Três casos de esterilização involuntária que vieram à tona somente no último mês reabrem ferida sobre o arbítrio do poder público e hospitalar em relação aos direitos reprodutivos da mulher. A Sputnik Brasil traz relatos e análises de como certos corpos são marcados para não reproduzir.
‘Filho agora só adotado, viu?’
A história está longe de ser nova. A prática de laqueadura involuntária em mulheres atravessou diversos períodos da história do país e deixou marcas de violência e angústia em muitas mulheres Brasil afora. A Sputnik Brasil conheceu a história de Luciane Florencio Costa Borges, 49 anos, de Natal (RN), que foi vítima de uma arbitrariedade que a impediu de ter filhos pelo resto da vida quando tinha apenas 21 anos de idade.
O caso aconteceu em Natal (RN), em 1991. Luciane conta que logo após ter o seu terceiro filho, aos 21 anos, não teve direito de escolha sobre o tipo de parto que queria, sendo levada diretamente para a operação de cesariana.”Tenho 3 filhos, todos de cesariana. O primeiro passei 6 horas de sofrimento e como eu tinha 16 anos aqui, alegaram que eu não tinha passagem para fazer o parto normal. O segundo filho não me falaram nada e já fui direto para cesariana”, conta.
Mas foi após ter o bebê da sua terceira — e última — gravidez que recebeu a notícia que iria marcar o resto da sua vida. Luciane saiu da maternidade sabendo que nunca mais poderia ter filhos, sem nunca ter desejado isso, ou sequer ser informada sobre o procedimento que iria sofrer.
“O terceiro a mesma coisa, entrei na maternidade. E já fui também direto para cesariana. Não me perguntaram nada se iam fazer a laqueadura. No dia seguinte, quando me deram meu filho, falaram apenas que filho agora só se fosse adotado. Eu tinha 21 anos. Fiquei muito triste porque, por ser ainda muito nova e solteira, eu poderia mais pela frente optar por ter mais um ou quantos eu quisesse ter, né verdade?”, lamenta.
“Só lembro de ter entrado na sala de cirurgia e durante os dias que fiquei na maternidade ninguém veio falar comigo. Só os enfermeiros que entravam e saíam. Depois me deram alta. E na saída da maternidade eu lembro que uma médica falou bem assim pra mim: ‘Oi, já tá de alta? Olha, filho agora só adotado, viu?’ E olhou meu filho e foi embora. Eu nem lembro mais do rosto dela. Foi difícil demais ter passado por isso”, declarou.
Um pouco tempo depois, Luciane se mudou para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como empregada doméstica por 21 anos. De acordo com ela, a violência que sofreu não foi somente na maternidade, pois, além de passar por uma cirurgia contra a sua vontade, carregou o estigma de ser estéril e sofreu preconceito em outros relacionamentos que viveu.
“Por conta disso, de não poder ter mais filhos, fui muito cobrada por isso, como se fosse eu que pedi para fazerem isso, sem me consultar antes nem depois. Hoje, por exemplo, estou casada e muito bem casada. Digamos que o meu esposo quisesse também ter filhos. Meu sofrimento começaria novamente. Pensei por muitas vezes em processar a maternidade por terem decidido fazer a laqueadura sem me consultar se era isso que eu queria ou não”, acrescentou.A história de Luciane é uma entre tantas que tiveram seus direitos reprodutivos violados e as suas perspectivas de planejamento familiar afetadas para sempre. Se hoje a notoriedade destes casos produz uma consternação pública mais enfática, não é menos preocupante a revelação de novas ocorrências na mídia, envolvendo decisões que partem direto do judiciário.
Em tempos em que cada vez mais são amplificadas as vozes e pautas de combate às opressões estruturais de gênero, reivindicando maior direito das mulheres sobre seus corpos, tanto nas ruas, quanto nas redes sociais e na mídia, a realidade brasileira parece sempre revelar uma faceta mais profunda de resistência e coloca o país em uma encruzilhada entre avanços e retrocessos.
