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quarta-feira, 17 abril, 2024

De Jânio a Bolsonaro

Favela de Paraisópolis, em S.Paulo.
por Jorge Figueiredo
Ideologicamente, entre a classe dominante brasileira e a de Porto Rico não existe diferença alguma. O tamanho respectivo dos dois países em nada altera o modo de pensamento destas classes dominantes, que são gémeas perfeitas. A máxima aspiração de cada uma delas é ser sócia menor das transnacionais, reverter à situação colonial, alinhar-se incondicionalmente com o império e saquear os seus povos e as riquezas naturais dos seus países.
A ambição não é realmente o que caracteriza estas burguesias subdesenvolvidas. É isso que as distingue de classes dominantes de países asiáticos, as quais aspiram a muito mais. É por isso que hoje o Brasil não tem uma indústria automobilística própria, ao contrário da Coreia do Sul que começou depois. A falta de ambição da classe dominante brasileira vem de longa data. Quando Getúlio Vargas ousou lançar a primeira siderurgia do Brasil convidou a burguesia paulista a investir no projecto, mas esta recusou-se. Assim, a siderurgia de Volta Redonda nasceu como empresa estatal não por uma opção ideológica do governo de então e sim porque era a única maneira de fazê-la. Décadas depois o aço ali produzido serviu de base para a instalação de fábricas das transnacionais do automóvel, pois a burguesia local não se dispôs a tal empreendimento (e a antiga empresa estatal que fabricava camiões, os “FNM”, foi encerrada para dar mercado às transnacionais).
É preciso conhecer a história económica do Brasil para entender os tempos de hoje. Nada mudou. É assim que agora acontecem paradoxos como este de o actual presidente da Federação das Indústrias do Estado de S. Paulo (FIESP) apoiar alegremente a desindustrialização do Brasil (já mensurável ao nível estatístico). Trata-se de uma burguesia que não tem um projecto de país, com mentalidade de curto prazo e cuja máxima ambição é sacar o máximo e o mais depressa possível. A acumulação primitiva proporcionada pela exportação de produtos primários (minérios em bruto, soja, etc) não é investida no desenvolvimento do próprio país – ela vai engordar o capital financeiro e contas polpudas em off-shores.
Os representantes políticos de uma classe dominante assim têm necessariamente de ser gente muito especial. Trata-se de indivíduos que devem ter habilidade suficiente para enganar as massas a fim de obterem os votos necessários para subirem ao poleiro. Ao mesmo tempo, têm de ser muito cuidadosos para não ferirem os interesses daqueles que os apoiam e financiam. Por outras palavras, têm de ser demagogos q.b. Como não têm um projecto de país e nem podem revelar as suas verdadeiras intenções, habitualmente embrulham o seu discurso numa retórica moralista.
É por isso que o Brasil tem tradição de eleger gente desequilibrada. Basta pensar no fenómeno Jânio Quadros, um indivíduo tresloucado mas que tinha um dom especial para captar o apoio de massas com cultura política baixíssima. Tais indivíduos correm atrás do poder pelo poder e são capazes, para isso, de prometer e fazer seja o que for. A retórica pseudo-ética cai bem nas camadas médias e em massas amorfas, sem consciência de classe. A classe dominante sabe perfeitamente que tudo o que eles dizem é retórica, mas apoia-os porque é funcional aos seus interesses. Para ela, o horror seria permitir que o povo interviesse como sujeito da história. Por isso, considera desejável que este seja entretido com historietas contra a “corrupção” e anestesia-o com mass media nivelados pelo mínimo denominador comum. As ilusões devem ser mantidas a todo o custo entre os que nada entendem da sociedade em que vivem/sobrevivem.
A história do Brasil tem muitos exemplos desse jaez, tanto na presidência da república como em governos de estados e de municípios. Os exemplos presidenciais vão desde Jânio Quadros – o homem que usava como símbolo uma vassoura com a qual supostamente iria varrer a corrupção do Brasil – até o actual energúmeno que emporcalha a presidência do Brasil, Messias Bolsonaro. O primeiro, com grande sentido publicitário, fazia e dizia coisas caricatas, ridículas e estapafúrdias, mas elas serviam de diversionismo para manter a discussão política pública afastada do fundamental. O segundo faz igualmente coisas do mesmo jaez e toda a gente, os media inclusive, põe-se a falar das suas estupidezes quase diárias enquanto avança o desmonte do Estado brasileiro. A privatização selvagem da Previdência, a privatização das empresas estatais mais importantes (como as do grupo Petrobrás), desflorestação da Amazónia para benefício dos pecuaristas, a destruição do ensino público pelo sufoco orçamental, o sucateamento da indústria privada brasileira, etc são ocultados pela enxurrada diária de sandices bolsonaristas.
Muitos na Europa poderiam pensar que com uma actuação tão destrutiva a base social de apoio a tais indivíduos deveria diminuir significativamente. Mas isto não é necessariamente assim. Jânio Quadros antes e depois da sua tentativa de golpe de Estado (que resultou na sua renúncia) continuou a ter uma base de apoio bastante ampla entre os que nele votaram, desde os marginalizados até às camadas médias da população. A persistência das ilusões é um facto mesmo após o desaparecimento do demiurgo. Igualmente Bolsonaro ainda hoje – depois de mais de um ano de presidência absolutamente desastrosa – continua a ter um “núcleo duro” de apoiantes (alguns estimam ser da ordem de 30 por cento do eleitorado). Este núcleo apoia um desenlace claramente fascista através da eliminação do que resta de democracia burguesa no Brasil, com o encerramento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.
Pode-se perguntar: Então, se a tradição brasileira pós II Guerra Mundial era essa, o que representou o lulismo? A resposta, é doloroso dizê-lo, é que o lulismo não significou uma ruptura com o modelo esboçado acima. Na sua essência foi um projecto de conciliação de classe em que se concederam algumas migalhas para a massa marginalizada da população a fim de mantê-la passiva. No dizer de Chico de Oliveira , foi uma manifestação da social-democracia retardatária no Brasil. As pobres migalhas concedidas pouco ou nada afectaram a repartição do rendimento nacional e o próprio Lula da Silva disse numa reunião de industriais que “a burguesia nunca ganhou tanto dinheiro quanto no meu governo” (sic), queixando-se da “ingratidão” dos mesmos.
Apesar da sua origem sindical, os governos Lula (e da sua sucessora Dilma) fizeram todo o possível para desarmar política e ideologicamente os trabalhadores brasileiros. Pior: colaboraram activamente para impedir que isso pudesse acontecer. Quando, por exemplo, o presidente Hugo Chávez lançou a Telesur, uma cadeia progressista de televisão continental, o sr. Lula da Silva proibiu que esta fosse difundida no Brasil.
Em termos de política externa, o lulismo acenava com pretensões balofas de o Brasil integrar o Conselho de Segurança da ONU de modo permanente. Mas na realidade prática comportava-se de modo servil perante o império estado-unidense. Quando os EUA derrubaram o governo eleito do Haiti precisaram de uma força de ocupação a fim de controlar o país. Assim, o governo Lula prestou-se a enviar forças armadas àquele país irmão a fim de reprimir o seu povo. Esta experiência haitiana serviu de treino às forças armadas brasileiras para a repressão de movimentos populares e está a ser aplicada contra o próprio povo brasileiro (exemplo: a intervenção militar no estado do Rio). O general Heleno – um dos colaboradores de Bolsonaro que quer encerrar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal – foi um dos comandantes brasileiros no Haiti.
