toda uma rede de produção de informações que hoje sustenta uma luta contra a mídia oligopolista. Se não houve a “destruição da Globo” como alguns queriam, ela hoje não tem mais o monopólio da narrativa. Para o bem e para o mal, muitas outras narrativas são produzidas e distribuídas no Brasil após Lula. Conflitam, contrastam, suportam ou ignoram as narrativas midiáticas. Existem, contudo, apesar delas.

A terceira e mais custosa das estratégias de manipulação da memória é a que está em curso no Brasil. O reescrever o passado por meio de uma narrativa de poder político e jurídico legitimado pelo Estado. Isto já aconteceu em todos os lugares do mundo. Nos EUA o genocídio indígena foi reescrito como a luta contra os “fora-da-lei” e pelo bem da sociedade branca. Na França a experiência fascista de Vichy é, até hoje, obscurecida senão recontada como menor do que foi. A Rússia tenta apagar a experiência soviética e abre espaço até para narrativas que enaltecem os Romanov. Na África do Sul o Apartheid ganha novos tons de revisionismo, enquanto o pacto de reconstrução construído por Mandela é atacado em sua gênese.

Não são apenas os conflitos identitários que são apagados pela reescritura do passado. Políticas inteiras de Estado são simplesmente ignoradas ou recontadas ao arrepio da empiria ou da boa pesquisa histórica. De repente, Getúlio Vargas virou o “pai dos pobres” e não mais o mandatário ditatorial que deu azo ao fascismo brasileiro de Plínio Salgado e Miguel Reale, apenas para depois o descartar em benefício de uma ditadura pessoal. A brutalidade do regime militar brasileiro, por exemplo, é comemorada aos quatro ventos, inclusive com declarações de júbilo de parlamentares neo-fascistas.

Indo mais longe, o neoliberalismo, implantado na América Latina, quando reescrito deixa de ser um fracasso em si mesmo e passa a ser um conjunto de políticas “não aplicadas”, que pela incapacidade dos Estados destruíram as economias da região. Um completo absurdo para todos os que viveram aquele período e experimentaram pessoalmente as “delícias” do livre-mercado. Claro, sempre haverá quem diga que o pobre mercado não era livre o suficiente. E, mais livre, ele teria sido construtivo, consistente e nos trazido a felicidade plena.

O governo Lula não seria, assim, diferente. Durante o bombardeio do golpe, até “estudo” com metodologia inconfiável afirmava que o governo Lula não havia diminuído a desigualdade. A grande mídia, os liberais e os fascistas se irmanavam no agitar daquelas páginas vazias e sem sentido, como um troféu em homenagem à mentira, ao escárnio e à leviandade. Hoje, novo estudo cita a diminuição de 50,6% da pobreza no Brasil e esta é toda a informação que a população precisa para continuar suportando o nome de Lula em qualquer cenário político ou eleitoral.

Enquanto os “teóricos” inventam uma mal-formada conceituação dos governos do PT, com o termo “lulismo”, a população segue suportando quem transformou os tempos de suas vidas. Não mais escrava da luta pela fome e sobrevivência, a memória do brasileiro se faz ouvir. Não mais prisioneira dos ciclos de exploração de mais valia em níveis desumanos, e os trabalhadores retomam o olhar sobre o passado e os sonhos sobre o futuro. Uma politização que alguns “teóricos” simplesmente não compreenderam.

Não era o povo brasileiro que, afinal, não tinha memória. Para quem é explorado enquanto luta para sobreviver, os nomes de quem governou, quem governa ou quem governará não pode ocupar tempo ou espaço no desespero do dia-a-dia. Quando a violência é naturalizada os perpetradores são esquecidos. Até por uma questão de sanidade mental daqueles que a sofrem.

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