Caso de Janaína reabre ferida
Em meados de junho, veio à luz o caso de Janaína Aparecida Quirino, moradora de rua que foi submetida a uma esterilização sem o seu consentimento. A decisão foi tomada na cidade de Mococa, no interior de São Paulo, pelo juiz Djalma Moreira Gomes, que acatou o pedido do promotor Frederico Barrufini, sem ouvir a defesa. A notícia teve repercussão internacional e reacendeu o debate sobre o poder do Estado sobre o corpo das mulheres.
Presa desde novembro do ano passado por tráfico de drogas, Janaína deixou a cela em fevereiro de 2018 para realizar o parto de sua 8ª gravidez na Santa Casa de Mogi Guaçu (SP). Enquanto isso, a justiça acatava um pedido do promotor Frederico Barrufini para que Janaína fosse submetida a um procedimento de laqueadura compulsória. O Ministério Público chegou a abrir um processo para apurar a conduta do juiz e do promotor envolvidos no caso, acusados de determinar a realização da cirurgia coercitivamente, sem sequer ouvir a vítima ou lhe dar direito a uma defesa. Quando o recurso chegou ao Tribunal de São Paulo, já era tarde demais. A mutilação já havia sido realizada e o bebê de Janaína retirado de seus braços e entregue à adoção.
O caso de Janaína ganhou ampla notoriedade após a publicação de um artigo do professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Oscar Vilhena Vieira, publicado na Folha de S.Paulo, denunciando a justiça por realizar uma esterilização em Janaína durante o parto “mesmo contra a sua vontade”. O assunto chegou à ONU. Agências da organização como o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a ONU Mulheres e o Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), divulgaram um comunicado conjunto em que manifestaram a preocupação com a “judicialização” do caso de Janaína e afirmando que “as decisões sobre a quantidade de filhos ou filhas […] pertencem às mulheres, não sendo admissível a interferência do Estado nessa esfera”.
Agora em liberdade por conta de um habeas corpus concedido em 20 de junho pelo Tribunal da Justiça de São Paulo, Janaína Quirino se vê em meio a uma controvérsia, em que o magistrado de Mococa alega que ela teria autorizado o procedimento. Após sair da prisão, no entanto, negou ter autorizado a laqueadura, afirmando que teria assinado papeis mesmo sem saber ler direito.Em entrevista à Sputnik Brasil, o presidente da OAB-SP, Marcos da Costa, confirmou que Janaína informou a uma equipe da Ordem dos Advogados que anteriormente havia autorizado o procedimento de laqueadura, mas o jurista destacou que é justamente essa mudança de opinião em relação ao processo cirúrgico que revela uma falta de discernimento por parte dela que invalidaria uma intervenção delicada como a esterilização.
“Todos os indicativos no processo, especialmente a dependência química dela e a dependência alcoólica, evidenciam uma situação onde ela não tem discernimento”, observou o presidente da OAB-SP.
Marcos da Costa destaca ainda que “o fato de ela querer ou não querer é algo que foi superado pela determinação judicial”, sendo ela “obrigada a fazer a laqueadura […] Quisesse ou não quisesse, foi uma ordem judicial para promoção dessa mutilação no corpo da mulher”, acrescenta o advogado, fazendo referência aos atos do processo.
De acordo com o processo, o promotor Frederico Barruffini afirma que, independentemente da vontade da paciente, a operação deveria ser feita por determinação da justiça.
“Não resta alternativa ao Ministério Público senão o ajuizamento da presente ação para compelir o município de Mococa a realizar a laqueadura tubária em Janaína, bem como para submetê-la a tal procedimento mesmo contra a sua vontade, tudo em conformidade com o disposto na Lei nº 9.263/96 e preceitos constitucionais que consagram a saúde como dever do Estado e direito de todos”, diz a ação civil pública.
