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sábado, 20 abril, 2024

Um guia popular para o capitalismo

por Michael Roberts [*]

A People's Guide to Capitalism.Não é fácil explicar ideias relativamente complexas de uma maneira simples e clara. Pergunte a qualquer professor. É uma habilidade que falta a muita gente. Nesse desafio, Hadas Thier alcançou um êxito brilhante com seu livro de introdução à teoria económica marxista . Ela apresentou uma explicação clara, directa e interessante de todas as percepções teóricas básicas de Marx sobre a natureza e o desenvolvimento do capitalismo.

E ela fez isso usando exemplos modernos que ajudam o leitor a entender por que a economia política marxista é tão clínica na sua análise da realidade das economias capitalistas modernas. Eu diria que ninguém fez melhor – e eu sei porque já tentei o mesmo no passado , mas sem o êxito de Thier.

Acho que em parte o feito de Thier decorre do facto de ela ser activista do movimento trabalhista e não uma economista académica. Na minha experiência, aos economistas marxistas académicos habitualmente falta capacidade para explicar claramente aos outros as ideias da economia política marxista. Thier menciona a sua própria experiência:   “quando pela primeira vez apanhei um livro sobre teoria económica, li cerca de duas páginas at&eaacute; romper em lágrimas, sentindo-me sem esperança de poder entender teoria económica. O sistema capitalista em geral, e a teoria económica em particular, são propositadamente mistificados. Analisar como o capitalismo funciona é deixado para “os peritos”, e se as coisas lhe parecem um pouco enviesadas, bem, deve ser porque você sabe pouco. Isto é duplamente e triplamente grave para as pessoas da classe trabalhadora, mulheres, pessoas de cor e outros segmentos oprimidos que são diariamente bombardeados com a mensagem de que não podemos ter esperança de compreender sistemas e ideias complexas, muito menos esperar causar impacto”.

Assim, Thier propõe-se a contornar esta situação:   “Faço o meu melhor para apresentar bastantes exemplos concretos e descrições sem jargão a fim de esclarecer os pontos, o que o ajudará a continuar a avançar com o mínimo de afobação” . Ela têm êxito nisso, admiravelmente. Este livro é adequadamente chamado de Um guia popular para o capitalismo.

Thier diz que o seu livro   “pretende seguir o conteúdo e o arco do Capital de Marx. Os três volumes do Capital foram escritos para fornecer um arsenal teórico ao movimento de trabalhadores para o derrube revolucionário do sistema – e para fazê-lo com o melhor fundamento científico possível”. Mas Thier correctamente começa com a história da emergência do capitalismo antes de passar para a teoria (o oposto da abordagem de Marx em O capital ). Ela habilmente descreve os principais conceitos da teoria económica marxista, intercalados com inserções de caixa excelentes em várias questões-chave que se destacam por suas explicações perspicazes. Os assuntos nessas inserções incluem: Marx sobre a natureza; a teoria da utilidade marginal versus a teoria do valor de Marx; como o capitalismo desperdiça tantos recursos; o que é bitcoin?; capitalismo como modo de produção e assim por diante.

Após o capítulo sobre a emergência do capitalismo a partir de organizações sociais humanas anteriores, Thier tem dois capítulos sobre as “questões sumarentas de onde vêm os lucros e a forma particular de exploração do capitalismo”. Nestes, ela “desembrulha os conceitos vitais de capital, trabalho e sociedade de classes”, de modo a que “possamos ver as tendências condutoras do sistema, de competição e acumulação”. Não há espaço nesta resenha para examinar em pormenor a narrativa apresentada por Thier; afinal de contas, o leitor pode fazer isso. Mas, em resumo, Thier cobre o mito dos assim chamados mercados livres e a superioridade da teoria do valor de Marx de que apenas o trabalho cria valor para a sociedade em oposição às teorias de valor da “economia vulgar” da “utilidade” e da “escassez”.

Ela também trata do papel da moedas em economias modernas como “um equivalente universal” de troca de mercadorias. Em contraste com a moderna teoria monetária actualmente na moda , a qual afirma que a moeda é o produto do Estado, ela argumenta que o dinheiro “necessariamente se cristaliza fora do processo de troca”. (Marx). E Thier trata claramente da moeda fiduciária que substituiu o ouro e a prata nas economias modernas e com o papel crescente de moedas digitais ou criptodivisas como o bitcoin.