A génese do fenómeno lulista é pouco conhecida. O seu grande responsável é o general Golbery do Couto e Silva, o ideólogo da ditadura militar. Quando a ditadura estava no fim dos seus dias e já se discutia a necessidade da “abertura” (o modelo espanhol de transição do pós-franquismo era então activamente estudado nos altos comandos militares), o general Golbery preocupava-se em que os comunistas não viessem a recuperar a influência que tinham no movimento sindical. Assim, deu instruções às autoridades policiais e militares para passar a fazer uma repressão selectiva contra líderes operários. Ou seja, continuar a repressão feroz contra líderes sindicais considerados comunistas e mais branda contra os demais. Ora, Lula da Silva, que conduzira as greves do ABC , era um destes últimos. O seu movimento pôde assim desenvolver-se ao passo que trabalhadores como Manuel Fiel Filho e muitos outros continuavam a ser assassinados nos porões da ditadura.
Os treze anos de governos lulistas (Lula & Dilma) não representaram uma ruptura com a tradição brasileira de governos de conciliação de classe. Foram, sim, uma continuação. A pseudo-esquerda lulista deu de facto algumas benesses ao povo brasileiro, sobretudo aos marginalizados, mas através de programas assistencialistas e não como direitos permanentes. Para os trabalhadores organizados pouco foi dado em termos de direitos efectivos e incorporados na legislação trabalhista. O lulismo ficou aquém do antigo getulismo. A governação lulista foi uma cedência permanente a tudo o que a classe dominante pretendia, com banqueiros neoliberais como ministros das Finanças, latifundiário/as como ministros da Agricultura, com grandes negócios com empreiteiros de obras públicas financiados pelos BNDS, etc, etc. A classe dominante brasileira tolerava o lulismo porque dele se beneficiava e porque considerava que este apaziguava os trabalhadores. O boom exportador de produtos primários ajudava a manter a festa.
Entretanto, a situação do povo em geral, e dos trabalhadores em particular, continuava a deteriorar-se. Até que explodiram as revoltas espontâneas de 2013, como o Movimento Passe Livre (MPL) em S. Paulo (e em outras cidades do Brasil). Numa cidade em que os trabalhadores gastam até quatro horas por dia em deslocações e com transportes públicos péssimos, a reivindicação do MPL era mais do que justa. Contudo, nessa altura o PT já estava tão afastado das aspirações das massas que não compreendeu o movimento e até o reprimiu. Isto foi um sinal de alerta para a classe dominante. Ela descobriu assim que o petismo já não lhe era útil pois não controlava as massas. Era o começo do fim do petismo. Antes disso o apoio ao PT entre os trabalhadores organizados do ABC já começara a desvanecer-se com as malfeitorias do governo Dilma. É interessante notar, e é significativo, que a base social de apoio ao PT deslocou-se gradualmente do movimento operário organizado para os marginalizados do nordeste do país. Isto é constatável até eleitoralmente.
A desmoralização da social-democracia lulista é uma tragédia para o Brasil porque aos olhos da opinião pública (e dos media corporativos) ela é considerada como “a” esquerda. Esta confusão é agravada pelo facto de o PT dispor de um apoiante que se proclama comunista, o PCdoB. Mas o actual PCdoB nada tem a ver com o antigo, cujo comité central foi quase todo assassinado pela ditadura em 1976 (os seus actuais dirigentes provém em grande parte da esquerda católica).
Verifica-se que mesmo agora, em pleno descalabro bolsonarista e com a ameaça de eliminação dos últimos resquícios de democracia burguesa, tanto Lula como o petismo continuam a fazer o seu trabalho de solapar a construção de uma esquerda consequente no Brasil. É assim que até hoje o PT não ousou propor no Congresso o impeachment do sr. Bolsonaro, quando há motivos mais que suficientes para isso. É assim também que a sua central sindical, a CUT, permanece estranhamente passiva diante dos atentados brutais que estão a sofrer os trabalhadores brasileiros. A conciliação parece ser a alma mater do petismo e do sr. Lula [1] . Diante disso, as abencerragens fascistas ganham cada vez mais atrevimento.
27/Fevereiro/2020
[1] No dia 1/Março o sr. Lula declarou em Paris:   “não podemos derrubar um presidente porque não gostamos dele, é preciso ter paciência com Bolsonaro, temos de esperar quatro anos”, manifestando-se contra o impeachment.   Ver aqui.
Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
27/Fev/20
02/Mar/20

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