Indi Mateta*
No dia 18 de Abril deixei Luanda para juntar-me a uma equipa de trabalho, empenhada no projecto da National Geographic da vida selvagem do Okavango.
Foram cinquenta e tal dias em expedição, divididos entre semanas de pesquisa em terra e semanas de expedição em rio, tudo o que me ocorre é que afinal sou mais forte do que pensava. Mais forte fisicamente e acima de tudo mentalmente, é bom perceber que todo o exercício mental que tenho feito (nem sempre com tanto afinco quanto eu desejava), ao menos serviu para alguma coisa. Serviu para sobreviver ao confinamento, ao afastamento dos que me são queridos, ao desapego da rotina diária da vida na cidade, serviu para aguentar a pedalada, sendo que na verdade ninguém pedalou, e todo o mundo remou.
Remávamos diariamente, algumas vezes contra a corrente, passávamos cinco a seis horas no rio, onde a distância percorrida ficava entre os 15 e os 40km, a média eram 30km, se andássemos 30km, Steve, o líder ficava satisfeito e nós desfeitos, rebentados mas ainda assim bem-humorados. Horas à fio expostos ao sol ardente e ao clima seco do leste de Angola, falo da província do Moxico mais propriamente. Para a expedição em rio, dividimo-nos em duas equipas, a do Rio Kembo com dez pessoas repartidas por 6 canoas, e a equipa em que eu estava, a do Rio Cuando com 8 canoas (mokoros) para dezasseis pessoas.
Partimos no dia 14 de Maio da nascente do Rio Cuando e chegamos à confluência com o Rio Kembo no dia 5 de Junho onde supostamente deveríamos encontrar a outra equipa, mas que neste momento continua pelo menos 3 semanas atrasada devido aos inúmeros entraves ao longo do percurso deles.
O dia começava cedo, tínhamos dois madrugadores de plantão, Kostadin e Gotz. Quatro e meia da manhã já se ouviam alguns ruídos pelo acampamento, lenha a partir, fogueira a acender, água na chaleira que ia para o fogo para ficar pronta para os cafés e chás matinais.
Eu despertava muitas vezes as três e meia da manhã, revirava-me saco cama adentro até que o corpo farto de ficar ali entalado e já com disposição para aguentar o frio decidia erguer-se. Entre as cinco e meia e as seis e meia, saía da tenda, friorenta envolvida em camadas de roupa, ténis, três a quatro pares de meias, duas calças de inverno e mais duas “normais”, quatro calças no total, três casacos quentinhos, um par de luvas e gorro. Ia para a fogueira, aquecia-me um pouco, tomava um chá, na verdade água morna com limão, gengibre e alho e algumas vezes acrescentava mel.
Nunca soube ao certo, mas às manhãs as temperaturas deviam rondar entre 12ºC e 7ºC graus, e isso durava até as 07:30/08:00 manhã, quando o sol já bem desperto, começava a aquecer e a meio do dia, a temperatura podia chegar aos 26ºC/27º C, ou até mais a julgar pela forma como ficávamos todos torrados.
Depois de já estar um bocado quentinha, cozinhava os flocos de aveia para o matabicho da família, fí-lo umas poucas vezes já que normalmente quem o fazia era o Luc.
Ou era isso ou então ia fotografar, ou desmontar a minha tenda ou ainda ia à casa-de-banho.
O meu intestino com um funcionamento até aceitável, portava-se como um relógio suíço. Ir à casa de banho era sempre um filme, uma tragi-comédia, que mais tarde tornou-se realidade. Ir para o meio do mato, do capim molhado e gelado, era tão real como as pegadas e as fezes de animais selvagens que encontrávamos pelo acampamento, perto das nossas tendas.
Mabecos, onças, chacais, hipopótamos, cobras, crocodilos, elefantes e insectos diversos deixavam o seu rasto, ou davam o ar da sua graça à meio da noite. Os reis da barulheira eram os mabecos ou wild dogs – cães selvagens, que durante a noite portavam-se como autênticos cães que são.
Se eu alguma vez tive medo daqueles animais? Nunca, e menos ainda depois de ter visto um mabeco antes da expedição em rio, a noite, em frente ao nosso carro, assustado com a luz dos faróis e com tamanha presença esquisita.
Lembro-me da expressão do bicho como se o estivesse a ver agora, parecia muito assustado e indefeso e mais do que isso, muito fofinho, até vontade de o levar ao colo tive, deve ser porque ele não era tão grande e pela forma atordoada, tenho a sensação de que era ainda um menino que provavelmente estava perdido, é que ele meteu-se no meio da estrada(trilho) e quase que instantaneamente parou, olhou para nós e voltou para o meio do mato.
Honestamente acho que os animais estavam mais assustados com a nossa presença do que nós com a deles, (falo por mim) sendo que todo este medo que sentem os animais, deve-se ao facto de naquela zona, a caça furtiva ser uma prática constante e a acontecer de forma descontrolada, a situação é alarmante.
Contudo voltanto às idas à casa-de-banho, a regra era afastarmo-nos do acampamento, levar uma pá, o papel higiénico e um isqueiro, o resto já dá para imaginar.
Podia ser dispensável este detalhe que envolve necessidades maiores, mas no mato sem que nos damos conta, deixámo-nos de tabus, de tal forma que falar de ir fazer cocô, gozar com os que mais usam a pá ou soltar peidos a frente uns dos outros passou a ser normal, até porque tínhamos todos o feijão com arroz a borbulhar estômago acima.
Basicamente comíamos arroz com feijão ao jantar e a sobra era o almoço. Volta e meia tínhamos grão-de-bico (muito pouco), massa (pasta), que era considerada luxo e lentilhas aos montes, lentilhas de várias cores e feitios.
