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segunda-feira, 9 setembro, 2024

Não percam! Kim No-VAX em “DARPA”

Pepe Escobar, Asia Times

Estou mergulhado em meus arquivos de Asia Times, selecionando colunas e matérias para um novo e-book sobre as Guerras Infinitas [ing. Forever Wars] – Afeganistão e Iraque. E eis que me deparo com esse palimpsesto, originalmente publicado em Asia Times em fevereiro de 2014. Ali estava um exercício de De Volta para o Futuro – viagem no tempo para examinar o cenário sci-tech em meados dos anos 1980s pelo Vale do Silício, laboratório de IA do MIT, DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency; port. Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa) e a Agência de Segurança Nacional dos EUA (ing. National Security Agency, NSA), tecendo uma trama de temas, com elenco fabuloso, que prefigura o Bravo Novo Tecno-Mundo no qual estamos hoje imersos, especialmente no que tenha a ver com o papel da inteligência artificial. Pode portanto ser lido hoje, como uma espécie de preâmbulo, ou peça auxiliar, de fundo, para “Não há como escapar de nosso mundo tecno-feudal” (port. e ing.). Vale observar que tudo que se lê nesse relato estava acontecendo 18 anos antes do fim do projeto LifeLog[1] do Pentágono, comandado pela DARPA, e o simultâneo lançamento de Facebook. Curtam essa viagem no tempo.

Na primavera de 1986, De Volta para o Futuro, filme blockbuster de Michael J Fox, estrelado por um carro DeLorean capaz de viajar no tempo, mal completara um ano. O Macintosh da Apple, lançado num anúncio icônico, dirigido por Ridley (Blade Runner) Scott, ainda não chegara aos dois anos. Ronald Reagan, imortalizado por Gore Vidal como “the acting president” (“o presidente interino”), festejava os mujahidin no Afeganistão como “combatentes da liberdade”.

O mundo debatia-se em modo Guerra Fria Ciber; só se falava de contramedidas eletrônicas, com os EUA-C3s (Comando, Controle, Comunicações) programados para destruir os URSS-C3s, e ambas as potências, EUA e URSS, regidas por políticas nucleares MAD (ing. mutually assured destruction; port. destruição mútua garantida) capazes de destruir cem vezes a Terra. Edward Snowden ainda não completara três anos.

Nesse contexto, decidi escrever matéria especial para uma revista hoje defunta, de inteligência artificial (IA). Com isso em mente, flanei do Computer Museum em Boston até a Apple em Cupertino, a Pixar em San Rafael, e daí até os campi de Stanford, Berkeley e do MIT.

A IA fora “inaugurada” em 1956 por John McCarthy, de Stanford, e Marvin Minsky, que seria professor no MIT, mas àquela altura ainda estudava em Harvard. A ideia básica, segundo Minsky, era que qualquer traço de inteligência poderia ser descrito tão precisamente, que seria possível criar uma máquina para simulá-lo.

Minha viagem inevitavelmente levou-me ao encontro de um elenco fabuloso. No laboratório de IA do MIT, lá estavam Minsky e também um inveterado iconoclasta, Joseph Weizenbaum, que cunhara o termo “intelligentsia artificial” e acreditava que computadores jamais conseguiriam “pensar” como um ser humano.

 

Imagem: Joseph Weizenbaum. Fonte: Chatbots

Em Stanford, havia Edward Feigenbaum, absolutamente paranoico ante o progresso científico do Japão. Para ele, se os japoneses desenvolvessem uma 5ª geração de computadores, baseada em inteligência artificial, capaz de pensar, raciocinar e falar um idioma tão difícil quanto o japonês, “os EUA podem candidatar-se ao posto de primeira grande sociedade agrária pós-industrial.”

E em Berkeley, ainda sob a chama do populismo utópico hippie, descobri Robert Wilensky – sotaque do Brooklyn, brilhantina de Yale, sobretons da California;[2] e o filósofo Hubert Dreyfus, infatigável inimigo da IA, que ficou conhecido por conferências com títulos como “IA Convencional, Paradigma de Pesquisa Degenerada.”