Ela destaca que Marx argumentou que preço não é o mesmo que valor. Como explicou Marx:   “Os valores das coisas necessárias … podem permanecer os mesmos, mas pode ocorrer uma mudança nos seus preços monetários, em consequência de uma mudança prévia no valor da moeda. Nada teria mudado, excepto as denominações monetárias daqueles valores”. Uma mudança no valor de troca de uma divisa específica não muda o valor embutido numa mercadoria, mas mudará o preço. Portanto, temos aqui o cerne de uma teoria da inflação .

Thier mostra também como os capitalistas devem acumular capital incessantemente (valor apropriado da força de trabalho), levando a uma maior concentração e centralização de activos com uns poucos a expensas de muitos. Existe uma tendência rumo ao monopólio, por um lado, mas “o capitalismo ainda mantém o seu dinamismo através da competição (jostling) constante pelo posicionamento de mercado por parte de grandes e pequenas empresas. Em alguns casos, um negócio mais novo, não tão profundamente enraizado em métodos antiquados, pode sair na frente”. Se não fosse esse o caso, “veríamos a economia cada vez mais dominada por cada vez menos empresas, até que um dia nos encontrariamos com uma única McGoogleAmazon”.

O conceito de imperialismo também é adoptado por Thier. Ele pode não ter sido analisado especificamente no Capital de Marx mas, como observa Thier, Marx e Engels escreveram:   “A necessidade de um mercado em constante expansão para os seus produtos persegue a burguesia por toda a superfície do globo. Deve-se aninhar por toda a parte, colonizar todos os lugares, estabelecer conexões onde quer que seja”.

Os capítulos finais do livro examinam as contradições inerentes ao capitalismo: a anarquia da produção capitalista bem como um impulso incessante para acumular dá lugar a crises regulares na produção e nos mercados financeiros, “as quais marcam a fundo e de modo grotesco pontuam nossa paisagem económica actual”.

Ela expõe o fracasso da análise económica convencional para explicar estas crises regulares e recorrentes na produção e investimento capitalista que periodicamente levam ao desemprego em massa e perda de meios de subsistência por todo o mundo. A teoria económica dominante não pode explicar isto porque a sua análise “começa e termina na superfície da economia – flutuações de preços, política monetária e mercados financeiros. Mas os marxistas argumentam que as crises têm origem no núcleo do sistema e não são impostas ao sistema do lado de fora”. Ela destaca que, embora “os economistas keynesianos ofereçam uma explicação para as crises como inerentes ao sistema, em última análise, uma vez que Keynes não via o crescimento ou os lucros como essenciais ao sistema, ele assumia que a regulamentação poderia providenciar um meio de reafirmar a harmonia do capitalismo”. Por isso, respostas políticas keynesianas tem-se mostrado inadequadas para barrar crises.

Isso me leva à própria visão de Thier da teoria marxista da crise e aqui divirjo. Thier adverte seus leitores de que “marxistas têm discordado sobre como aspectos dos escritos de Marx – queda da lucratividade, superprodução (ou em alguns casos, subprodução), desproporcionalidade entre ramos, o papel do crédito – são enfatizados e como essas peças se encaixam”.

Thier segue Marx e Engels ao, correctamente, rejeitar a versão mais popular: a do subconsumo; nomeadamente que os trabalhadores não podem comprar todos os bens que produziram e que os capitalistas tentam vender, provocando uma queda (slump) devido à ‘falta de procura.

Em vez disso, Thier adota uma teoria de superprodução . Aqui ela segue de perto o trabalho do teórico da superprodução, o bolchevique Pavel Maksakovsky , e do economista marxista Simon Clarke , o qual escreveu:   “os capitalistas lançam uma massa crescente de mercadorias no mercado. No entanto, este aumento na produção não foi motivado pelo desejo de atender à procura em expansão, mas por um desejo de aumentar a produção de valor excedente (surplus value) . Esta compulsão cria uma tendência para os capitalistas superproduzirem – para que a produção seja superior à procura, muitas vezes muito além do que o mercado pode absorver”.

Thier conclui que “a expectativa febril da expansão acaba por sobrecarregar o mercado. Demasiados bens foram produzidos para poderem ser vendidos aos preços exagerados produzidos pelo boom, ou mesmo pelo seu valor. A inflação de preços atinge um ponto em que ameaça a procura efectiva” e então segue-se uma queda.

