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quarta-feira, 17 abril, 2024

A trágica disfuncionalidade de um sistema que tem de ser substituído:   o capitalismo (1)

por Daniel Vaz de Carvalho

Muss es sein? (Grave) Es muss sein! Es muss sein! (Allegro)

(Tem de ser? Tem de ser! Tem de ser!)

Beethoven, frase final do quarteto opus 135

Cartoon de Ivan Lira.Beethoven, no final do seu quarteto opus 135, leva-nos, como ele próprio disse, no sentido de uma resolução obtida com dificuldade. O que importa trazer aqui é a resposta marxista à imperiosa necessidade de substituir um sistema movido por uma obscena ganância e cujas contradições o tornam incapaz de ultrapassar o nível do obscurantismo, quando não da barbárie. Por isso, o marxismo evidenciou o dilema colocado ao proletariado: socialismo ou barbárie. (Rosa Luxemburgo)

1 – Uma teoria sem prática, uma prática sem teoria

A teoria económica vigente, o neoliberalismo (N-L), mais propriamente a economia neoclássica, foi há muito rejeitada. Economistas como Remy Herrera, Samir Amim, Atilio Bóron, Jorge Beinstein, Michael Hudson, J. Stiglitz, Jacques Sapir, etc, marxistas, keynesianos e outros, submeteram a ortodoxia vigente a demolidora crítica quer do ponto de vista teórico quer confrontando-a com as consequências práticas. Que aconteceu? Nada. Salvo exceções como Stiglitz, são ignorados não só do grande público, mas dos estudantes. A economia neoclássica contínua a ser a doutrina oficial nas escolas e universidades. Aqueles autores, procuraram repor a ciência económica nos seus parâmetros sociais que lhe tinham sido retirados. Mesmo os casos, como Stiglitz, que sem pretender alterar o sistema capitalista mostraram que as gritantes desigualdades criadas levariam à destruição do sistema, são tomados como curiosidade.

O N-L baseia-se numa série de postulados, ou sejam, hipóteses ou crenças, transformadas em leis, conferindo-lhe um determinismo mecanicista. Hipóteses que contudo não se verificam na realidade, tal como a capacidade dos agentes económicos preverem os estados económicos futuros; o mercado livre tender “naturalmente” para um constante ajustamento e equilíbrio; os mercados satisfazerem todas as exigências (de quem?) e que nenhum agente dispõe de poder sobre os preços.

Uma das bases do N-L é a conceção que o equilíbrio económico e a máxima eficiência na aplicação dos recursos são conseguidos pelo mercado livre – concorrência livre e não falseada, diz a UE – apesar das estruturas monopolistas promovidas e protegidas.

As bolhas especulativas são a mais evidente negação da teoria do equilíbrio: ao procurar o máximo interesse individual a instabilidade é permanente. A “lei da oferta e procura” funciona simplesmente ao contrário do que diz a teoria.

Dado que na vida real a economia evolui numa sucessão de desequilíbrios que é necessário vigiar e corrigir constantemente, fica por explicar o que acontece se houver desequilíbrios entre a oferta e a procura, estruturas monopolistas, ou “imperfeições” nos mercados como interferências do Estado, sindicatos reivindicativos, etc. Então, os agentes apenas dispõem de informações erróneas e incompletas. Querendo cada agente maximizar a sua “utilidade” será conduzido, de acordo com a teoria, a maiores desequilíbrios.

A teoria apesar de passar por verdade única (o “não há alternativa”) não é aplicada na prática. Porquê? Por que não pode ser… A sua aplicação levaria (e levou, apesar supostas medidas corretivas) a sucessivas crises económicas, financeiras e sociais. Por isso, na prática sofre toda uma série de entorses, cujo objetivo é salvaguardar os interesses da oligarquia.

Mesmo antes do Covid-19 já a instabilidade nos mercados financeiros e uma próxima recessão eram evidentes. Na sequência da crise de 2008, a entrega de dinheiro à banca através da “flexibilização temporária de liquidez (quantitative easing) serviu não ao sistema produtivo, muito menos à melhor redistribuição do rendimento, mas para especulação financeira. Perversão dos agentes económicos? Talvez. Errado? Não, apenas o resultado da própria teoria em que cada agente procura melhorar a utilidade individual das suas ações.

A teoria defende a desregulamentação em nome da eficácia, a prática introduziu regulamentações em nome da mesma eficácia, para evitar o total descalabro do sistema.

