“Parece que o fim do poço nunca chega, mas sempre pode afundar um pouquinho mais”, resume, em declarações ao Mundioka, podcast da Sputnik Brasil, Luiz Felipe Osório, professor de relações internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro “Imperialismo, Estado e relações internacionais”, sobre a herança deixada pelos EUA aos afegãos.
A prova do fracasso, segundo o especialista, é atestada pela volta do Talibã (organização sob sanções da Organização das Nações Unidas [ONU] por atividade terrorista) ao poder após a
saída dos EUA. Ou seja, a empreitada militar norte-americana, que tinha como alvo o Talibã, acabou fortalecendo o grupo ao longo de duas décadas.
“O Talibã voltou com muito apoio e respaldo popular a ponto de enxotar os Estados Unidos de lá, como fizeram naquelas cenas icônicas do ano de 2021”, relembra Osório, ressaltando o evidente fracasso norte-americano do ponto de vista social, econômico e até mesmo no que diz respeito aos direitos humanos.
O cenário atual do Afeganistão é de muita fragilidade, conforme pontua Mariana Bernussi, professora de relações internacionais do Ibmec São Paulo.
“O Afeganistão hoje está basicamente na mão de instituições humanitárias. Quase 18 milhões de pessoas precisam de algum tipo de ajuda externa, seja de outros países, de ONGs ou da própria ONU para sobreviver”, diz a analista.
De acordo com Bernussi, soma-se à situação de escassez mais de 10 milhões de crianças que também estão fora das escolas; 50% das crianças desnutridas, conforme dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, na sigla em inglês). Além disso, 75% da população afegã vive em regiões rurais onde não contam com água potável ou saneamento de qualidade. “É um dos 30 países mais pobres do mundo”, destaca.
Sobre um
eventual fracasso ou não dos EUA, a professora do Ibmec avalia que precisa ser considerado sob qual ponto de vista se fala em fracasso.
“Se a gente pensar no próprio discurso do [Joe] Biden, a fala que ele fez ao sair do Afeganistão, ele mesmo disse que o objetivo ao entrar no Afeganistão nunca foi reconstruir o país, e sim caçar os terroristas“, pontua.
Ou seja, desse ponto de vista, “se o objetivo foi evitar outro ataque em solo americano, a gente não pode dizer que foi um total fracasso”. Entretanto, “se o objetivo era acabar com o Talibã, evitar que outros grupos acendessem, aí, nesse sentido, foi um fracasso”, acrescenta Bernussi.
Talibã: a organização foi alimentada pelos EUA?
Para entender o processo de retirada dos EUA após 20 anos de
ocupação no Afeganistão, é importante entender os atores que antecederam a história que culminou nesse processo que durou duas décadas.
O Afeganistão foi palco de disputas históricas por parte de impérios que tentaram conquistar aquele território desde o século XIX. O país tem uma terra rica em minerais e
gás natural, além de contar com uma posição geográfica estratégica, sendo um
“local importante para garantir as rotas comerciais, ligando fundamentalmente a Ásia, a África e a Europa”, destaca Osório.
O Afeganistão se torna Estado-nação logo após a Primeira Guerra Mundial. “No seu início, ele tentou de alguma maneira certa modernização, certa secularização nos termos da Turquia“, recorda o especialista. No entanto, o país não avançou muito e manteve status de reinado até a década de 1970.
“A década de 70 para o Afeganistão é muito importante, porque ali começam as grandes disputas políticas em torno do domínio interno do país. A monarquia acaba caindo, vem a Constituição Democrática, de alguma maneira, e começam disputas muito intensas.”
Em 1978, o país passa por uma revolução socialista, “que teve a liderança do Partido Popular Democrático do Afeganistão, que se intitula um
partido marxista-leninista, muito atrelado, muito nos moldes da União Soviética”, destaca o analista.
Naquela época, o Afeganistão fazia fronteira com a União Soviética e buscava influência e atuação dos soviéticos em seu território.
A proximidade com a União Soviética acaba prevalecendo frente a outras possibilidades, tanto que em 1979 os soviéticos intervêm “para tentar pacificar as disputas políticas que estavam ali em curso desde a revolução”.
Em clima de Guerra Fria, os interesses norte-americanos entram para a história. “Os EUA começam uma estratégia de financiamento de certa resistência, uma contrarrevolução armada por meio desses religiosos mais ortodoxos, os Mujahedins, como se chama por aí, que eram muito vinculados ao Paquistão e também aos Estados Unidos”, explica o professor.
