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sexta-feira, 19 abril, 2024

O que ainda resta após 200 anos de Marx e 50 das marchas de Paris?

Não é difícil entender por que Macron prefere esquecer o que aconteceu em maio de 1968 (Zakaria Abdelkafi/AFP)
por Antonio Luiz M. C. Costa — Carta Capital

De certa forma, 1968 tem hoje menos a dizer aos países ricos do que o século XIX. No Sul, é um pouco diferente

Neste maio de 2018, comemoraram-se tanto o bicentenário do nascimento de Karl Marx, no dia 5, quanto o cinquentenário do maio de 1968, deflagrado pela passeata do dia 6 contra a invasão da Sorbonne pela polícia, três dias antes, iniciando o movimento que culminaria em uma greve geral de mais de duas semanas a partir do dia 13.

Desse movimento, mais recente e com atores ainda vivos, seria de se esperar maior eco, para celebrá-lo ou lamentá-lo.

Entretanto, é o rebelde do século XIX quem inspira novos filmes, livros e comemorações, enquanto Daniel Cohn-Bendit, o mais notório protagonista do levante de Paris, vive uma trivial carreira de europarlamentar do Partido Verde alemão e os demais líderes estão ainda mais esquecidos: Alain Geismar vive uma aposentadoria obscura e poucos souberam da morte de Jacques Sauvageot em um acidente de tráfego em outubro de 2017.

A França sente-se mais incômoda com a herança de 1968 do que a Alemanha com a de 1818. Malu Dreyer, governadora social-democrata da Renânia-Palatinado, e Andrea Nahles, líder desse partido que há muito abandonou o marxismo, não hesitaram em participar da inauguração, em Trier, de uma nova estátua do mais ilustre de seus cidadãos, doada pela China.

Houve protestos da AfD, partido xenófobo de ultradireita e de um grupo de “vítimas do comunismo”, mas em geral a opinião pública viu o evento e os debates como normais.

Já na França, Emmanuel Macron decidiu não participar de nenhum evento ligado ao maio de 1968, pelo risco de inflamar os protestos contra suas reformas trabalhistas e educacionais, demasiado parecidos, apesar dos motivos diferentes, com aqueles cujos desdobramentos puseram fim à carreira de Charles de Gaulle.

O general cogitou chamar o exército francês na Alemanha para esmagar o protesto, mas, após se convencer de que Moscou não queria uma revolução em Paris, fez um acordo com os sindicatos socialistas e comunistas e restabeleceu a normalidade. Entretanto, não recuperou o prestígio e renunciou menos de um ano depois.

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Desde os anos 1970, os nouveaux philosophes esforçaram-se por destruir o legado da revolta francesa e conseguiram tornar sua lembrança quase tão embaraçosa quanto a de Vichy. Um jornalista do El País pediu comentários ao ex-revolucionário Régis Debray e este respondeu: “Não me interessa. Nada.

É um exercício de intelectual francês e eu não sou um intelectual francês”. Há uma narrativa, próxima daquela de Debray em seus tempos de intelectual, segundo a qual o movimento de 1968, em luta tanto contra o “Estado burguês” quanto com o stalinismo (apesar do interesse pelas revoluções chinesa e cubana), foi a origem do liberalismo moderno, ao resultar em mais tolerância moral, menos formalidade nas reações privadas, promoção do consumo e redução do papel do Estado na manutenção da ordem social.

Não é convincente, ao menos quanto à França. O resultado imediato, por lá, foi a elevação de 35% do salário mínimo e de 10% dos salários em geral, e a médio prazo uma forte resistência a políticas neoliberais que se impôs aos governos conservadores de Georges Pompidou a Nicolas Sarkozy e chegou a criar a semana de 36 horas.

Desde a era de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, as direitas encarniçaram-se contra a “exceção francesa”, mas os avanços trabalhistas e estudantis ficaram basicamente intactos até o governo Macron – aliás, também o primeiro, desde De Gaulle, a se atrever a ordenar à polícia invadir campi universitários. Laurence Debray, filha de Régis que fez carreira nas finanças, aplaude o presidente por expulsar, finalmente, do poder a “geração de 68” e trazer a “mudança”.

Entretanto, se poucos dos protagonistas mantiveram o radicalismo de 1968, mais raros foram aqueles que aderiram à direita conservadora ou liberal. A maioria tentou construir ou apoiar esquerdas alternativas e movimentos ambientalistas.

André Glucksmann, que envelheceu apoiando a guerra de Reagan contra os sandinistas, os testes nucleares de Jacques Chirac no Pacífico e os bombardeios de Israel em Gaza, foi a exceção, não a regra.

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É mais fácil à Alemanha lembrar e honrar o revolucionário de Trier do que à França acertar as suas contas com rebeldes de Paris (Harald Tittel/DPA via ZUMA Press/Fotoarena)

No caso dos Estados Unidos, é mais razoável falar do papel de movimentos de 1968 na construção do neoliberalismo. Embora sua contracultura tivesse contatos com os rebeldes europeus, teve um desenvolvimento à parte e um caráter fortemente individualista, à parte o movimento negro e outras exceções.