Uma teoria que não se aplica na prática, que não tem meios de resolver as crises sejam-lhe inerentes ou trazidas do exterior, é como uma instalação elétrica prevista para funcionamento normal, mas não para curto-circuitos ou sobrecargas; como se a construção de um navio ou um avião, apesar das linhas elegantes, não suportasse condições de mau tempo.

Os postulados em que a teoria se baseia são artifícios para justificar “elegantes” descrições matemáticas e demonstrar a eficiência da Teoria do Equilíbrio Geral. Este equilíbrio e o seu ótimo ignoram o que seja social e estrategicamente adequado ao desenvolvimento de um país: o planeamento estatal, baseado numa estratégia macroeconómica, não é permitido, dado que isso seria contrariar a eficiência dos “mercados”.

A eficiência que o sistema proclama é simplesmente um conceito técnico dentro de determinada ordem social. Transformar esta “eficiência” em política económica, ou melhor, economia política, é como o marxismo afirma transformar o economista em ideólogo.

Pode haver concorrência perfeita e equilíbrio entre a oferta e a procura, mas haver desemprego, capacidades excedentárias, desperdício de recursos, já não falando em pobreza e injustiça social.

Para além do “ótimo” definido matematicamente, na realidade o que se processa é a escolha entre várias opções ou critérios que conduzirão ou não a resultados mais eficazes ou mais sustentáveis sociológica e ambientalmente: lucro x ambiente x desenvolvimento social. Porém, como disse Stiglitz, “a tomada de decisões era fundada sobre uma curiosa mistura de ideologia e má economia, um dogma que por vezes apenas dissimulava interesses privados.” (Stiglitz, Globalization and Its Discontents ) .

A dita “ciência económica” não trata de compreender o modo de funcionamento das sociedades, mas de impor uma série de dogmas, um conjunto de raciocínios lógicos, apoiados em deduções matemáticas, que justificam determinadas regras sociais: uma espécie de escolástica, em que antes de se começar a filosofar já se sabia a verdade. Mas, não era a “Cidade de Deus” (S. Agostinho) que a escolástica ia construir, na vida prática, o que se tratava era da luta pelo poder entre o papado e a realeza e manter o povo submisso.

Perante os falhanços da ortodoxia liberal, os seus mais radicais defensores ou mudaram o discurso ou foram substituídos nos media por gongóricos “comentadores”, que passam por especialistas, e cuja função é produzirem argumentos e justificações para os repetidos falhanços económicos e sociais do sistema.

As “regras” do N-L são sobretudo usadas como instrumental para a passividade e submissão do proletariado e também para castigo dos “hereges, relapsos e contumazes” (terminologia da Inquisição) que não aceitem a “Nova Ordem Global” do imperialismo e da sua globalização.

Segundo a teoria, a interferência do Estado deve ser mínima, não interferir nos mercados e afetar a eficiência da dinâmica concorrencial. No entanto, por paradoxal que seja, é isto precisamente o que o capital pretende em apoios legais e subsídios, afinal uma perversão do mercado com ou sem crise.

Como afirma Michael Hudson: “Quando dizem que são anti-governo eles são realmente anti-democracia. Pretendem um governo com punho de ferro por grandes empresas e, acima de tudo, por grandes bancos.” [1]

A teoria exige sistemas perfeitamente flexíveis, ignorando a rigidez própria das estruturas tecnológicas, sociais ou mesmo financeiras (liquidez). As chamadas “reformas” visam a desregulamentação de procedimentos económicos, financeiros e sociais, dando todo o poder aos detentores de capital para agirem livremente, por contradição apoiados por um Estado forte, controlador do fator trabalho, repressivo em nome da “economia”, isto é, no interesse dos detentores do capital.

A repartição do rendimento é uma questão central em todas as sociedades, desde a antiguidade, mas o tema é alheio em toda a teoria, considerado como o resultado da concorrência (entre quem?) quando em nome da “liberdade” e da eficiência (para quem?) se exige “flexibilidade laboral” – supressão de direitos laborais.

Os propagandistas repetiam com enlevo a afirmação da sra. Tatcher, de não haver nada que se pudesse chamar sociedade, apenas indivíduos. Esta estupidez faz parte do credo N-L, para fomentar o individualismo, o desinteresse pelo pelos aspetos sociais das questões.