Para falar a verdade o que nos aguentou mesmo em pé foi o arroz com feijão, e no feijão colocávamos essencialmente batata rena com casca, abóbora com casca, cebola, alho e algumas vezes tomate seco, pasta de tomate, repolho e cenoura, estes dois [últimos que cedo evaporaram da dispensa. Numa panelinha ia esta versão vegetariana do feijão, e no panelão eram acrescentados pedaços de carne seca, biltong.
Nos dias “santos” (ou seja algumas poucas vezes) o Luc fazia pão, com poucos ingredientes, ele fazia um pão saboroso que suscitava reacções estranhas nas pessoas, tal era a emoção por comerem pão em pleno mato.
O Mauro e o Kerllen por exemplo queriam sempre comprar o pedaço de pão dos outros.
O Kerllen ora oferecia 50 kzs por fatia, ou propunha-se a trocar por um pacotinho de bolachas “glucose” que ele tinha no seu arsenal de miminhos (kit de sobrevivência emocional no mato). Já o Mauro oferecia sempre dinheiro em troca das fatias de pão. Na verdade estes negócios nunca deram em nada.
Numa outra altura falarei mais dos personagens desta aventura, contarei com mais pormenor estes e outros episódios, tantos quantos a minha memória conseguir rebuscar, em meio a tanta coisa que vivi naquele Moxico, um pouco antes no Huambo, Bié e mais para o fim no Kuando-Kubango.
São tantas as recordações, momentos únicos, lugares praticamente virgens, autêntcos paraísos.
É que percorremos um dos últimos lugares inexplorados do planeta Terra e a relevância deste facto não cabe na minha mente, talvez caiba um pouco mais no meu coração. O privilégio, a oportunidade, e a minha capacidade de passar por tudo o que passei são coisas com as quais não consigo lidar ainda, foram muitos momentos difícieis, batalhas internas, confusões mentais, turbilhões de sentimentos, vontade de desistir misturada com vontade de continuar e de auto-desafiar-me, uma exaustão física inexplicável e um sem fim de emoções.
Eventualmente quando a minha ficha cair (como dizem os brazucas), já serei vavô, mas aquela vavô “fresca”,”farai”, “dread”, provavelmente de cabeça rapada, ou com um corte radical, com o cabelo pintado em cores berrantes ou de tranças ao estilo “dreadlocks”, tatuagens e piercing, que sentada no quintal com os netinhos, de câmara fotográfica na mão, projector e computador ao lado, conta as peripécias vividas na Angola profunda, com entusiasmo e hipérbole na intenção de impressionar os ouvintes, mas que de repente ao fundo vê duas cabeças carecas a espreitar e ouve duas vozes masculinas em tom sarcástico que lançam um sonoro – é mentira! São o Kerllen e o Mauro que durante a expedição, tornaram-se meus irmãos e prometeram fazer isso no dia em que eu decidir partilhar esta aventura com os netinhos.
E ao lado de mim depois de ser desmentida pelos dois cavalheiros acima mencionados, estará a Joyce, que em expedição tornou-se naquela amiga-irmã, confidente, que normalmente só o tempo nos oferece, e juntas soltaremos aquela gargalhada estridente que estremecia o acampamento todo, durante os quase dois meses em expedição e em uníssono para fechar a conta gritaremos: – ENE VAKWETO!!! Exclamação que fará com que todos os convivas angolanos que fizeram parte desta expedição, que foi a primeira com presença em maioria de participantes nacionais, soltem a mais estrondosa das gargalhadas, pois o filme por trás dessa exclamação é de tal forma engraçado que só quem lá esteve sabe a profundidade e o desespero desnecessário, envolvidos naquele “ENE VAKWETO”.
Outro dos episódios que partilharei um dia, não muito distante.
Apetece-me continuar a escrever, escrever dias a fio, rever fotos, vídeos, audios, enviar mensagens e fazer ligações aos amigos para tirar dúvidas e enriquecer os meus escritos, escritos que quero partilhar com o máximo de pessoas possível, simplesmente porque gosto de partilhar, sou assim, os mais gentis dizem que inspiro e se inspiro é porque sou inspirada, inspirada por tudo o que me circunda e que de alguma forma me mantém viva.
Enfim, com alguma ansiedade despeço-me para já, mas prometo voltar, com mais cenas da minha participação na novela Into the Okavango.
Até aos próximos episódios.
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Sobre o projeto:
Okavango Wilderness Project, é uma iniciativa da Fundação Wild Bird Trust financiada e promovida pela National Geographic Society. Este projecto visa estabelecer novas áreas protegidas dentro de um Património Mundial da UNESCO multi-nacional, abrangendo a vasta bacia hidrográfica angolana desde o Planalto de Bié até às duas bacias (Cuito e Cubango), o Rio Okavango, que atravessa o sul de Angola e a Faixa de Caprivi, na Namíbia, bem como Ngamiland, a região que circunda e inclui o Delta do Okavango, no Botswana.
Em 2015, o explorador da National Geographic, Dr. Steve Boyes, e uma equipa interdisciplinar, incluindo cientistas angolanos, namibianos e sul-africanos, começaram a trabalhar em conjunto para explorar e proteger os rios em Angola. Por meio de uma série de expedições exclusivas baseadas em canoas e bicicletas todo o terreno, nas partes menos conhecidas e inacessíveis da bacia hidrográfica do sudeste de Angola, eles pesquisaram as nascentes dos sistemas fluviais e colectaram dados para ajudar a formar as estratégias para protegê-las.
Com este trabalho científico e de pesquisa, a equipa pretende construir conexões entre governos, organizações não-governamentais e comunidades locais para que em conjunto se trace um plano a longo prazo que estabeleça o manejo sustentável dos rios, fonte da Bacia do Okavango, para protegê-los para sempre.