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quinta-feira, 3 outubro, 2024

Reflexões sobre a crise brasileira, um livro de Edmilson Costa pondo em questão o capitalismo dependente

Por Daniel Vaz de Carvalho

Capa de ‘Reflexoes sobre a crise brasileira’O livro de Edmilson Costa [1] é ao mesmo tempo ideologicamente rigoroso e simples. Rigoroso sem ser dogmático, pelo contrário, o aprofundar da análise conduz, dialeticamente, a uma consistente síntese. Simples, ser ser simplista, pelo contrário, permite às camadas que as classes dominantes mantêm afastadas da cultura e do conhecimento, a compreensão dos processos económicos e sociais de que são vítimas.

Capa de 'Reflexoes sobre a crise brasileira'

Mas aquelas reflexões ultrapassam o âmbito do Brasil. Nelas vemos como são postas em questão e clarificadas as situações que o grande capital procura manter globalmente, em particular nos países de capitalismo dependente, como na generalidade dos países da UE, designadamente Portugal. São questões que procuramos salientar, questões que os media, ocupando-se com “casos”, fazem por ignorar.

1 – A questão da “burguesia nacional”

O capitalismo dependente define-se fundamentalmente pela subordinação e subserviência da sua burguesia (os grandes grupos económicos) em relação à burguesia do capitalismo hegemónico. Edmilson Costa (EC) torna esta questão muito evidente no seu país, mas, obviamente, não só. “A economia brasileira está intrinsecamente subordinada aos centros do capitalismo internacional”. Os sectores mais dinâmicos da economia brasileira são controlados por capital estrangeiro, que desta forma hegemoniza o processo de produção”. Ou seja, como EC destaca, o capitalismo brasileiro funciona de forma interligada, inseparável e subordinada ao sistema imperialista.

É portanto ilusório pensar “numa aliança entre o proletariado e a burguesia, pois esta não é nacional: os seus interesses estão organicamente ligados ao capital internacional, sempre de maneira subordinada inviabilizando lutar por um programa nacional”.

Numa conjuntura favorável, destaca EC, a subordinação do capital nacional ao capital estrangeiro é ofuscada. Com a crise as classes dominantes, radicalizaram as políticas neoliberais declarando guerra aberta aos trabalhadores não importando que para atingir os seus objetivos tenham de romper com a ordem internacional que eles mesmos criaram, transformando leis internas em leis internacionais, para destruir a soberania dos países, matar os seus líderes, admitir politicamente a tortura, aliar-se a bandos fascistas ou fundamentalistas para derrubar governos que lhe sejam hostis.

O objetivo, acrescenta EC, é institucionalizar o rentismo e a barbárie social. Comportam-se como uma organização criminosa que abandona qualquer verniz de legalidade burguesa tradicional, conspira contra as liberdades democráticas, manipula os media para difundir a mentira como arma permanente para alienar, confundir e amedrontar a sociedade.

“A globalização, a internacionalização da produção e da finança consolidou ainda mais o papel da grande burguesia dos países centrais sobre os países periféricos, interferindo diretamente na formulação das políticas nacionais”.

“Com a globalização e as privatizações os espaços da burguesia nacional foram reduzidos a circuitos intensivos de mão-de-obra e à renda da terra. São nulas quaisquer perspetivas desta burguesia estar interessada na construção de um projeto nacional e muito menos em contradições estruturais com o imperialismo. Pelo contrário, são os principais inimigos do povo”.

“Num gesto servil e de subserviência típica o ministro ultraliberal Paulo Guedes numa visita aos EUA praticamente ofereceu o país, convidando os norte-americanos a aproveitarem a onda de privatizações. Mais parecia um títere norte-americano que um ministro de Estado brasileiro.”

Lá como cá, empresas foram privatizadas aos pedaços ou degradadas tornando-se ineficientes, para serem depois vendidas ao desbarato. As privatizações e o avanço do capital estrangeiro, inclusive sobre empresas privadas, constituíram um severo processo de desnacionalização, conclui EC.

2 – A questão da social-democracia

No Brasil, como em qualquer outro país, a social-democracia recusa-se a pôr em causa o sistema capitalista, acabando por, perante as crises, facilitar a ascensão de fascismos. A lição a retirar é que o capital corrompe e depois destrói. A análise que EC faz do comportamento do PT e aliados é bem esclarecedora desta linha ideológica.

“No mundo inteiro a social-democracia viveu processos semelhantes, envolvendo os principais dirigentes social-democratas europeus. A social-democracia eliminou de vez os últimos vestígios que a ligavam aos interesses dos trabalhadores passando a ser um instrumento da nova ordem económica internacional”. “Mesmo proclamando o socialismo como perspetiva, na prática procuram reformar o capitalismo torna-lo mais humano, praticando uma fantasia masoquista”.

As organizações influenciadas pela social-democracia, prossegue EC, foram-se amoldando à ordem oligárquica, transformando-se em instrumentos dessa mesma ordem, agindo como apassivante das lutas sociais e populares, desmobilizando-as. O PT nem o currículo das escolas militares se interessou em mudar, conservando a mesma doutrina de segurança e anticomunismo do tempo da ditadura militar.

Totalmente ajustado ao sistema vigente, o PT deixou de ter capacidade de responder à luta de classes, perdendo assim a legitimidade e representatividade real junto dos trabalhadores e juventude à medida que a crise se aprofundava. Menosprezou as lutas populares, apostando exclusivamente no processo eleitoral, esquecendo-se que as eleições sem estarem ancoradas num movimento popular organizado e motivado não proporcionarão forças para as necessárias transformações sociais.

“Sob a influência da social-democracia as organizações partidárias, sindicais, camponesas, foram incapazes de forjar um programa classista e uma ideologia proletária, nunca formulando um projeto socialista. Sucumbiram às primeiras benesses dos inimigos de classe, adaptando-se à ordem capitalista e realizando uma intensa deseducação política”.

No governo o PT pôs em prática a cartilha neoliberal proporcionado imensos lucros ao grande capital. Com Dilma figuravam na Fazenda (finanças) um banqueiro ultraortodoxo, na Agricultura uma latifundiária, na Indústria e Comércio o presidente da Confederação Nacional da Indústria. Tudo o que tinha sido prometido na campanha eleitoral foi desde logo esquecido, praticando-se o oposto.

Por fim, Dilma foi destituída e substituída pelo governo corrupto e ilegítimo de Temer. Embora 90% da população estivesse contra este governo, o PT não quis levar às últimas consequências a luta de massas, que seria necessário intensificar para o derrubar, vivendo na ilusão que tudo podia mudar com eleições. Em lugar da luta de massas, “o PT montou uma máquina eleitoral movida a dinheiro oriundo de doações legais e ilegais de grandes empresas. Da degeneração ideológica, passou à corrupção individual”. “Perante a passividade do PT, a agudização das lutas sociais foi aproveitada pela direita”.

3 – A questão do Banco Central

Autonomia, independência e competência técnica, caracterizam a orgânica dos bancos centrais nos países submetidos ao Consenso de Washington. EC desmistifica totalmente esta questão.

Ao banco central compete gerir a dívida pública, definir a taxa de câmbio, as taxas de juro a serem pagas pelo governo, administrar as reservas do país, cumprindo as determinações do Consenso de Washington. O Banco Central do Brasil tem autonomia desde o início da década de 1990. Lula entregou a sua direção a Henrique Meireles, ex-presidente do Bank of Boston.

A dita “independência” do Banco Central é (como na UE) uma forma de se constituir como poder paralelo à margem do sistema democrático. A independência é desmascarada pela promiscuidade entre as suas Direções e o sistema financeiro. A oligarquia detém o seu controlo a 100%, “fica com a chave do cofre sem prestar contas a ninguém”. Além disto, salienta EC, a oligarquia, tomou de assalto, todos os ministérios da área económica e social para impor uma violenta regressão social e entregar património público e riquezas nacionais aos monopolistas nacionais e internacionais.

A doutrina imposta pelo Banco Central (tal como pelo BCE) é a da estabilidade de preços, sendo o crescimento e o emprego uma derivada da moeda estável. As metas da inflação tornam-se uma camisa de força para organizar a transferência de rendimento do sector público e trabalhadores para a finança.

Lá como cá, a ação do Banco Central é determinada pelas seguintes variáveis: responsabilidade orçamental, superavit primário, autonomia operacional, metas de inflação. “Este conjunto de variáveis coloca o país numa terrível armadilha, qualquer medida que favoreça os trabalhadores entra em choque com esta política e com os interesses do aparelho capitalista mundial. A economia é assim dominada por “programas de estabilização” baseados na ancora cambial, na ancora da taxa de juros, na ancora salarial”.

É espantoso como isto não é posto em questão. O álibi da “competência técnica” para colocar gente ligada ao grande capital à frente das instituições, baseia-se num mito. É simplesmente “competência” para seguir princípios errados. Uma competência que não foi capaz de tirar o capitalismo da crise sistémica desde 2007-2008.

Com a liberalização do comércio externo e a ligação ao dólar, dito para estabilizar a moeda e atrair dólares, as consequências foram extremamente negativas: a Balança Comercial tornou-se deficitária, o ritmo de crescimento teve uma quebra acentuada. “A dívida, com o governo Lula praticamente triplicou. O Brasil tornou-se campeão das taxas de juro a nível mundial com o argumento de captar recursos externos, favorecendo credores e a agiotagem internacional”.