Que teria acontecido em resultado da pandemia, com os serviços públicos privatizados, as relações laborais acentuadamente “flexibilizadas” na precariedade laboral para maior “eficiência” e o Estado “despesista” para tudo o que seja social – sem recursos, porque a sua interferência prejudica o “ótimo” que a teoria pretende?

O N-L mostrou que não apenas não pode resolver pelos seus mecanismos qualquer crise, sejam aquelas de que é causa direta, económica, financeira, social, ambiental ou belicista, muito menos uma crise sanitária como a do Covid-19. É um sistema que tem de ser substituído.

2 – Um império cruel, decadente, disfuncional.

O imperialismo pretende dominar o mundo. Para dominar é preciso controlar, para controlar é preciso uniformizar: a linguagem social (promovida pelos media), a ideologia (o individualismo), o sistema socioeconómico (o neoliberalismo) e dispor de uma força militar que intimide.

Jonh Perkins em Confessions of an Economic Hit Man expõe com conhecimento direto os processos do imperialismo contra os que pretendem defender a soberania dos seus países, os seus recursos naturais ou lutar contra os desmandos da oligarquia.

Para estabelecer o seu poder, o pretenso império não hesita em liquidar os que se opõem ao seu domínio. São aplicadas sanções, contratados e financiados mercenários para “mudanças de regime”, organizados grupos destinados a desencadear ações de violência e espalhar o caos urbano, caso necessário recorre à agressão militar direta.

Com o horroroso Plano Condor, para derrubar dirigentes eleitos democraticamente e liquidar tudo o que tivesse laivos de progressista, a América Latina tornou-se um antro de prisões, torturas, assassinatos políticos. Procedimentos análogos foram levados para outros continentes, servindo-se de asquerosos ditadores, meros agentes do capitalismo monopolista transnacional, deixando os seus povos na pobreza e na opressão. Estes países não deixaram de ser considerados do “mundo livre”, embora mais de 70% das ditaduras fossem apoiadas pelos EUA.

A CIA usou técnicas de tortura e prisões secretas em vários países. Em 1963 a CIA elaborou um manual de tortura, chamado Kurback Counterintelligence-Interrogation . Outro manual foi emitido 1983, o Human Resource Exploitation Training manual .

As sanções económicas constituem uma diferente forma de guerra. Considera-se que um terço da população mundial é diretamente afetada, porém o mundo inteiro fica-lhes sujeito, já que os EUA, assumem um direito de extraterritorialidade: qualquer país, empresa ou pessoa que não as cumpra será por sua vez sancionado.

Um crime contra a humanidade, afirmou Alfred de Zayas, diretor do gabinete de reclamações do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos. Subserviente, a UE dos “valores” colabora, mesmo contra o que seriam os seus mais imediatos interesses. Nem com a pandemia foi estabelecida uma trégua nas sanções e na ações de agressão em curso.

Em 2018, o embaixador dos EUA em Caracas, explicitou as sanções contra a Venezuela: “Devemos tratá-las como uma tragédia continuada (…) que irá ter um impacto negativo em milhões de pessoas que já estão com dificuldades em encontrar alimentos e medicamentos (…) o fim desejado justifica este severo castigo”. “É necessário aumentar o processo de desestabilização e de falta de abastecimentos (…) para a Venezuela entrar numa crise humanitária.” “Intensificar a fuga de capitais, a deterioração da moeda nacional. (…) Obstruir todas as importações e desmotivar os possíveis investidores estrangeiros.” [2] Um império que se arroga o direito de implantar importantes dispositivos militares nas fronteiras de outros países. Mas se estes países reforçam as suas defesas, tal é considerado uma ameaça à segurança dos EUA… Apenas desde o 11 de setembro de 2001, estima-se que a ação imperialista tenha levado à morte entre 5 a 7 milhões de pessoas. [3]

Em África, um continente de pobreza e subdesenvolvimento, os líderes nacionalistas progressistas foram mortos – a começar por P. Lumumba – ou afastados pela violência – a fim de instalar ditadores ao serviço do império.

Mas é um império disfuncional e decadente. Disfuncional porque cria instabilidade, retrocesso civilizacional e obscurantismo nos países onde se instala. Nos paraísos artificiais que o capital proclama, reina a estagnação económica, crescem as desigualdades, os horrores do crime organizado, de que a finança se aproveita porque o “dinheiro não tem cheiro”.

