15/3/2018, Pepe Escobar, Asia Times
O foco geopolítico do ainda novo século 21 cobre o Oceano Índico, do Golfo Persa até o Mar do Sul da China, ao longo de todo o espectro do Sudoeste da Ásia até a Ásia Central e a China.
Assim se configura o principal palco, terrestre e marítimo, das Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE).
O epicentro da mudança do poder global para o Oriente está fazendo voar penas em alguns círculos políticos dos EUA – com proliferação de análises paroquianas que cobrem, da “superdistensão imperial” até “pesadelos” que estariam sendo provocados pelo Sonho Chinês de Xi Jinping.
O argumento básico é que o Imperador Xi estaria obrando para abocanhar poder imperial, com a mitologização das Novas Rotas da Seda.
A ICE tem a ver, com certeza com as massivas reservas chinesas em moeda estrangeira; com o know-how de construção; com o excesso de capacidade em aço, alumínio e concreto; com as parcerias público-privadas para financiamento; com a internacionalização do yuan; e com a plena conectividade dos fluxos de infraestrutura e informação.
Mas a Iniciativa Cinturão e Estrada não é questão de controle geopolítico apoiado em poder militar; tem a ver com maior projeção geopolítica, baseada na conectividade comércio-e-investimentos.
A ICE é de tal modo jogo completamente diferente, que Japão, Índia e o “Quarteto” [ing. “the Quad”] (EUA, Japão, Índia, Austrália) sentiram-se na obrigação de produzir suas próprias mini-ICEs “alternativas”, muito reduzidas – cuja razão de ser essencial é acusar a ICE de “revisionismo”, ao mesmo tempo em que enfatiza a necessidade de lutar contra a dominação global chinesa.
A base da estratégia Indo-Pacífico Livre e Aberto do governo Trump, iniciada em outubro de 2017, era definir a China como ameaça existencial hostil. A Estratégia de Segurança Nacional, ESN [ing. National Security Strategy (NSS)] e a Estratégia de Defesa Nacional, EDN [ing. National Defense Strategy (EDN)] amplificaram a ameaça até convertê-la numa nova doutrina.
A ESN afirma que “China e Rússia desafiam o poder, a influência e interesses dos EUA, tentando erodir a segurança e a prosperidade dos EUA.” A ESN acusa China e Rússia de querer “modelar um mundo que seja a antítese dos valores e interesses dos EUA.” Também acusa Pequim de “procurar desalojar os EUA da região do Indo-Pacífico” e de “expandir o próprio poder à custa da soberania dos demais.”
A Estratégia de Defesa Nacional afirma que Pequim “almeja à hegemonia regional no Indo-Pacífico no curto prazo, e a deslocar os EUA para alcançar proeminência global no futuro.”
Já é o novo normal, no que tenha a ver com vários estratos do complexo norte-americano industrial-militar-de-vigilância. Qualquer outra opinião-avaliação é simplesmente proibida.
Hora de conversar com Kublai Khan
China e Rússia, potências “revisionistas”, são vistas como grande duplo problema quando se considera que há conexão direta entre a ICE e a União Econômica Eurasiana (UEE) [ing. Eurasia Economic Union (EAEU)]. A UEE é, por si mesma, um passo adiante na parceria estratégica Rússia-China anunciada em 2012, crucialmente, um ano antes de Xi anunciar a ICE em Astana e depois em Jakarta.
No fórum da ICE em Pequim, em maio de 2017, o presidente Vladimir Putin da Rússia reafirmou a noção de uma “maior parceria eurasiana”.
O “pivô para a Ásia” russo começou já antes de Maidan em Kiev, o referendo da Crimeia e as subsequentes sanções ocidentais. Foi trabalho em progresso, ao longo de várias sessões na Organização de Cooperação de Xangai, OCX [Shanghai Cooperation Organization (SCO)], dos BRICS e do G-20.
O Cazaquistão é o elo chave que une ICE, UEE e a OCX. Rússia e Cazaquistão são parte de um dos principais corredores de conectividade por terra entre o Leste da Ásia e a Europa –, e o outro atravessa Irã e Turquia.
Xinjiang à Europa Ocidental por trem, via Cazaquistão e Rússia, é hoje viagem de 14 dias, que em breve serão reduzidos a dez. É impulso gigante para o comércio de mercadoria com alto valor agregado – que pavimenta o caminho para os futuros trilhos para trens de alta velocidade, um dos projetos da ICE, que competirá cabeça a cabeça com o transporte marítimo de baixo custo.
Quanto ao impulso de Moscou para ser parte da conectividade econômica ICE/UEE, é um dos vetores da política externa russa. O outro, igualmente importante, é aprofundar relações comerciais/de investimentos entre Alemanha e Rússia, prioridade também para industriais alemães.
A China, por sua vez, é agora o maior investidor estrangeiro em todos os cinco “-stões” da Ásia Central. E é crucial lembrar que a Ásia Central está configurada não só pelos cinco “-stões”, mas também inclui a Mongólia, Xinjiang e o Afeganistão. Daí a urgência, na OCX, para resolver a tragédia afegã, com a participação dos grandes players China, Rússia, Índia, Paquistão e Irã.
A estratégia da ICE, de criar uma rede logística/de conectividade paneurasiana impõe naturalmente a questão de como Pequim administrará esse projeto sem hora para terminar. A ICE ainda não está sequer em fase de implementação, que, oficialmente, começa ano que vem.
É útil comparar as acusações de “revisionismo” e a história da China. Quando Marco Polo chegou à corte Yuan no final do século 13, viu um império multicultural com comércio próspero.
Foram as rotas comerciais da Rota da Seda, não alguma projeção de poder militar, que culminaram na Pax Mongolica. APax Sinica do século 21 é sua versão para o século 21. E Xi? Será neoimperador ou versão pós-moderna de Kublai Khan?
A dinastia Yuan não “controlou” Pérsia, Rússia ou Índia. Pérsia, então uma superpotência, conectava o Nilo, a Mesopotâmia e o rio Indo, com comércio com a China. Durante a dinastia Tang, nos séculos 8º e 9º, a China também projetou influência na Ásia Central, por todo o espaço até o Irã norte-oriental.
E isso explica porque o Irã, agora, é esse entroncamento central da ICE e porque a liderança em Teerã quer ver solidificadas as Novas Rotas da Seda. Uma aliança China-Rússia-Irã de interesses – integração da Eurásia – só pode mesmo enervar Washington; afinal, o Pentágono define todos esses atores geopolíticos como “ameaças”.
Historicamente, China e Pérsia foram, por séculos, civilizações agrícolas ricas e bem implantadas, que vez ou outra tiveram de lidar com enxames ocasionais de guerreiros do deserto –, mas que, na maior parte do tempo viveram em contato entre elas, por causa da Rota da Seda. A entente cordiale sino-persa está inscrita nessa sólida história.
E isso nos leva ao xis da questão que jaz no coração da demonização/desqualificação sem parar, da ICE.
Trata-se de impedir a emergência não só de um “competidor equivalente”, mas pior: um condomínio comercial/de conectividade possibilitado pela Nova Rota da Seda – que exibirá China, Rússia, Irã e Turquia – aparecerá tão poderoso no Oriente quanto os EUA ainda são hoje, nesse muito desgraçado “Hemisfério Ocidental”.
Nada disso tem qualquer coisa a ver com neoimperialismo chinês. Na dúvida, consulte Kublai Khan.*****