Thier observa que “A significância e o efeito da tendência para a queda da taxa de lucro, e o seu papel dentro de uma teoria mais ampla da crise, é tópico de debates profundos e de longa data entre marxistas”. Mas ela descarta esta lei que Marx descreve em três capítulos do Volume 3 de O Capital como uma teoria das crises. Para ela, esta é uma teoria de longo prazo “em vez de produzir crises económicas regulares, a tendência da queda da taxa de lucro cria um entrave de longo prazo para o capitalismo”. Ela segue, ao invés, Simon Clarke quando argumenta que “Marx não identificou a tendência de queda da taxa de lucro como uma “causa privilegiada de crises”, mas mesmo assim ela “desempenha o papel de um factor que torna as crises mais prováveis, primariamente porque leva a uma intensificação da luta competitiva entre os capitalistas”. Portanto, a lei da lucratividade de Marx não é uma causa subjacente de crises, embora intensifique a competição.

Quem acompanha este blog e tem lido os meus livros sabe que não concordo com essa interpretação da teoria da crise de Marx. Na minha opinião, a teoria da crise de Marx com base na sua lei da lucratividade é tanto cíclica como secular. Sua lei da lucratividade sugere crises regulares e recorrentes de superprodução e queda, seguidas pela recuperação por algum tempo; mas também por um declínio inexorável ao longo de décadas (e mais ainda) na lucratividade da acumulação de capital, sugerindo um fim para o capitalismo. Mas deixo o leitor decidir.

O último capítulo do livro também inclui uma análise substantiva da Grande Recessão, a maior crise económica anterior do mundo. Neste capítulo, Thier apresenta uma análise vívida das causas da maior queda no século XX (até a presente queda pandémica!). Ela explica os meandros da Grande Recessão através das lentes do papel do crédito (“engraxar as engrenagens do capital”) e do conceito de Marx de “capital fictício” (o resultado da especulação a crédito). Ela não considera que foi “primariamente uma crise financeira” (como argumentam alguns)”. Para ela, “as raízes da Grande Recessão de 2007 a 2009 são mais profundas do que o mundo da banca e da finança”.

Thier nota a enorme ascensão do sector financeiro nos últimos 50 anos que acabou por levar ao colapso financeiro global de 2008-9, mas ela correctamente dá pouca importância ao termo ‘financiarização’ , agora tão prevalecente entre economistas radicais, porque ele pressupõe “uma divisão entre a economia “real” do capital industrial, que se dedica à produção e venda de bens, mas tem pouco capital próprio para disseminar essa actividade, e do capital financeiro, o qual desempenha um papel puramente facilitador da circulação. Na realidade, não há uma linha rígida entre as empresas financeiras e não financeiras”.

No entanto, sua explicação da Grande Recessão recai sobre o que ela chama de “duas crises de superprodução”: a superprodução da China tornando os mercados globais “incapazes de absorver este aumento da produção”; e o aumento da dívida dos EUA, o qual “sustentou uma expansão global da produção e a realização de lucros extraordinários, apesar de nunca resolver o excesso mundial de bens”.

Aqui temos mais uma vez a teoria das crises de superprodução, com um cheiro de Keynes. As quedas são causadas pela superprodução, gerando um excesso de mercadorias . A lucratividade e os lucros desapareceram da explicação causal das crises. Para mim, ‘superprodução’ é a manifestação de uma crise capitalista, mas não a sua causa; essa está na queda da lucratividade do capital . Ao invés disso, Thier adopta uma teoria de “estagnação secular” favorecida por muitos keynesianos e a escola das “finanças monopolistas”; a saber, que as crises não são o produto da queda da lucratividade levando a um colapso do investimento, mas são causadas pelo capitalismo que acha difícil obter “saídas adicionais para o investimento”. Por outras palavras, é muito investimento e produção ao invés de muito pouco lucro que causa as crises. Mais uma vez, considero que isto é uma teoria inadequada das crises e certamente não a de Marx.

Seja como for, Thier escreveu uma excelente introdução à análise do capitalismo de Marx a que se pode ser recorrer regularmente a fim de compreender o desperdício, a destruição e a miséria causados pelo moderno sistema capitalista de exploração.

 

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