Conheçam Kim No-VAX

 

Rapidamente, eu já estava mergulhado nas “frames” de Minsky – conceito básico para organizar todos os programas subsequentes de IA – e no paradigma de Chomsky: a noção de que a linguagem está na raiz do conhecimento e que essa sintaxe formal está na raiz da linguagem. Assim reza a Bíblia da ciência cognitiva no MIT.

Minsky era entusiasta sério da IA. Um de seus temas favoritos era um “chauvinismo do carbono”, que afetaria as pessoas: “É ponto central para o fenômeno da Inteligência Artificial. Porque é possível que formas mais sofisticadas de inteligência não sejam incorporadas na forma celular. Se há outras formas de vida inteligente, nesse caso pode-se especular sobre outros tipos de estrutura computacional.”

Imagem: Marvin Minsky no laboratório do MIT Lab. Foto: Massachusetts Institute of Technology

Na cafeteria do MIT, Minsky mostrou um rap futurista que em nada se assemelhava ao Dr. Emmett Brown em De Volta para o Futuro:

“Acredito que em menos de cinco séculos estaremos produzindo máquinas muito semelhantes a nós, que representarão nossos pensamentos e pontos de vista. Se pudermos construir um cérebro humano miniaturizado que pese, digamos, um grama, podemos inseri-lo numa nave espacial e fazê-lo viajar à velocidade da luz. Seria muito difícil construir uma nave para levar um astronauta e toda a comida necessária para sua sobrevivência por 10 mil anos de viagem…”

Com o professor Feigenbaum, no jardim filosófico de Stanford,[3] só havia espaço para o iminente apocalipse amarelo. Mas então, um dia, atravessei o Rubicão pós-hippie de Berkeley e abri a porta do 4º andar do Evans Hall, onde encontrei ninguém menos que Kim No-VAX.

Não, não era a loura de Hitchcock e ícone do filme Vertigo. Era um hardware alterado de computador (“No-VAX”[4] porque avançara além da linha de supercomputadores VAX da Digital Equipment Corporation), financiado pela agência militar do Pentágono melifluamente abreviada como DARPA, decorado com uma foto de Kim Novak e ronronando com a vibração sexy dos – àquela época quantidade descomunal –2.900 megabytes de dados eletrônicos espalhados sobre seu corpo.

A Agência para Projetos de Pesquisa Avançada da Defesa, do governo dos EUA – ing. DARPA – só tratava de ciências da computação. Em meados dos anos 1980s, a DARPA estava imensa num programa muito ambicioso, que ligava microeletrônica, arquitetura de computadores e Inteligência Artificial, que ia muito além de algum mero programa militar. Era comparável ao programa da quinta geração de computadores japoneses. No MIT, a vasta maioria dos cientistas eram furiosos propagandistas a favor da DARPA, sempre repetindo elogios ao modo como a Agência liderava a pesquisa. Mas Terry Winograd, professor de ciências da computação em Stanford, alertava que, se a DARPA fosse agência civil, “acredito que teríamos feito progresso muito maior”.

Coube ao professor Dreyfus prover a voz da razão, em meio a tanta cibereuforia:

“Computadores não conseguem pensar como seres humanos, porque não há como representar todo o conhecimento retrospectivo de uma vida humana média – ou seja, o ‘senso comum’ –, numa forma que um computador possa apreender.” A deriva de Dreyfus era que, com o boom da ciência computacional, a filosofia estaria morta – e ele era filósofo: “Heidegger disse que a filosofia acabou porque alcançou o ápice na tecnologia. A filosofia, de fato, alcançou o próprio limite com a Inteligência Artificial. Os cientistas herdaram nossas perguntas. O que há na mente? Agora têm de responder por isso. A filosofia acabou.”

Mas Dreyfus continuava a dar aulas. Também no MIT, Weizenbaum condenava a IA, para ele uma gangue de “lunáticos e psicopatas” – mas continuou a trabalhar no laboratório de IA.

Sonho molhado da Agência de Segurança Nacional dos EUA

Não demorei, ajudado por essas mentes brilhantes, a perceber que o “segredo” da IA seria assunto militar, o que significava que a Agência de Segurança Nacional dos EUA – vagamente conhecida, já em meados dos anos 1980s, com orçamento anual equivalente ao dobro do da CIA para bisbilhotar todo o planeta. Àquela altura, a missão era penetrar e monitorar a rede eletrônica global – que estava anos antes de toda a agitação sobre a “estrada informacional” –, e ao mesmo tempo tranquilizar o Pentágono quanto à inviolabilidade de suas linhas de comunicação. Para esses camaradas – lembrem, a Guerra Fria, mesmo com Gorbachev no poder na URSS, prosseguia, – a IA era um presente de Deus (superando o Papa Francisco, em quase três décadas).

Assim sendo, o que faziam Pentágono/NSA, no auge da guerra nas estrelas, e uma década e meia antes da revolução nos assuntos militares e da doutrina de dominação de pleno espectro?

Pentágono/NSA já queriam controlar seus navios e aeronaves e armamentos pesados com a voz, não com as mãos; comando de voz, à moda Hal, o computador estrela em 2001: Uma Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick. Mas esse ainda era sonho distante. Minsky acreditava que “só no próximo século” seríamos capazes de falar a um computador. Para outros, jamais aconteceria. Pelo sim, pelo não, IBM já trabalhava num sistema que aceitava ditado; MIT, em outro sistema que identificava palavras emitidas por pessoas diferentes; e Intel desenvolvia um chip especial para tudo isso.

Embora, previsivelmente, impedido de visitar a NSA, logo soube que o Pentágono esperava já ter sistemas computacionais “inteligentes” à altura dos anos 1990s; Hollywood, afinal de contas, já lançara a série Terminator. Coube ao professor Wilensky, em Berkeley, soar o alarme:

“Seres humanos não têm a engenharia apropriada para a sociedade que desenvolveram. Ao longo de mais de um milhão de anos de evolução, o instinto de se manterem juntos em pequenas comunidades, beligerantes e compactas, mostrou-se correto. Mas então, no século 20, o homem cessou de se adaptar. A tecnologia tomou o lugar da evolução. O cérebro de uma criatura ancestral, como um rato, que vê provocação no rosto de qualquer estranho, é o cérebro que hoje controla os destinos da Terra.”

Foi como se Wilensky descrevesse a NSA de 28 anos depois. Algumas questões permanecem sem resposta; por exemplo, se nossa raça já não é adequada à sociedade que construiu, quem garante que suas máquinas carregam a engenharia correta? Quem garante que máquinas inteligentes agirão necessariamente a favor de nossos interesses?

O que já era claro àquela altura era que computadores “inteligentes” não poriam fim a uma corrida armamentista global. E que demoraria muito, até as revelações de Snowden em 2013, para que o planeta obtivesse ideia mais clara de como a NSA orquestra o complexo Panopticon-Orwelliano. Quanto à minha viagem de volta para o futuro, afinal não consegui descobrir o “segredo” da IA. Mas continuarei a gostar muito de Kim No-VAX.*******

[1] “O sistema projetado, chamado LifeLog [aprox. “Arquivo de Vida”] recolheria tudo da experiência de vida de uma pessoa, dos números para os quais telefonou e mensagens de e-mail que leu, do primeiro ao último suspiro, cada passo que deu, cada local onde esteve. A ideia é indexar o material e criar padrões facilmente recuperáveis, num esforço para fazer as máquinas pensarem de modo mais próximo de como as pessoas pensam, aprendendo da experiência” (30/3/2003, The New York Times, trecho aqui traduzido. NTs).

[2] Pelo sim, pelo não, registramos que há um grupo de canto coral: “California Overtones”. Mais, aqui [NTs].

[3] Sobre prédio conhecido como Kingscote Garden, em Stanford, interessante, aqui [NTs].

[4] Há aí um ‘eco’ entre o nome Kim Novak, de Um corpo que cai (Vertigo), e VAX. “VAX é uma linha de superminicomputadores e estações de trabalho desenvolvida pela Digital Equipment Corporation (DEC) em meados dos anos 1970s. O VAX-11/780, lançado dia 25/10/1977, foi o primeiro de uma série popular e influente de computadores que implementavam o Conjunto VAX de Instruções de Arquitetura (ing. ISA, Instruction Set Architecture). Depois da linha VAX, veio a DEC-Alpha, que incluiu vários traços das máquinas VAX para tornar mais fácil transportar dados da linha VAX”. [NTs, com informações de Wikipedia]

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