Tal como na UE “a economia é administrada em função da dívida e o governo privilegia o pagamento de juros às funções sociais”. Entre 2011 e 2013 foram pagos no total 741 mil milhões de reais de juros. (considerando um câmbio médio no período cerca de 370 mil milhões de dólares).

4 – A questão do desenvolvimento e da crise

Estando o Brasil entre as 10 maiores economias do mundo, os seus trabalhadores recebem um dos salários mais baixos do mundo industrial. O Brasil é uma economia monopolista em todos os sectores. Os 100 maiores grupos económicos faturam 56% do PIB. Antes da pandemia o desemprego atingia 28 milhões de trabalhadores. Incapaz de ultrapassar as suas crises, o capitalismo desenvolveu uma contrarrevolução, “tentando reconstruir o mundo à imagem e semelhança da oligarquia internacional na qual apenas 1% se apropria da maior parte da riqueza mundial”.

Conforme EC salienta, dadas as dificuldades de acumulação na economia real, é imposto aos países ligados à economia dos EUA, um modelo de gestão económico e social baseado na hegemonia do polo financeiro para o qual se deslocam os capitais. O mercado torna-se o regulador (ou antes o desregulador) da economia e do social, privatizando, adotando a livre mobilidade de capitais e liberalização do comércio externo. “Tudo isto acompanhado de uma ofensiva ideológica exaltando o individualismo e as desigualdades como elementos salutares, além da ofensiva contra sindicatos como nocivos à concorrência e à acumulação de capital”.

Querendo asfixiar os sindicatos estipulou-se que acordos entre empresas e trabalhadores valem mais que as leis do trabalho (como a direita pretendia e pretende por cá). Num ambiente de desemprego é um convite à barbárie social, com a oligarquia a colocar os trabalhadores perante a chantagem de optarem entre mais direitos e nenhum emprego ou não possuir direitos e ter emprego.

Pretendendo dinamizar o capitalismo na órbita das finanças, sem necessidade de criação de mais-valia na produção, a consequência foi a crise de 2007-2008, crise que persiste sem que no sistema seja encontrada uma solução para estabilizar a economia e retomar o crescimento.

Uma vez que a mudança de rumo não é possível ao sistema, “o capital realiza uma ofensiva mundial contra fundos públicos, salários, direitos, não hesitando em restringir liberdades, ampliar a repressão e incentivar grupos fascistas como plano B, caso a situação fuja ao seu controlo. Se estas medidas eram aplicadas apenas nos países da periferia, agora em vários países da Europa são colocados no poder governos fantoches ou representantes diretos do capital”. As liberdades democráticas e direitos tornam-se um empecilho aos interesses das oligarquias, que propalam não haver disponibilidades financeiras para as pagar.

Com os seus dogmas, o neoliberalismo revela a degeneração ideológica do capitalismo, derrotado pela vida as suas ideias faliram, porém para se salvarem da bancarrota os defensores do Estado mínimo recorrem precisamente ao Estado, à custa da austeridade sobre as camadas populares. O capital não tem mais nada para oferecer aos trabalhadores e os teóricos capitalistas não possuem fundamentos sólidos para defender o sistema.

Os media anunciavam catástrofes se as “reformas”, como a da segurança social, não fossem aprovadas. Mas o problema, acentua EC, não é a Previdência Social, mas os juros de uma dívida que em 2017 atingiu 3,55 milhões de milhões de reais, quase triplicado em 10 anos. No Chile onde a reforma foi feita, 90% dos reformados recebe menos que o salário mínimo.

“Quem imaginava que as classes dominantes iriam refletir sobre a conjuntura e corrigir as políticas, enganou-se redondamente. A elite parasitária, que hegemoniza o capital financeiro, radicalizou ainda mais as políticas neoliberais, tornou-se incompatível, mesmo com a democracia formal, apelando, por isso, a soluções autoritárias”.

“Os fascistas do mercado desprezam os seres humanos que não fazem parte da elite que domina o governo. Uma equipa de tecnocratas arrogantes e sem escrúpulos são os cães de guarda do que há de mais conservador e parasitário.”

5 – A questão do governo Bolsonaro

Num contexto de crise a agravar-se, diz-nos EC, as classes dominantes recorrem e apoiam a extrema direita: a democracia representativa só interessa à burguesia quando ao serviço dos seus interesses. Bolsonaro, um político de extrema direita, era visto como um tipo folclórico sem o mínimo de condições de ser eleito. Porém, com o apoio do ultraliberal Paulo Guedes, a finança passou a também a apoia-lo e as várias fações burguesas foram abandonando as suas candidaturas.