De fato, os hippies e Woodstock têm uma conexão com os oligopólios informáticos e à atual mercantilização sem precedentes da vida privada.

A Apple foi uma homenagem aos Beatles e à dieta alternativa frugívora por algum tempo adotada por Steve Jobs. Timothy Leary, guru da filosofia lisérgica dos anos 1960, disse que “o computador pessoal é o LSD dos anos 1990”.

Também o Tea Party e os movimentos libertarians patrocinados pelos irmãos Koch e pelo Cato Institute, inclusive no Brasil, têm suas raízes em Karl Hess, assessor do ultradireitista Barry Goldwater que descobriu afinidades entre a defesa pelo republicano do direito de empresários e governos locais de rejeitar as medidas de igualdade racial do governo federal e os anarquistas contrários ao recrutamento obrigatório para o Vietnã.

De modo mais geral, os setores mais modernos do capitalismo viram na contestação da moral tradicional mais oportunidades que riscos. Abraçaram a ânsia por direitos, prazeres e liberdade a ponto de transformar a felicidade, o sexo e a realização no trabalho em pesadas obrigações, cujo cumprimento precisa ser diariamente atestado nas redes sociais.

Esse individualismo, por outro lado, abriu espaço para os movimentos feministas, LGBTs e de liberdade sexual, hoje muito associados no imaginário social ao maio de 1968, apesar de lemas como “é proibido proibir”, “a imaginação ao poder” e “sejam realistas, peçam o impossível” se referirem, na época, a outras questões.

Os motivos de revolta dos estudantes incluíam a proibição de visitas dos jovens ao dormitório das colegas e a obrigação destas de voltar para os quartos antes das 23 horas, mas eram mais presentes as queixas contra outras estruturas arcaicas e aulas nas quais se ouviam em absoluto silêncio as palestras dos mestres, que só no final permitiam perguntas.

A contestação do stalinismo e influências transatlânticas mútuas abriram caminho a abordar com seriedade questões antes menosprezadas pela esquerda e a pensadores como Michel Foucault lhes dar legitimidade intelectual e política.

Mas, se falarmos dos EUA, precisamos também mencionar os movimentos de 1968 em outras partes do mundo, independentes dos acontecimentos franceses, mas encorajados por estes. Foi também o ano de rebeliões e passeatas na América Latina, às quais o regime mexicano reagiu com o massacre de Tlatelolco de 2 de outubro, no qual centenas de estudantes foram executados, e a ditadura brasileira com o AI-5, em 13 de dezembro.

Meses depois, o Cordobazo desafiou a ditadura de Juan Carlos Onganía nas ruas argentinas. Uruguai, Bolívia e Colômbia também foram palcos de levantes de trabalhadores e estudantes. Foi o ano em que Paulo Freire escreveu a Pedagogia do Oprimido, Gustavo Gutiérrez fundou a Teologia da Libertação e Lula se filiou ao Sindicato dos Metalúrgicos.

As direitas continuaram no poder e a repressão recrudesceu, mas ainda mais que nos EUA ou Europa foi um ano vital para deslegitimar velhas formas de dominação, atualizar pautas reformistas e revolucionárias e abrir caminho não só às minorias, mas às grandes massas ainda marginalizadas na cena social e política. Por aqui, esse ciclo está longe de se completar e ainda enfrenta feroz reação conservadora. Este outro 1968 continua bem vivo ao Sul do Equador.

O do Norte, pelo contrário, se estiolou. Nacionalismo, xenofobia, a defesa da “civilização cristã” contra a suposta ameaça islâmica e a timidez das esquerdas estão nos antípodas de 1968, como também a natureza das tensões sociais.

Há 50 anos, Europa e EUA viviam pleno emprego, crescimento econômico e desigualdade de renda moderada, mas se protestava contra estruturas sociais e políticas rígidas e obsoletas. Hoje, estas bem ou mal foram flexibilizadas e modernizadas, mas o futuro é sombrio, especialmente para a juventude. Antes queixavam-se da falta de alternativas a uma carreira programada e bitolada até a aposentadoria, hoje mal há perspectiva de qualquer carreira ou aposentadoria.

Sob muitos aspectos, este mundo se parece menos com a era de Charles de Gaulle, dos Beatles e de Jean-Paul Sartre do que com aquele de Napoleão III, Richard Wagner e Karl Marx: um mundo de exploração selvagem, concentração de renda, estruturas em decomposição, desemprego em massa e vidas precárias.

Nos anos 1960 era possível pensar que os programas de bem-estar social, as políticas keynesianas e a produção e consumo em massa haviam superado de vez as crises, a luta de classes e o marxismo. Nos anos 2010, a desregulamentação financeira, o neoliberalismo e a nova divisão internacional do trabalho voltaram a tornar atual o pensador alemão.

Suas previsões sobre a tendência intrínseca ao capitalismo de acirrar a luta de classes e destruir a humanidade, a natureza e as próprias bases voltam a ser levadas muito a sério.  Hoje ficou mais fácil compreendê-lo do que às razões dos rebeldes de 1968. 

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