Maíra Nery*
Em 2012 recebi o diagnóstico confirmando que minha mãe tem Alzheimer e ali começava uma nova história para nossa família. Os primeiros anos foram quase normais e eu ainda não tinha tomado total consciência do que viria. Alheia na minha ignorância, eu desconhecia as inúmeras perdas simbólicas e concretas que essa doença progressiva e incurável traria a nós.
Foi aos poucos fui vendo o que essa doença é capaz de causar. Gradativamente uma memória vai sendo apagada, sem deixar vestígios. Foram inúmeras as dificuldades para lidar com as etapas da piora da minha mãe, sobretudo pela velocidade em que elas ocorriam e pela minha necessidade de receber os cuidados e a dedicação dela. Ainda nova, cheia de desafios e incertezas buscava nela o meu porto seguro de sempre, mas era ela quem precisava do meu apoio, inclusive para as atividades mais rotineiras. Chorava a cada dia que percebia uma memória a menos, uma dependência ainda maior em relação a sua vida tão duramente incompatíveis com sua independência ao longo de seus 56 anos.
Perdi suas caronas quando regressava à minha cidade natal; ela já não conseguia dirigir, já não podíamos mais ir ao shopping lanchar como gostávamos de fazer, já não assistíamos mais seu programa favorito juntas. Perdi a doçura do seu olhar de mãe; ela passou a me olhar e não mais me ver como sua filha e ela perdeu a oportunidade de acompanhar o crescimento do meu filho, seu neto que ela tanto ama.
Nesse período, já tão doloroso, enfrentei uma grande perda; meu pai faleceu repentinamente. Estava ainda no luto pela perda brusca do meu pai quando fui tomada por um processo de ampliação da consciência e eu entendi plenamente que eu não tinha outra escolha. Substitui a revolta e o medo que todas essas mudanças estavam trazendo pela compreensão do quadro degenerativo e irreversível de minha mãe. Ela não podia fazer diferente; a doença tirou dela a capacidade de fazer escolhas, mas eu podia e mesmo ainda afetada e confusa por todas as transformações decidir cuidar definitivamente na medida da sua necessidade, sem questionar ou me revoltar com o que quer que seja.
Nossos papéis foram trocados, de filha passei a ser sua mãe e ela a ser minha filha e desde então a vida me ensinou um novo mundo. Tenho aprendido a ter paciência, a lidar com a saudade da nossa relação original, a caminhar no passo dela, a compreender limitações, a me alegrar quando ela consegue me dar um beijo ou um simples sorriso. A vida e o amor que temos uma pela outra, me ajuda a ultrapassar as dificuldades que surgem e evoluir com o sofrimento que fomos submetidas, fortalecendo nossos laços afetivos.
Não tenho mais medo do meu novo papel, nem deste universo oculto que ela vive, já consigo compreender e aceitar essa curva que a vida deu para nós. A compreendo, a aceito, a amo, a reconforto do jeito que é possível. A imagem de sua resiliência e serenidade me transbordam de coragem para cuidar ainda mais dela e retribuir todo o amor que ela dispensou não só a mim, mas a Lucas, meu filho, neto dela, que ela recebeu de braços abertos, embarcando junto comigo na criação dele.
Vivo intensamente cada dia que estou ao seu lado. Comemoramos seu aniversário, gostamos de reunir nossos tios, tias, sobrinhos e pessoas queridas ao lado dela. Me dei conta que ainda que essa doença tenha se manifestado precocemente em sua vida e no início da minha vida adulta já tínhamos um laço afetivo sólido, inúmeras lembranças e valiosos ensinamentos e que eu jamais desperdiçaria. A amo incondicionalmente e irrestritamente.
Tenho consciência que é pouco o que faço, sempre quando estou junto a ela peço perdão pelos erros, pelas frases não ditas, pelo carinho que por ventura tenha negligenciado, pelo egoísmo que tanto me cegou. Às vezes a dureza do cotidiano e a rotina dos meus dias me impedem de me doar ainda mais a essa mulher, que foi só amor pela família e se entregou por inteiro as suas filhas e seu neto. Peço perdão quando também sufocada pela dureza dessa doença te culpei e me culpei, pelos nossos papeis invertidos, pela ausência da minha mãe de fato e da saudade implicada nisso.
Eu quero que ela, a minha criança grande, saiba da gratidão que sinto pela oportunidade de servir, de aprender a crescer pela dor, porque assim foi possível sentir o amor verdadeiro e me tornar ainda mais humana. Ao passar por essa experiência pude compreender melhor a vida e talvez o que ela espera de nós. Foram vários conflitos e dilemas internos, que não só eu, mas toda a minha família tem vivenciado. O resultado foi a força que essa história trouxe para nós, por mais espinhosa que seja a missão, estaremos juntos e não fugiremos da luta.
Em meu coração nada mudou, ela ainda é para mim quem sempre foi. Lembro com orgulho da nossa relação, de tudo o que ela construiu e meu mundo se enche de cores e esperança. Quando a vida me cansa olho suas rugas e a doçura do nosso amor me oxigena a continuar. Eu estarei sempre ao lado dela, não só porque ela precisa de mim, sobretudo porque eu preciso imensamente dela. Essa doença destrói as suas conexões neurais, mas tenho certeza que ela jamais atingirá nossos laços afetivos.
*Maíra Nery é estudante de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia