Jornal Nacional é o ícone do poderio jornalístico da TV Globo, líder de audiência desde 1971
Por Eduardo Maretti, na Rede Brasil Atual:
“Estudo o lobby das empresas de TV a partir do caso da política de classificação indicativa. O auge do enfrentamento entre empresas e poder Executivo se deu entre 2006 e 2007. Embora seja um caso antigo, ele só se resolveu em 2016, quando o STF derrubou a posição do Executivo”, explica Brant.
Naquele ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade da regra do Estatuto da Criança e do Adolescente que obrigava as emissoras de TV a veicular programas de acordo com o horário estabelecido pela classificação indicativa. A maioria dos ministros considerou a imposição do horário ilegal, por configurar censura prévia.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) foi movida pelo Partido Trabalhista Brasileiro contra dispositivos da lei, então defendida pela Presidência da República.
Para o pesquisador, o papel desempenhado pelas empresas de comunicação na história recente do país levou grande parcela da sociedade a desacreditar a política como atividade organizadora da sociedade. “Isso é fatal e afeta o funcionamento da democracia”, diz. “Não à toa, isso nos levou a um quadro de negação do sistema político, o que é parte constituinte da eleição do Bolsonaro.”
Em entrevista à RBA, João Brant falou sobre o lobby dessas empresas, suas estratégias de poder, liberdade de expressão e a violência social estimulada por programas “jornalísticos” policialescos.
“Há estudos de que esses programas estimulam práticas e comportamentos violentos. Mais do que isso, estimulam medidas de solução de conflitos que passam por fora do sistema de Justiça, atacando a presunção de inocência. Também reforçam e legitimam processos de tortura e violência policial.”
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
O lobby
– Empresas de televisão, por um lado, são parecidas com outras empresas. Buscam influenciar os processos de decisão que as afetam por meio de várias estratégias que caracterizo como ‘ordinárias’: negociação no Executivo, pressão direta nos tomadores de decisão, divulgação de estudos e pesquisas que as favoreçam, mobilização de parceiros e até judicialização. Por outro, elas têm estratégias ‘peculiares’, que só existem porque controlam parte do acesso à esfera pública.
– Elas têm à sua disposição o uso da própria mídia a seu favor, o que um grupo como a CNI (da Indústria) ou a CNA (da Agricultura) não têm. A pesquisa demonstra que eles não precisam necessariamente usar esses recursos para que eles lhes beneficiem diretamente. O uso direto desses recursos, por meio do direcionamento de sua cobertura jornalística e de sua programação, não é a forma principal de exercício de seu poder. O fundamental é o lastro que o controle do acesso à esfera pública confere às estratégias ordinárias de pressão política pelas empresas.
O poder
– A visão da Globo sobre economia, por exemplo, condiciona sua cobertura sobre o tema. Mas a pesquisa é sobre os interesses específicos, como grupo empresarial. E para esses casos eles não usam todo seu poder de fogo. No caso que estudei, enquanto o jornal O Globo tinha uma cobertura enviesada a favor dos interesses da empresa, o Jornal Nacional praticamente silenciava sobre o tema.
– É como se fosse uma guerra fria. Eu te pressiono para tomar uma decisão sem usar minha arma mais pesada, porque você sabe que eu posso usá-la se precisar. Poder, nesse caso, não é apenas usar seu cacife todo. É ter o cacife como forma de pressão para se obter o que se quer. É o que a literatura chama de poder presumido.
– No caso do Parlamento, o poder das empresas está ligado à sua capacidade de calibrar a visibilidade de atores que dependem da mídia para manter sua viabilidade política. Para o Judiciário e para atores-chave do Executivo (como ministros e presidente), o poder está ligado à capacidade de emprestar reputação positiva ou negativa, condicionando a imagem pública e o prestígio dos agentes políticos.
– É reveladora a capacidade das empresas de mobilizar arenas alheias ao processo decisório, usando o Poder Legislativo e setores do próprio governo para pressionar as áreas responsáveis pela decisão – no caso da classificação indicativa, o Ministério da Justiça. A capacidade de atuar com ‘alarmismo político’ combinou-se, nesse caso, com tentativas pontuais de acuamento político e pessoal sobre agentes públicos.
Liberdade de expressão e classificação indicativa
– Os meios de comunicação tentam fazer valer uma visão como se eles fossem os titulares únicos e principais da liberdade de expressão, quando a liberdade de expressão e de informação deve ser entendida sobretudo a partir de um interesse do cidadão e da cidadã brasileiros.
– Havia uma disputa de entendimento sobre se a Constituição permitiria ou não que a classificação indicativa levasse à indicação de horários específicos para a veiculação de programas, se um filme recomendado para 18 anos poderia ser exibido às três da tarde. A defesa que o Executivo fez e conseguiu passar em 2007 era de que não podia exibir porque isso dificultava a aplicação da regra: se a criança precisa sozinha olhar um quadradinho escrito 18 anos e desligar a TV, isso não vai acontecer.
– As emissoras defendiam que a aplicação da regra deveria ser classificativa, e não impositiva. As empresas conseguiram ganhar no STF. Portanto, hoje, qualquer programa pode ser exibido em qualquer horário e as empresas não serão multadas em caso de descumprimento de um horário recomendado pelo Ministério da Justiça.
A violência na TV
– O debate sobre a violência dos programas jornalísticos, principalmente os policialescos, é muito importante. Acho que a discussão é não só a banalização, mas o estímulo à violência dado pelos programas que passam no Brasil inteiro. Há estudos de que esses programas estimulam práticas e comportamentos violentos. Mais do que isso, estimulam medidas de solução de conflitos que passam por fora do sistema de Justiça, atacando a presunção de inocência. Também reforçam e legitimam processos de tortura e violência policial.
– Há uma gravidade muito grande na naturalização desse tipo de programa. Não há uma resposta fácil sobre o que fazer, porque determinadas questões podem ser entendidas como censura, e obviamente não queremos nenhuma prática de censura. Mas acho que precisamos entender antes de tudo os efeitos sociais desses programas, e há responsabilidade das empresas que os promovem, com a violência que legitimam.
Globo, Record e Band
– O crescimento da Globo nos anos 1970 se dá numa combinação entre opções empresariais bem-sucedidas e de qualidade, principalmente da dramaturgia, no caso da Globo, com um apoio explícito da ditadura militar em duas direções: promover uma infraestrutura que facilitasse a chegada da Globo em todos os rincões do Brasil, a partir da exploração do uso dos satélites da Telebrás, e com a tentativa de dificultar a chegada de concorrentes de peso.
– Em 1979 e 1980 a ditadura resolve não distribuir concessões para o grupo Abril e Jornal do Brasil, e sim ao SBT (TVS do Silvio Santos na época) e Adolpho Bloch, da Rede Manchete, depois Rede TV. Isso gera crescimento e domínio de mercado pela Globo e dificuldade dos concorrentes. Não é à toa que estamos falando de alguém que está em primeiro lugar na audiência desde 1971. Como comercialmente se torna difícil manter programação de qualidade, Bandeirantes e Record buscaram modelos alternativos.
– A Band, com arrendamento de espaço para igreja, o que é do meu ponto de vista ilegal, mas há leniência por parte do poder público; e, no caso da Record, uma associação com a IURD, que faz com que a própria igreja pague um valor alto pela compra de horários. Essa prática de arrendamento de horário é ilegal e deveria ser coibida.
– Há a necessidade de estimular pluralismo e diversidade por um conjunto de medidas que protejam o interesse público: mais canais, mais pluralismo, mais diversidade. Deveria haver uma avaliação das concessões a cada 15 anos sobre se cumpriram ou não o papel de interesse público e se contribuem ou não para um cenário de diversidade e pluralismo. O público precisa ter o direito de receber isso. Isso pode ser feito por uma mudança radical no sistema de comunicação brasileira.
Publicidade
– As verbas publicitárias públicas têm um papel tanto maior quanto menor é a emissora. As grandes empresas dependem menos das verbas públicas, ainda que tenham significação razoável. O que a Europa faz em certos casos é aplicar um fator de diminuição na verba distribuída aos grandes para que não se gere um círculo vicioso de crescimento e monopolização.
Mensalão e o processo contra Lula
– Segundo conclusão de tese da professora Liziane Guazina, da UnB, a cobertura dos veículos naquele caso ajudou a criar uma lógica contra a política, de enfrentamento à política. Não é só de um viés político em relação a um grupo político ou outro, mas funciona como um questionamento de legitimidade do próprio funcionamento da política.
– Isso pode ser entendido como natural num processo em que muitos dos procedimentos da política são pouco visíveis ao público e o público pode ver isso como imoral ou ilegal. Mas, na verdade, o problema é que gera uma sensação de cinismo e ceticismo que afeta de forma muito negativa a cultura política do país. Todo mundo passa a desacreditar a política em si como atividade organizadora de uma sociedade. Isso é fatal e afeta o funcionamento da democracia e não à toa nos levou a um quadro de negação do sistema político, o que é parte constituinte da eleição do Bolsonaro.
Artigo 220 da Constituição
– O artigo 220 se tornou uma utopia e isso é muito grave, porque esse é o único setor em que a Constituição proíbe o monopólio e oligopólio. A Constituição reconhece que não estamos falando apenas de um setor econômico, mas de um setor com enorme influência no processo democrático. Mesmo que economicamente o monopólio não gerasse grandes prejuízos ao consumidor, na prática ele gera para a sociedade, por manter o controle num só grupo do debate público.
– A situação é hoje muito mais complicada do que era há 30 anos, quando a Constituição foi promulgada. Hoje, os meios de comunicação social se confundem com meios de distribuição de infraestrutura. Você tem empresas de telecomunicação que têm TVs por assinatura, empresas de TV que controlam distribuição de conteúdo por vídeo sob demanda, uma série de propriedades cruzadas entre esses setores, o que faz com que a definição de mercado relevante, monopólio e oligopólio se torne mais complicada. Mas uma nova definição deveria ser feita à luz de um novo cenário, e não no cenário de 1988.