Os países que o imperialismo agride não mais conhecem a paz seja social seja militar. O Afeganistão tornou-se o grande centro produtor de heroína. A Líbia o país com maior nível de vida de África, foi levado ao caos e centro de tráfico de escravos. O Iraque ficou pior do que sob a ditadura de Saddam Hussein, posto no poder pelos EUA depois de derrubar o governo progressista do gen. Kassem.

Os dirigentes políticos do império e aliados/vassalos distinguem-se pelo baixo nível político, ético, mesmo intelectual. São simples funcionários que a oligarquia aceita transitoriamente para dirigirem os seus interesses – chamam a isto “democracia liberal”.

Como império que pretende ser, não respeita interesses nacionais, tratados ou organizações internacionais, desde que não lhe estejam subordinadas. Mas é um império decadente. Perdeu a supremacia militar convencional que serve apenas para atacar países praticamente indefesos e pobres. Apesar disto não vence nenhuma guerra desde 1945, se excetuarmos os minúsculos Panamá e Granada.

A dívida federal dos EUA atingia em meados de 2019, 22,5 milhões de milhões de dólares, atualmente 24,8 milhões de milhões. Uma dívida impagável de 116% do PIB. A dívida total dos EUA atinge 77,2 milhões de milhões. Em juros líquidos a finança obtém 673 mil milhões de dólares. O desemprego real em 30 de abril, era de 39,2 milhões de trabalhadores. ( us debt clock ). Há cerca de 2 milhões de presos.

No final de 2019, mais de 50 milhões de pessoas recorriam a assistência alimentar. Entre os quais 25% de todas as crianças nos EUA. Cerca de 25% da população americana não pode comprar comida suficiente para se manter saudável. [4] Estima-se que 2,5 milhões de estudantes universitários recorram à prostituição para pagar as suas dívidas. [5] Crianças são procuradas e vendidas para sexo. Em 2019, haveria 100 a 150 mil crianças como “trabalhadoras e trabalhadores sexuais”. [6]

Outra catástrofe americana são as mortes por drogas, álcool e suicídios , cuja taxa aumentou para 46,6 mortes por 100 mil pessoas em 2017, um aumento de 6%. A crise do Covid-19 evidenciou a disfuncionalidade de um país e um sistema que se quer impor ao mundo inteiro, mesmo pela violência: nas últimas duas semanas de abril o número de mortes foi multiplicado por 2,3 vezes, ultrapassando os 63 mil (27% do total mundial), registando 874 mil casos ativos (43% do total mundial).

Desde 1990, 63% de todos os empregos criados foram empregos com salários baixos e a termo incerto. Os EUA tornaram-se um país “não de justiça para todos, mas de favoritismo para os ricos e justiça para quem a puder pagar. O sistema é mais semelhante a um dólar um voto que uma pessoa um voto.” (Stiglitz, O preço da desigualdade e o mito da oportunidade ).

Quem ganha com tudo isto, são os ultraricos cujo número em 25 anos foi multiplicado por 10 ( Global Wealth Databook ), tendo a sua riqueza mais que triplicado de 2006 a 2018, de 2,6 milhões de milhões para 9,1 milhões de milhões. Os 400 mais ricos dos EUA têm mais dinheiro que 64% da população do país .

Mas o império tem uma vantagem: a maior parte do noticiário internacional dos media ocidentais é fornecida por apenas três agências globais de notícias. A sua função é que a violência, a agressão, as ingerências e sanções sejam aceites como necessárias contra as “forças do mal”.

Um império que vive da propaganda e da intimidação, levando o caos, a disfuncionalidade, a desigualdade, a pobreza, a dependência, onde quer que se implante, tem de ser substituído, por um verdadeiro humanismo nas relações internacionais: o internacionalismo marxista. [7]

(continua)

[1] Michael Hudson, O toque a finados do neoliberalismo?, 2a parte

[2] José Goulão, Os inquietantes mistérios do voo TP173 para Caracas

[3] Nicolas J.S. Davies,   Combien de millions de personnes ont-elles été tuées dans les guerres menées par les États-Unis après le 11 septembre?

[4] Larry Romanoff, The Richest Country’s Empty Plates. 50 Million Hungry Americans

[5] College students are increasingly finding ‘sugar daddies’

[6] Casey Chalk, The Dire Emergency of Small-Town America ,

[7] Chomsky: Cuba est le seul pays à avoir fait preuve d’un véritable internationalisme

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .

03/Mai/20

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