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sábado, 18 maio, 2024

Marx: jornalista nos EUA

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Emiliano José

Marx não ficou reduzido, como jornalista, ao “Gazeta Renana”,

Se isso não ficou nítido em textos recentes meus, corrijo-me.

A bem dizer, o jornalismo em Marx está vinculado às condições materiais de existência – as dele, e não as da sociedade.

Permanentemente, viveu dificuldades financeiras, voltado sempre à elaboração teórica, sem uma atividade a lhe garantir o pão de cada dia, ajudado sempre por alguns amigos, de modo especial por Engels, cuja amizade incluía também parceria teórica.

Num texto de Pedro de Oliveira, a trajetória de Marx como jornalista do New York Daily Tribune, jornal dos EUA, é revelada com propriedade.

Charles Dana, jornalista do New York Daily Tribune, em 1848, enviado à Europa, acabou sendo apresentado a Marx.

Era quadra de grande turbulência no continente europeu.

Camponeses convertidos em operários fabris.

Monarcas derrubados.

Mundo em mutação.

Capitalismo efervescente.

Três anos depois, Marx recebe convite de Dana: elaborasse uma série de artigos sobre os tumultuosos acontecimentos históricos da Europa entre o final da década de 1840 ao início de 1850.

O New York Daily Tribune, fundado em 1841, surgiu progressista.

Em termos, pois progressista e moralista, ao menos com o olhar de hoje, o que é sempre problemático.

Antiescravista, antibelicista, antitabagista, anti-bebidas alcoólicas, anti-grandes conglomerados comerciais, anti-bordéis, anti-casas de jogo.

Cresce, e muito.

Chega a 200 mil exemplares, considerado então o maior jornal do mundo.

O crescimento leva os proprietários à montagem de uma equipe de correspondentes estrangeiros.

Marx, convidado.

Aceita, um pouco contrafeito, mas ao mesmo tempo recebendo o convite como tábua de salvação face às dificuldades financeiras.

Contrafeito porque, de uma forma ou de outra, o trabalho no jornal atrapalharia momentaneamente o esforço teórico de elaboração dos trabalhos da crítica da economia política, a redundar n’O Capital’.

Não foi pequeno o período de contribuição de Marx ao jornal: uma década.

O jornalismo praticado por ele se distinguia do exercício jornalístico tradicional.

Não praticava a utilização de fontes das altas esferas, não queria se valer do pensamento das classes dominantes para reforçar os artigos.

Não era um confidente de diplomatas, dos homens de negócio, não vivia em jantares ou colóquios secretos.

Mas, atenção: procurava estudar todos os aspectos do assunto.

Vivia a pesquisar na Sala de Leitura do Museu Britânico e em outras fontes qualificadas.

Detestava a superficialidade.

Não queria qualquer dependência e por isso não temia denunciar poderosos.

Não vivia propriamente atrás do chamado furo jornalístico.

Preocupação era desvendar os aspectos históricos do acontecimento.

Os editores de Marx, conscientes das convicções socialistas e comunistas dele, faziam questão de alertar os leitores quando da publicação de artigos escritos por ele

Convicções dele, muito diferentes das nossas, diziam.

Não davam a cara a tapa por ele.

Não obstante, precisavam dele.

Dava consistência ao jornal.

Em 1857, a publicação viu-se no vendavam das crises capitalistas, crise reportada pelo próprio Marx.

Em 1861, durante a guerra civil nos EUA, obrigada a demitir todos os correspondentes estrangeiros.

Menos um: Karl Marx, a ver como ele era importante, muito provavelmente pela densidade das contribuições.

Em 1862, no entanto, a crise não o poupou mais.

Charles Dana escreveu-lhe carta dando como finalizada a colaboração com o jornal.

Dois anos depois, encerradas as atividades dele no New York Daily Tribune, dirigente da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx escreve ao presidente Abraham Lincoln cumprimentando-o pela reeleição e pela vitória na luta contra a escravidão.

Continuava atento à conjuntura norte-americana.

Como estamos vendo, sabia mexer-se politicamente, situar a visão dos trabalhadores face a episódios históricos, nunca na linha do quanto pior, melhor – importante, para a classe operária, a reeleição de Lincoln e a vitória contra a escravidão.

Para o New York Daily Tribune, Marx escreveu 350 artigos.

Não deixava de estudar, desenvolver esforços teóricos.

Muitas vezes, pediu a Engels para escrever também para o jornal: assim, contabilizam-se 125 artigos do mais fiel parceiro e amigo para o New York Daily Tribune.

Chegaram também a produzir 12 textos a quatro mãos.

A publicação completa de todos os artigos para o Tribune ocupa sete volumes dos 50 editados como obras completas de Marx e Engels, chamadas assim, mas ainda incompletas.

Não é pequena, assim, a contribuição de Marx ao jornalismo.

Um pouco compulsória, já vimos.

Acicatado pelos rigores da sobrevivência, pela necessidade de buscar um ganha-pão.

Seguramente, aprendeu muito nesse exercício.

De alguma forma, já o dissemos ao falar da atividade dele na profissão: sentiu-se levado, dado à dinâmica do jornalismo, dado ao fato de ser obrigado a desenvolver um discurso inteligível ao leitor comum, ou mais próximo dele, sentiu-se levado a afastar-se da linguagem excessivamente teórica – e aqui há um pouco de especulação de minha parte, uma pressuposição.

Não pretendo subestimar o talento literário de Marx, e disso faz referência José Paulo Netto em notável biografia, mas é inegável, embora não vivêssemos tempos de parâmetros jornalísticos semelhantes aos atuais, a exigência, para qualquer articulista, de moldar o discurso ao senso comum predominante.

Seguramente, ele, pelas qualidades próprias de quem escrevia e pesquisava com rigor, de quem tinha densa formação intelectual, era muito mais fácil escrever de modo a ser compreendido, sem, no entanto, fazer concessões à superficialidade, a quaisquer análises rasas.

Registrou: o trabalho jornalístico o retirava do objetivo mais importante da vida: a crítica da economia política.

Era a necessidade imperiosa de ganhar a vida – que fazer?

Foi compelido, na década voltado ao jornalismo, a tornar-se íntimo de detalhes práticos que “falando claramente, estavam à margem da esfera da política econômica”, preocupação central dele.

Certo: contribuição largamente principal foi a teórica, expressa sobretudo na obra maior, “O Capital”.

Mas, inegavelmente há o Marx jornalista, terreno fértil para os pesquisadores em comunicação.

Compreender o jornalismo de combate, infenso à superficialidade, escrita fácil e profunda, sempre fundado em muita pesquisa, colado à história, resistindo a qualquer “jornalismo imparcial”, sempre tomando posição, sempre tendo lado.

Todos têm lado.

Ele, nunca negou.

Poderia dizer, com Gramsci:

– Vivo, sou partidário. Por isso, odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.

Referências

NETTO, José Paulo, 1947-. Karl Marx : uma biografia / José Paulo Netto. – 1. ed. – São Paulo : Boitempo, 2020.

OLIVEIRA, Pedro de. Karl Marx e seus artigos para o New York Daily Tribune. Princípios; São Paulo, ed. 152 (Jan-Feb 2018).

*Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes),

 

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