O grande delírio racionalista não faz outra coisa senão surrar o real para que este obedeça. (Edgar Morin?
Renato Dias Baptista*
A lenda da Esfinge que afligia a cidade de Tebas ao apresentar um enigma e devorar aqueles que não respondessem corretamente, manifesta-se claramente no momento atual. Somos devorados pela ausência de honestidade no mundo politico e entramos num labirinto de complexidade.
O maior representante desse período obscuro é o presidente brasileiro, e ele aciona seu mecanismo de autofagia. Em plena pandemia, Jair Bolsonaro ‘corre nu pelas ruas’ mas, ao contrário de gritar Eureka e de possuir a inteligência de Arquimedes, suas atitudes e nudez revelam a incapacidade de respostas coerentes e uma deterioração cognitiva.
A proposito, sua mais recente alucinação é demonstrada nas historietas de seu recente discurso, entre elas, ao estilo ‘zelador do planalto’ e aludindo um desespero, informa que “mandou desligar o aquecedor da piscina olímpica do Palácio do Planalto” como sinal de bom uso dos recursos públicos. Enquanto tenta dispersar a realidade, seu governo se perde num labirinto sem sequer ter o apoio de Ariadne. (Na mitologia grega, é Ariadne que entrega um fio de lã para que Teseu achasse o caminho de volta ao entrar no labirinto). É nesse contexto que as fragilidades evidenciam a precariedade material e de caráter. Por não existir uma resposta presidencial certa, somos igualmente devorados pelas ideias mais insensatas.
Quando ele disse que “abrir o comércio é um risco que eu corro: se agravar vai cair no meu colo”. Bolsonaro busca uma ficção que acalente, mesmo que isso aponte em direção ao abismo. Como alguém poderia acreditar que seria um risco apenas “dele”? Ao passo que os bons cientistas se recusam dar previsões ou datas sobre algo que desconhecem, ele busca uma narrativa rudimentar. Talvez a resposta se encontre na construção de um distanciamento da morte, muito presente na cultura do consumo. Nos shopping centers o tempo é “eterno”.
Por estarmos perante um código comunicacional desconhecido, este é um dos maiores conflitos entre ciência e política de governo. O vírus afeta a todos, porém a maior tormenta é não decifrá-lo. Quando, por alguns momentos tudo parece ser um território conhecido, a doença mata crianças, adolescentes e adultos sem as denominadas comorbidades. Então, esse protagonista viral parece estar Ad libitum num território em que o presidente-regente conduz seu povo em direções incertas. E por isso, mesmo sem conhecimento, ele reina de forma absoluta no absurdo, e é no absurdo que, se a vaidade representa um entrave, a ignorância é seu mecanismo de defesa mais útil.
A Covid-19 expõe as profundas fissuras sociais e também revela os detritos que já estavam aqui; eles ‘pacientemente’ esperavam por emergir. Os inescrupulosos relativizam a morte na tentativa de permanecer em sua ego-posição politica, nem que seja necessário ideologizar o vírus. Sim, enquanto os cemitérios não estão abarrotados, é preciso matar a dignidade. Como disse Edgar Morin “O grande delírio racionalista não faz outra coisa senão surrar o real para que este obedeça.”.
Dessa forma, na ânsia de terminar a quarentena, busca-se inserir o tempo-calendário em tudo. Esse comportamento é muito comum ao se priorizar a economia em detrimento da vida. É assim para se determinar a produtividade de alguém, para definir o momento de compra ou venda de ações e, entre tantas quantificações, estipular a data para o fim da pandemia. Existe uma ansiedade generalizada por prazos, até mesmo quando, no caso brasileiro, não se tenha o real controle da situação. E decifrar amadoramente há muito tempo se tornou um espaço de exploração política. É nas comunidades sem água ou esgoto onde a promessa de solução dos problemas arrecadam votos. Ao vencer uma eleição, será melhor não cumprir a palavra para que seja possível se perpetuar no poder, é preciso apenas ‘manter’ a promessa. Ironicamente, o desespero deseja mais datas do que soluções.
A despeito de não acreditar em mudanças sociais profundas, as perspectivas contundentes que perfilam nas mídias globais permanecerão em nossa mente por muito tempo. Nesse repertório sinistro estarão as cenas de corpos nas ruas de Guayaquil, no Equador, nas ambulâncias represadas pela ignorância e o negacionismo das ‘carreatas’ brasileiras, nos gráficos carregados de eufemismo que contam os mortos em países como, por exemplo, Itália, Espanha e Estados Unidos e naquilo que, infelizmente, ainda está sendo esculpido. Ainda no Brasil,. enquanto os números sobem, um general diz que a imprensa não pode falar tanto das coisas ruins. Claro, para se negar é preciso esconder as evidencias. Por isso Morin é certeiro ao dizer que “se o real não obedecer à ideologia, a ideologia poderá repudiar o real.”.
Sim, tudo isso vai passar, mas quando a tragédia traz derrotas ela tende a ser maculada de vitórias fictícias. E ela o faz neste exato momento, até que possamos nos indignar.
Renato Dias Baptista é doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor associado da Universidade Estadual Paulista, UNESP.
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