Da omissão à objetificação
É importante observar os valores morais que carregam o processo que desencadeou na esterilização coercitiva de Janaína Quirino. De acordo com o promotor de justiça Frederico Liserre Barruffini, a laqueadura era a única forma de proteger a vida de Janaína Quirino, justificando que ela apresentava sinais de dependência química e vivia uma vida desregrada.
O presidente da OAB-SP, Marcos da Costa, destaca que “em nenhum momento [do processo] se preocupou com a vida da mulher ou com a restauração de sua dignidade e cidadania”.
”Não é um processo que constata que tem uma senhora com dependência que precisa de tratamento para recuperar sua capacidade de cidadania. Ela foi tratada no processo como um objeto. Em nenhum momento se definiu que ela pudesse sofrer um tratamento, uma internação compulsória que pudesse ajudá-la a superar o vício alcoólatra e o vício químico, para que ela seguisse a vida dela e pudesse voltar à cidadania plena e tomar a decisão se queria engravidar ou não queria engravidar”, argumenta.
“Simplesmente se abandonou a mulher. Tanto que, acabado o processo, acabada a cirurgia, esqueceu-se da mulher. Essa mulher foi presa. Hoje ela está solta graças a um habeas corpus da defensoria pública. […] A preocupação devia ser com a saúde da mulher. Em nenhum momento se preocupou com a saúde da mulher. Se preocupou em impedir que ela tivesse filhos com o argumento que ela tivesse uma vida desregrada, que já é um conceito que agrega um ponto de moralidade e que a partir disso a criança que ela pudesse ter, não seria uma criança que encontraria um lar com condições adequadas para o seu crescimento”, disse o presidente da OAB-SP.
Marcos da Costa ainda destacou um importante aspecto sexista em torno do caso de Janaína, lembrando que ela tinha um companheiro que se encontrava nas mesmas condições de dependência química e de uma alegada vida desregrada, mas que em nenhum momento se pensou em submeter o homem ao procedimento de esterilização. De acordo com ele, os casos de vasectomia são mais seguros e possuem maiores chances de reversão, enquanto o procedimento de laqueadura tubária tem chances quase nulas de reverter o procedimento.A Sputnik Brasil também conversou com Tânia Maria de Oliveira, membro da coordenação executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), instituição que entrou com uma representação tanto contra o juiz da 2ª vara do foro de Mococa, quanto contra o membro do Ministério Público, que apresentou o pedido ao juiz. De acordo com a jurista da ABJD, o caso de Janaína foi uma violação extremada, pois ela foi “submetida a um procedimento forçado por membros do sistema de justiça”.
“O juiz agrediu flagrantemente o código de ética da magistratura, que antes de proferir qualquer decisão o magistrado tem que atuar de forma cautelosa, dar tempo às circunstâncias, que podem provocar esta decisão. Isso porque ele alega que houve autorização dela em determinado momento do processo. A partir disso ele tomou uma decisão que para ela [Janaína] foi completamente irreversível. Foi uma esterilização eugênica e eugenista, com argumento que ela é uma pessoa em situação de rua. Então nesse sentido ele agrediu diversos dispositivos do código de ética da magistratura”, disse ela em entrevista à Sputnik Brasil.
A reportagem tentou entrar em contato com o juiz Djalma Moreira Gomes, que acatou o pedido do promotor, mas sua assessoria informou que ele não iria se pronunciar sobre o caso.
Com quantos ‘casos isolados’ se faz uma política?
Enquanto o processo de Janaína se desenrola na justiça, outro caso de laqueadura coercitiva veio à tona, perpetrado pelos mesmos responsáveis pela esterilização de Janaína — o juiz Djalma Moreira Gomes e o promotor Frederico Barrufini. Em processo envolvendo Tatiane Monique Dias, de 23 anos, o promotor afirma que, por já ter um filho e estar grávida do segundo, ela teria uma tendência “a ter nova prole, pois não tem condições de avaliar as consequências de uma gestação”. Tatiane chegou a assinar um termo afirmando que estava ciente da cirurgia. No entanto, a justiça afirma ao mesmo tempo que Tatiane era “incapaz” por sofrer de “retardo mental moderado” e não ter condições de “cuidar e educar os filhos”.
Além destes dois casos do magistrado de Mococa, no mesmo mês de junho foi descoberto um novo caso de laqueadura involuntária no Distrito Federal, realizado ainda em 2008, durante um processo de cesariana, também com uma mulher que já havia passado por mais de uma gravidez, dando à luz a sua terceira criança. Por conta de uma doença genética, a criança nascida dez anos atrás não resistiu e morreu com apenas 8 meses.
Ao tentar engravidar posteriormente, a mulher (que não teve o nome revelado) descobriu que as tentativas seriam em vão, pois havia sofrido uma laqueadura que nunca autorizou, e da qual nem tinha conhecimento. De acordo com o laudo pericial transitado e julgado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), “a laqueadura tubária [esterilização cirúrgica] foi realizada sem o consentimento da autora ou de seu companheiro”.O paralelo entre os casos é imediato: mulheres em situações de vulnerabilidade, que passaram por no mínimo uma gestação, tendo cerceado o seu direito de ter outros filhos. A argumentação jurídica para determinar o procedimento também segue a mesma linha: a suposta tendência para que essas mulheres engravidem novamente e a falta de condições para cuidar da prole. Retórica à parte, a lei proíbe explicitamente o procedimento de laqueadura durante o parto, o que deixa transparente o critério seletivo da mão do Estado e sobre quem recai o seu peso.
A antropóloga e professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), Debora Diniz, disse à Sputnik Brasil que os casos de esterilização involuntária têm dois aspectos de tensão. Em primeiro lugar, ela disse que não considera que a esterilização involuntária possa ser uma “prática corriqueira”, mas que, apesar da sua excepcionalidade, chama muita atenção pelo seu absurdo e violência. Por outro lado, a especialista identifica um padrão na ocorrência desses casos.
“Mesmo esses casos mais raros têm um padrão de acontecimento. São dois perfis de mulheres que correm o risco de serem violentadas dessa maneira. Um é o perfil como é o de Janaína, que é uma mulher pobre, uma mulher negra, uma mulher que estava no sistema prisional, inclusive, e que parece um corpo a ser alienado pelo poder médico e pelo poder do Estado. Que é sempre essa mulher pobre que não pode ter filhos”, destaca.
“Há um outro grupo de mulheres que há algum registro que essa prática é um pouco mais recorrente, mantendo o seu caráter de excepcionalidade, que é entre mulheres com deficiência. Ou seja, nós temos dois grupos de mulheres em que há um maior risco de uma prática tão violadora quanto essa. É claro que essa mulher com deficiência pode ser uma mulher de rua, pode ser uma mulher negra, o que amplifica a sua vulnerabilidade”, completa a antropóloga.Já o presidente da OAB-SP não escondeu a preocupação sobre a revelação das recentes ocorrências e informou que foi dado início a uma investigação se esses casos eventuais recém-divulgados representam sintomas de uma política mais abrangente.
“Nós solicitamos à corregedoria do Tribunal de Justiça que fizesse uma correição extraordinária na vara para identificar outros casos eventuais que possam ter ocorrido. Agora, além da preocupação individual dessa senhora, que teve os seus bens pessoais violados, há uma questão de fundo que é isso: até que ponto que isso não constitui uma evidência de uma política de controle de nascimentos?”, disse Marcos da Costa à Sputnik Brasil.
A eugenia veste toga: casos de laqueadura têm histórico de alvos definidos
Mesmo se partirmos da hipótese de que os casos de esterilização forçada são realmente casos mais isolados, apesar da recorrência explicitada durante o mês de junho deste ano, ainda sim, torna-se urgente discutir o que motiva tais práticas, tendo em vista que tais casos obedecem a padrões definidos. Para isso, se faz necessário traçar um paralelo entre as tensões sociais do país no passado e no presente.
As histórias de laqueadura coercitiva revelam o grau de naturalidade com que autoridades médicas e jurídicas muitas vezes decidem sobre o corpo das mulheres em casos em que se presume uma suposta vulnerabilidade da paciente. Mas a falta de uma proteção legislativa específica para defender a autonomia em relação ao planejamento reprodutivo também pode ser vista como um efeito de um período histórico muito marcante no Brasil durante o século XX, que presumia abertamente um controle populacional baseado em critérios de raça e classe.As permanentes questões que envolvem as discussões sobre discriminação racial e social no Brasil comumente giram em torno de um presente mal resolvido com sua herança histórica. No que diz respeito ao controle de nascimento, envolvendo os direitos reprodutivos da mulher, é preciso lembrar da influência do movimento eugenista brasileiro durante o século XX.
Tendo como principais pautas as questões sanitárias, higiênicas e educacionais, o movimento eugênico brasileiro foi abraçado pela elite do país no início do século, encarando a eugenia como um símbolo de “modernidade” e “progresso”. Entre os temas abordados por este movimento, se encontravam pautas como educação higiênica e sanitária, a seleção de imigrantes, a educação sexual, o controle matrimonial e da reprodução humana e debates em torno da miscigenação, branqueamento e a regeneração racial. Com isso, a exclusão de negros, imigrantes asiáticos e deficientes era entendida por membros da elite como um passo para o desenvolvimento do país.
No que diz respeito ao controle populacional, a médica de família, Thais Machado Dias, da ONG Coletivo Feminista de Saúde e Sexualidade, disse em entrevista à Sputnik Brasil que a intervenção por meio da esterilização forçada foi muito impulsionada pela teoria populacional neomalthusiana, de acordo com a qual o crescimento populacional seria a causa do subdesenvolvimento e a pobreza. Assim, segundo ela, tratar a laqueadura e o controle reprodutivo já foi uma política para combater a pobreza.”Era uma tônica internacional, dos países desenvolvidos em relação aos países em desenvolvimento, de incentivar a laqueadura como forma de combate a pobreza, como forma de controle da pobreza. E isso historicamente foi assim na grande maioria dos países e no Brasil não foi diferente”, explica Thais Machado.
Assim, vale lembrar as declarações de políticos e autoridades que reverberam nos últimos anos discursos alinhados com a lógica eugenista. Um caso emblemático neste aspecto saiu da voz do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, pai de cinco filhos, que disse em 2007, quando ainda estava no cargo, que defendia o aborto como uma forma de conter a violência no Estado, afirmando que as taxas de fertilidade de mães faveladas são uma “fábrica de produzir marginal”.
“Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. O Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só”, declarou na ocasião.O atual presidenciável Jair Bolsonaro também defendeu abertamente ao longo dos últimos anos a esterilização como forma de combater a pobreza. Na pré-campanha presidencial de 2018, Bolsonaro afirmou que pretende adotar uma política de planejamento familiar em seu programa de governo, mas ainda não forneceu detalhes sobre a proposta.
A Lei do Planejamento Familiar: vitória das mulheres, ainda que tardia
A história que une Luciane, Janaína e Tatiane, entre tantas outras mulheres vítimas da arbitrariedade do Estado, apesar de suas similaridades, pode ser dividida por um marco histórico: a lei do planejamento familiar.
Se, por um lado, durante boa parte do século XX não havia uma legislação clara que previnisse os casos e amparasse as vítimas de esterilização involuntária, permitindo uma grande disseminação destas ocorrências, a partir de meados dos anos 90, as mulheres conseguem uma vitória importante para garantir um amparo legal.
A lei que considera criminosa a prática de esterilização por vontade ou risco à vida e à saúde da mulher foi criada somente em 1996, sendo consequência de uma comissão parlamentar de inquérito instaurada em 1991 para investigar a esterilização em massa de mulheres no Brasil. De acordo com a legislação, “é vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores”.