“Contra o candidato do PT foi desenvolvida uma campanha de mentiras e intrigas que captou vastos sectores da população descontentes com a velha política e a corrupção. Parte do proletariado acabou apoiando Bolsonaro, apresentado como anti-sistema e que iria acabar com a corrupção”. A sua vitória foi efetivamente uma derrota política, social e ideológica, resultado tanto de erros e ilusões do PT como de uma fraude agora desmascarada.

A derrota do PT, mostra a desmoralização da política da conciliação de classes e do abandono do trabalho de base, preenchido por seitas religiosas e aventureiros de todos os tipos.

Face ao aprofundar da crise, o governo social-democrata do PT já não tinha condições para executar o papel de controlador e apassivador das lutas sociais que desempenhara. A burguesia necessitava de ajustes radicais imediatos, para rebaixar salários, cortar direitos e despesas sociais e disciplinar a seu modo a força de trabalho. Era chegada a hora de um governo do grande capital que executasse de maneira mais rápida e profunda os ajustes repressivos contra os trabalhadores e o processo de privatizações. Tudo isto mascarado de combate à corrupção. Contudo, destituída Dilma a operação “Lava Jato” foi parada.

Devido a anos de despolitização, diz EC, os media puderam transformar as manifestações populares em luta contra a corrupção – quando são os sectores burgueses são os maiores corruptores do país – ao mesmo tempo pequenos grupos fascistas foram mobilizados representando a tropa de choque das classes dominantes nas ruas.

Com Bolsonaro, o grande capital colocou no governo os seus mais ardorosos representantes para operar políticas neoliberais e deitar mão aos recursos públicos. Foram postas em prática reformas radicais, como a da proteção social para favorecer os banqueiros; leis laborais eliminando direitos e garantias conquistados no passado; redução do salário mínimo; entrega ao capital privado de aeroportos, ferrovias, portos e empresas públicas, cortes no ensino público, etc. Recrudesceu também a política contra indígenas, repressão e assassinatos dos pobres das periferias, proteção dos predadores ambientais.

“Aplaudido pelo grande capital, Bolsonaro comprometeu-se a prosseguir e ampliar as políticas ultraliberais de Temer contando com o superministro Paulo Guedes, eficiente na conspiração, chantagem, clientelas, ofertas a parlamentares e governadores para conseguir os seus objetivos. Não importa que tenha elogiado torturadores se é racista e misógino, falam mais altos os interesses económicos da burguesia”.

A popularidade de Bolsonaro reduziu-se de maneira expressiva com as trapalhadas nacionais e internacionais e ataques diretos aos salários, pensões e funções sociais do Estado. O apoio a Bolsonaro centra-se agora em três grupos: os mais corruptos, os fascistas orgânicos e militares, quase todos generais, para os quais o inimigo principal são as pessoas do seu país.

6 – Concluindo

Como EC reporta, no Brasil os 10% mais ricos possuem 42,5% do RN, os 10% mais pobres 1,2%. O proletariado enfrenta o caos urbano (4 horas para ir e voltar do trabalho) e convive diariamente com a violência policial. Os serviços públicos, educação, saúde, saneamento podem ser comparados aos dos países mais pobres do mundo.

O país é dominado por uma classe dominante truculenta, reacionária, subsidiária do imperialismo, que dissimula intenções e objetivos. Uma classe dominante, obtusa, que trata a questão social como um caso de polícia, inimiga do proletariado, não medindo esforços para derrotar os trabalhadores mesmo que para isso tenha de impor um regime de força ou pedir ajuda ao capitalismo internacional.

Ao longo da História os sectores de esquerda que se aliaram à burguesia foram absorvidos, humilhados e derrotados pela própria burguesia quando entendeu que já não eram funcionais aos seus interesses. “Querer fazer alianças com os sectores dominantes é puro masoquismo”.

Sem a direção de uma vanguarda classista e revolucionária, as manifestações populares que se verificaram no Brasil (como em países da UE) acabam por ter efeitos reduzidos e mesmo ser aproveitadas pela direita.

EC torna claro que não é possível confundir a soberania nacional com os interesses de uma oligarquia que mantém os trabalhadores sobre-explorados e em precárias condições económicas e de segurança. Como em qualquer outro país submetido à oligarquia, a reconstrução do Brasil só pode ser realizada com um consequente programa alternativo na perspetiva dos mais vastos interesses populares.

Ver também:

A crise brasileira: reflexões implacáveis

[1] Edmilson Costa, doutorado em economia e em Filosofia e Ciências Humanas, autor designadamente de A crise mundial, a globalização e o Brasil, A globalização e o capitalismo contemporâneo.   É secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB).   O livro é editado pelo Instituto Caio Prado Jr., S. Paulo, 2020, 360 p., ISBN 978-65-87543-01-7

 

Esta resenha encontra-se em https://resistir.info

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