“Esse pessoal da contrarrevolução, muito mais conservador do ponto de vista dos costumes, estava muito atrelado a uma figura que depois vai ganhar proeminência: o árabe Osama bin Laden. O Osama bin Laden teve ligação direta, vínculos muito estreitos com os Estados Unidos, uma vez que os setores dele foram financiados pelos Estados Unidos e apoiados […] pela Arábia Saudita, onde o Osama bin Laden nasceu”, acrescenta.
Foram ao menos dez anos de luta, como relembra o analista, para que os soviéticos se retirassem do território. A União Soviética, que também vivia seus próprios problemas internos, retirou-se em 1989.
Ainda assim, o governo presente se mantém até 1992, com uma guerra civil já conflagrada, inclusive com intensificação das disputas, recorda Osório. “Até que em 1996, se chega de alguma maneira a um consenso,
se cria ali um emirado islâmico dentro do Afeganistão e quem assume é o Talibã“.
O grupo sunita assume o poder e “começa a tocar um governo, uma interpretação fundamentalista da Sharia, como se fosse uma maneira de poder chamar de uma teocracia, e com forte apoio da Arábia Saudita e do Paquistão”.
Para Osório, a figura do Osama bin Laden em si é um produto próprio dos Estados Unidos.
“Os Estados Unidos incentivaram, alimentaram essas facções, quando dado o momento em que elas serviam para os Estados Unidos a determinado propósito, que era expulsar a ocupação soviética”, comenta.
Entretanto, o grupo político ganha força e projeção a ponto de começar a incomodar os próprios Estados Unidos, o que culmina nos atentados de 11 de Setembro de 2001, planejados por Osama bin Laden e realizados pela Al-Qaeda (grupo terrorista proibido na Rússia e em diversos países), organização extremista criada por ele em 1988.
“Aquele animal que tanto foi alimentado pelos Estados Unidos acabou mordendo a mão dele”, metaforiza o pesquisador.
O Talibã hoje
Para os analistas,
o Talibã que assume o governo em 2021, após costurar alianças e contar com o apoio popular para expulsar os EUA do território afegão, tenta adotar uma postura mais maleável no contexto das relações exteriores.
Atualmente, o Talibã “mostra uma postura muito mais moderada e vem buscando, de alguma maneira, acordos comerciais com os países vizinhos” e tenta estabelecer um ambiente político minimamente estável com esses países. A China, inclusive, já tenta fechar acordos em relação às terras-raras afegãs, conta Osório.
Bernussi afirma que
o Talibã volta ao poder com um discurso “mais soft”, mas a linha dura segue em alguns contextos. “
A desigualdade de gênero é gritante no país. Basicamente 10%, 15% das mulheres conseguem cursar ensino médio”, relata.
Quanto à sustentação do grupo, a analista explica que o país continua a ser de maioria agrária. Sendo assim, os recursos do Talibã vêm, em boa parte, do cultivo de papoula. “O plantio de papoula no Afeganistão foi, nesses 20 anos, de 8 mil hectares para 230 mil hectares.”
Osório relembra que, durante o primeiro governo Talibã, a produção dessa matéria-prima da papoula havia sido proibida. Porém, durante a ocupação, “os EUA retomaram a
produção da papoula, […] foram coordenando toda a produção dessa droga, que foi alimentando […] 80% da produção global de ópio e 95% do suprimento ao mercado europeu de opioides”.
Agora, “
o tráfico de drogas é o que hoje sustenta basicamente o Talibã no poder, além de tributos e outros elementos mais básicos”, afirma Bernussi.
Fracasso dos EUA, prejuízo do povo afegão: afinal, quem venceu essa guerra?
Se há necessidade de descrever vencedores na disputa, Bernussi aponta para aqueles que lucraram com a guerra ao terror durante o período.
A mobilização do
complexo industrial militar de defesa norte-americano permitiu a atuação de companhias privadas para
fazer toda a logística de levar os equipamentos das forças dos EUA, oferecer drones, vender armas e, até mesmo, para a resolução de outros problemas, desde a falta de água até problemas de infraestrutura, que estimularam contratos bilionários com empresas de outros setores, conforme a especialista.
“Esse fenômeno do rápido crescimento das empresas militares privadas e de segurança, do lobby que elas foram fazendo junto ao governo, isso acho que explica esse lado dos ganhadores da guerra”, resume.
De 2001 a 2023 foram gastos US$ 8 trilhões (R$ 44,67 trilhões) com a guerra global ao terror, segundo Bernussi.
Na esteira do lucro estiveram também think tanks e grupos de estudos em algumas universidades, financiados pelo governo norte-americano para produzir análises que justificassem a invasão dos EUA, dando tom científico para “a guerra ao terror e a necessidade de agir de uma maneira imediata para combater essa grande ameaça”, finaliza.