Ter gigante petrolífera deveria servir para reduzir nossa exposição ao mercado internacional. Nem os norte-americanos ousam ser liberais nestas questões
O governo, velho de dois longos anos, teve seu réquiem celebrado com pompa e circunstância pela insurreição dos caminhoneiros, que ora se batiza de greve, ora de paralisação e, até, de locaute, pois sua operação e logística a muitos sugerem aliança entre empresários e autônomos, mal saídas, as duas categorias, de fracassadas negociações trabalhistas.
Uma quer mais lucro; outra pleiteia melhor remuneração e melhores condições de trabalho. De ambas depende o consumo de 207 milhões de brasileiros, o que parece ser ignorado pelo dr. Parente, feiticeiro do caos.
Nutro justificada desconfiança quando nos falam em comunhão de interesses entre trabalhadores sobre-explorados como os motoristas de caminhão (baixa remuneração, péssimas condições de trabalho, jornadas escorchantes que chegam a 12 horas diárias, riscos de assaltos, péssimas estradas, semanas inteiras fora de casa) e empresários, estes somente preocupados, ora em alargar suas margens de lucros, ora em aumentar a acumulação de mais-valia.
Segundo dados disponíveis da frota brasileira de caminhões, 60% pertencem a grandes empresas (que controlam 64% dos fretes do país), 30% a caminhoneiros e 10% a pequenas empresas que sublocam seus veículos aos grandes empresários.
Por que, então, preocuparem-se os trabalhadores com a carga tributária que incide sobre os negócios do patronato?
O fato objetivo é que a paralisação, associada aos piquetes, bloqueios e à obstrução das rodovias, pôs a nu variadas mazelas, como a equivocada política de preços da Petrobras, a vulnerabilidade de nossa economia aos choques externos, dependência ao transporte rodoviário e este à dependência de combustíveis fósseis e a falta de proteção e estímulo à produção familiar de alimentos.
E colocou ainda outros, tão ou mais graves, como a saída de Temer, a solidariedade dos aparelhos repressivos aos grevistas, os irresponsáveis pedidos de “intervenção militar” tendo como pano de fundo a factual ausência de um governo que já findou, mas que, no entanto, permanecerá perambulando a esmo até o final de dezembro, tendo, ademais, a missão de presidir aquela que pode ser a mais dramática eleição desde o fim da Nova República. Aliás, o caos exige toda a mobilização possível para garantir as eleições.
Preocupemo-nos, pois, em nossa História, não é raro que crises dessa ordem estimulem aventuras autoritárias.
Após uma semana de desvario e ameaças, pode o ainda presidente Temer permanecer residindo no Palácio do Jaburu, mas será, doravante, apenas um espectro, assustando meia dúzia de almas penadas, os solitários fantasmas de sua corte.
Antes da crise, o chamado presidente tinha, apenas, 3% de apoio na opinião pública (segundo pesquisa IPSOS). Como dizia ele quando maquinava a derrubada de Dilma Rousseff (a ex-presidente ostentava 6% de apoio popular), é impossível um presidente sobreviver a tanta rejeição. E o que dizer, agora, a propósito, quando Temer carrega de origem a mácula incurável da ilegitimidade.
Preocupantemente, o ministro Gilmar Mendes, que continua assessor de Temer em tudo o que não merece respeito, elabora e articula, em nome do mandatário, ‘emenda constitucional’ instituindo um tal de ‘semipresidencialismo’, e o Senado se apresta em regulamentar a eleição indireta para as hipóteses de vacância da cadeira presidencial.
A paralisação até aqui vitoriosa também expõe em sua inteireza a irresponsabilidade do neoliberalismo ortodoxo, o império do mercado e do privatismo que domina a política e a economia brasileira, desde o golpe de 2016, pondo por terra todo e qualquer projeto de desenvolvimento nacional autônomo.
A atual política de preços dos combustíveis é a manifestação de verdadeira alienação política. Os mercadeiros, cogitando tão-somente dos interesses dos acionistas da empresa, condenam a economia nacional à turbulência (nos primeiros cinco dias de protesto as perdas, diz a FSP, já somariam 10 bi), pondo mesmo em risco o pacto social que sustenta nossa democracia. Pois trata-se de momento grave, marcado pela ausência de autoridade e liderança, e quando, aos olhos do povo, estão desmoralizados os três poderes da República.
Não há em que nem em quem confiar.
A crise política é, igualmente, uma crise da legitimidade institucional, abrindo espaço para toda sorte de aventureirismo, quando a movimentação de massa proporcionada pelos grevistas, certamente a maior e a mais contundente de quantas tivemos até aqui, se abraça com a generalizada insatisfação da sociedade, animando as vivandeiras de plantão.
A visão tacanha do ainda presidente da Petrobras leva-o, após submetê-la a um regime de lipoaspiração de ativos, a trata-la como uma produtora qualquer, independentemente da importância estratégica dos combustíveis para o país, assim divorciando a empresa de seu papel como fator de dinamização da economia nacional.
Por razões que não são justificadas, os preços do petróleo e seus derivados, arrancados de nosso solo e aqui refinados, são submetidos aos preços internacionais, e para que se sintam bem os acionistas privados da Petrobras (e não o povo brasileiro), passa a reajustar os preços dos combustíveis e do gás de cozinha segundo o comportamento do preço internacional do barril de petróleo (em alta) combinado com as taxas de câmbio.
De janeiro até aqui o preço do diesel na bomba subiu 38% e hoje está 56% acima da média internacional. Os aumentos sucessivos do gás de cozinha, para além do que ocorria nos trágicos tempos da inflação desenfreada, penalizam as populações mais pobres, que voltam em escala crescente a cozinhar a lenha e carvão.
Foram 229 reajustes nos últimos dois anos, e o Dr. Parente, insatisfeito, pleiteia reajustes diários.
Tudo isso para que a empresa, como se instalada em Marte, pudesse distribuir dividendos, quando ainda ontem, mentindo para o Mercado, diziam seus atuais dirigentes, que a Petrobras estava falida. Era a senha para fazer cair sua cotação nas bolsas de São Paulo e Nova Iorque, facilitando sua alienação.
Essa política de preços é particularmente danosa para caminhoneiros, desastrosa para a agricultura (que não é apenas o agronegócio), para a indústria em crise e para o comércio. Mas é um estorvo incontornável para o consumidor brasileiro, pois tudo que chega à sua porta viaja de caminhão de um extremo a outro do País. E chega mais caro. Ou os novos deuses do Olimpo não sabem que quando aumenta o preço do combustível aumentam todos os preços?
São os fabricantes de ventos que nos ameaçam com tempestades.
Colocar 200 milhões de pessoas na dependência de dois ou três preços que não são determinados pela nossa economia é mais do que irresponsabilidade, é crime de lesa pátria. E, de permeio, reforça o projeto de marketing que visa a desacreditar a Petrobras, abrindo fenda no apoio que sempre lhe dedicou nosso povo, a quem, aliás, a empresa deve sua criação.
Os problemas decorrentes do petróleo no Brasil e no mundo escrevem uma história de muitas lutas, de exploração e guerras. Está à vista a tragédia do Oriente Médio, que se aproxima da Venezuela. Poucos países, fora os donos do mundo, têm o controle sobre suas jazidas e são senhores de sua exploração e comercialização, usando assim o chamado ‘ouro negro’ em benefício de seu povo.
O Brasil é um deles, graças ao monopólio estatal (já quebrado), graças ao sucesso da Petrobras, graças à descoberta e exploração do pré-sal, graças à autonomia do refino, por sinal, hoje sob ameaça.
Possuir uma gigante petrolífera com grandes reservas associadas à experiência em prospecção, lavra e refino, deveria servir para reduzir nossa exposição ao mercado internacional, ainda mais quando essas oscilações têm óbvio efeito sobre a economia de um modo geral e de forma particular junto ao câmbio e a inflação, ou seja, sobre os destinos do País e a qualidade de vida de todos nós.
Em questões dessa ordem nem os norte-americanos ousam ser liberais. O que ainda resta de governo Temer, porém, transforma em empecilho tudo o que, nas mãos de patriotas, seriam condições positivas de defesa de nossa economia.
O grande projeto do atual Planalto é transformar a Petrobras em exportadora de óleo bruto e importadora de produtos finais, como o óleo combustível, o óleo diesel, o gás veicular, o gás de cozinha e a gasolina.
Nossas refinarias já trabalham com ociosidade (as operações de refino foram reduzidas em 30%), para que importemos, como estamos importando, gasolina e diesel dos EUA, expondo assim os preços internos às cotações internacionais, em momento de alta volatilidade dos mercados. Os derivados importados já representam 24% do mercado nacional e em apenas quatro meses compramos quase 7 bilhões em óleo diesel dos EUA).
O objetivo dessa súcia é colocar um setor consabidamente estratégico para a segurança do País nas mãos de um mercado irresponsável. A desvalorização da Petrobras, como a desvalorização da Eletrobrás é, nessas condições, um subproduto da crise, planejada para tornar mais fácil a alienação de nossas empresas.
A fragilização da Petrobras, em marcha, se completará com a destruição da Eletrobrás, a desorganização do mercado de trabalho, a privatização desenfreada, a redução do papel dos bancos públicos, o enxugamento do Estado indutor de desenvolvimento, condenando às calendas gregas a retomada do projeto industrialista, mesmo se o povo reconquistar nas eleições de outubro próximo a condição de condutor de seu destino.
*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
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