Ou seja, se a Lei do Planejamento Familiar pode ser entendida como um divisor de águas no que diz respeito aos direitos reprodutivos da mulher, é notório que nos casos recentemente noticiados sobre laqueadura coercitiva houve uma ausência de consentimento ou direito de defesa das mulhers para contrapor a interpretação do judiciário sobre a legalidade dos processos.
A criminalização do aborto e o paradoxo da ‘defesa da vida’
Os recentes casos que flagram o legislativo autorizando laqueaduras coercitivamente aparecem como um paradoxal contraponto à lei que criminaliza o aborto, tendo em vista o seletivo argumento da “defesa da vida”.
Com uma pesquisa de mestrado voltada para o pré-natal com usuários de crack, após anos trabalhando com internação involuntária, a médica de família, Thais Machado Dias, da ONG Coletivo Feminista de Saúde e Sexualidade, conversou com a Sputnik Brasil sobre os dilemas que surgem em relação à proibição do aborto em pessoas vulneráveis ao vício químico, e a política do Estado em relação ao planejamento familiar dessas populações.
Segundo ela, quando se consegue levar a discussão do aborto para essas comunidades, “até gente que é contra o aborto, escuta mais quando se fala de uma mulher em situação de rua e uso de crack, que não queria engravidar e de repente engravida”.A médica de família fala também sobre os casos de internação involuntária de dependentes químicos e as políticas de incentivo ao tratamento da dependência para promover as gestações.
“Se eu trabalhar que internação involuntária não é o ideal, eu tenho que ficar seduzindo essa mulher falando ‘vamos se cuidar, pense no seu bebê, vamos se tratar, venha fazer o pré-natal’ […], aí você produz um desejo por um bebê que ela inicialmente não tem, e o Estado, e eu como agente do Estado vou ativamente produzindo um desejo por esse bebê para ela poder se cuidar, ou eu vou violentar essa mulher em uma internação involuntária, na hora que ela tem o filho que eu que produzi o desejo pelo filho, aí eu vou lá e tomo o filho dela e coloco ele para adoção?”, indaga.
“É uma violência! Porque ela não quer engravidar, aí ela quer abortar e não pode. Aí se interna involuntariamente ou se produz um desejo por um bebê que ela inicialmente não queria. Aí na hora que ela quer, se cuida, se interna, faz o pré-natal, o Estado toma [o bebê]”, acrescenta a especialista.
Ela frisa, no entanto, que apesar da violência do Estado nesses casos, o que se espera não é uma diminuição do Estado, mas uma participação do Estado de outra forma, garantindo direitos humanos. “Direitos humanos é um bom parâmetro de como o Estado deve se relacionar com as suas populações. Porque não é uma discussão de menos Estado”, completa.
Já a antropóloga Debora Diniz, que também cooordena o Instito de Bioética Anis, diz que a seletividadade do discurso a favor da vida não é mera incoerência, pois os dois discursos visam o mesmo fim: o controle do corpo da mulher.Segundo ela, “os mesmos grupos que vão dizer que Janaína não pode mais ter filhos, vão dizer que as mulheres têm que ir pra cadeia se decidirem em algum momento não ter filhos realizando um aborto”.
“Ou seja, o que parece ser quase que uma incoerência: ‘essa mulher não pode ter filho, essa mulher vai presa se fizer um aborto’, e é a mesma mulher, essa mulher mais vulnerável que sofre a criminalização do aborto […] Porque é uma força de controle dos corpos das mulheres, seja no caso extremo da esterilização involuntária, seja no caso permanente da criminalização do aborto”, disse a especialista à Sputnik Brasil.
“Então, na verdade, essa retórica de um vitalismo, de uma maternidade compulsória às mulheres, isso é só para algumas mulheres. E é, na verdade, outra mão que move, a de controlar a reprodução e proibir a reprodução”, completa Debora Diniz