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sexta-feira, 29 março, 2024

A QUEM APROVEITA A TRAGÉDIA DE BEIRUTE

Porto de Beirute após a explosão.

por Pepe Escobar [*]

A narrativa de que a explosão de Beirute foi uma consequência exclusiva da negligência e corrupção do atual governo libanês está agora gravada em pedra, pelo menos na esfera atlantista.

Ainda assim, escavando mais fundo, descobrimos que a negligência e a corrupção podem ter sido plenamente exploradas, através de sabotagem, a fim de engendrá-la.

O Líbano é o território por excelência de John Le Carré. Um antro multinacional de espiões de todos os matizes – agentes da Casa de Saud, operacionais sionistas, armadores de “rebeldes moderados”, intelectuais do Hezbollah, “realeza” árabe depravada, contrabandistas auto-glorificados – no contexto de um desastre económico de amplo espectro que aflige um membro do Eixo da Resistência, um alvo perene de Israel juntamente com Síria e o Irão.

Como se isso não fosse suficientemente vulcânico, o presidente Trump saltou na tragédia para turvar as – já contaminadas – águas do Mediterrâneo Oriental. Informado pelos “nossos grandes generais”, Trump disse na terça-feira: “De acordo com eles – eles saberiam melhor do que eu – mas parecem pensar que foi um ataque.”

Trump acrescentou: “foi uma bomba de alguma espécie”.

Essa observação incendiária deixava o gato fora do saco, revelando informações confidenciais? Ou o presidente estava a lançar outro non sequitur?

Trump finalmente voltou atrás nos seus comentários depois de o Pentágono se recusar a confirmar a sua afirmação acerca do que os “generais” haviam dito. E o seu secretário de defesa, Mark Esper, apoiou a explicação do acidente para a explosão.

Isto é mais uma ilustração gráfica da guerra que avassala a Beltway. Trump: ataque. Pentágono: acidente. “Eu não penso que alguém possa dizer neste momento”, disse Trump na quarta-feira. “Eu ouvi das duas maneiras.”

Ainda assim, vale a pena notar uma reportagem da Agência de Notícias Mehr, do Irã, de que quatro aviões de reconhecimento da US Navy foram avistados perto de Beirute no momento das explosões. A inteligência dos EUA está ciente do que realmente aconteceu desde o princípio em todo espectro de possibilidades?

Aquele nitrato de amónio

A segurança no porto de Beirute – o principal centro econômico do país – teria de ser considerada uma prioridade. Mas adaptando uma frase do [filme] Chinatown de Roman Polanski: “Esqueça, Jake. É Beirute”.

Estas agora icónicas 2.750 toneladas de nitrato de amónio chegaram a Beirute em Setembro de 2013 a bordo do Rhosus, um navio de bandeira da moldava a navegar de Batumi, na Geórgia, para Moçambique. O Rhosus acabou por ser apreendido pelo Controle Estatal do Porto de Beirute.

Posteriormente, o navio foi de facto abandonado pelo seu proprietário, o obscuro empresário Igor Grechushkin, nascido na Rússia e residente em Chipre, que suspeitamente “perdeu o interesse” na sua carga relativamente preciosa, nem sequer tentando vendê-la, a qualquer preço, para liquidar suas dívidas.

Grechushkin nunca pagou sua tripulação, a qual mal sobreviveu durante vários meses antes de ser repatriada por razões humanitárias. O governo cipriota confirmou que não havia qualquer pedido do Líbano à Interpol para prendê-lo. Toda a operação parece um encobrimento – com os verdadeiros recepetores do nitrato de amónio sendo possivelmente “rebeldes moderados” na Síria, que o utilizam para fazer IEDs [Improvised Explosive Devices] e equipar camiões suicidas, tal como aquele que demoliu o hospital Al Kindi em Aleppo.

As 2.750 toneladas – embaladas em sacos de 1 tonelada etiquetados “Nitroprill HD” – foram transferidas para o armazém do Hangar 12, próximo ao cais. O que se seguiu foi um caso espantoso de negligências em série.

De 2014 a 2017, cartas de responsáveis alfandegários – uma série deles – bem como opções propostas para se livrar da carga perigosa, exportando-a ou vendendo-a, foram simplesmente ignoradas. Cada vez que tentavam obter uma decisão legal para se desfazer da carga, ficavam sem resposta do judiciário libanês.

Quando o primeiro-ministro libanês, Hassan Diab, agora proclama: “Os responsáveis pagarão o preço”, o contexto é absolutamente essencial.

Nem o primeiro-ministro, nem o presidente, nem qualquer dos ministros sabiam que o nitrato de amónio estava armazenado no Hangar 12, confirma o ex-diplomata iraniano Amir Mousavi, diretor do Centro de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais de Teerã. Estamos a falar de um IED gigante, posicionado no meio da cidade.

A burocracia do porto de Beirute e as máfias que estão atualmente no comando estão intimamente ligadas, entre outros, à facção al-Mostaqbal, a qual é liderada pelo ex-primeiro-ministro Saad al-Hariri, ele próprio apoiado plenamente pela Casa de Saud.

O imensamente corrupto Hariri foi removido do poder em Outubro de 2019 em meio a protestos sérios. Seus comparsas fizeram “desaparecer” pelo menos US$20 bilhões do tesouro do Líbano – o que agravou gravemente a crise monetária do país.

Não é de admirar que o atual governo – onde temos o primeiro-ministro Diab apoiado pelo Hezbollah – não tenha sido informado acerca do nitrato de amónio.

O nitrato de amónio é bastante estável, o que o torna um dos explosivos mais seguros entre os utilizados na mineração. O fogo normalmente não o detonará. Ele só se torna altamente explosivo se for contaminado – por óleo, por exemplo – ou aquecido a um ponto em que sofra alterações químicas que produzam uma espécie de casulo impermeável em torno de si no qual pode-se acumular oxigénio a um nível perigoso em que uma ignição possa causar uma explosão.

Por que, depois de dormir no Hangar 12 durante sete anos, esta pilha de repente sentiu vontade de explodir?

Até agora, a explicação mais direta, do especialista em Oriente Médio Elijah Magnier, aponta para a tragédia sendo “desencadeada” – literalmente – por um serralheiro despistado a operar com um maçarico bem próximo ao nitrato de amónio não protegido. Não protegido, mais uma vez, devido à negligência e corrupção – ou como parte de um “erro” intencional antecipando a possibilidade de uma futura explosão.

Este cenário, contudo, não explica a explosão inicial de “fogos de artifício”. E certamente não explica o que ninguém – pelo menos no Ocidente – está a falar:   dos incêndios deliberados ateados num mercado iraniano em Ajam, nos Emirados Árabes Unidos, e também numa série de armazéns agrícolas/alimentares em Najaf, Iraque, imediatamente após a tragédia de Beirute.

Siga o dinheiro

O Líbano – ostentando ativos e imóveis no valor de vários bilhões de dólares – é uma fruta sumarenta para os abutres das finanças globais. Adquirir estes ativos a preços baixíssimos, no meio da Nova Grande Depressão, é simplesmente irresistível. Paralelamente, o abutre do FMI embarcaria no modo de usura total e finalmente “perdoaria” algumas das dívidas de Beirute, desde que fosse imposta uma variante dura de “ajustamento estrutural”.

Quem lucra, neste caso, são os interesses geopolíticos e geoeconômicos dos Estados Unidos, Arábia Saudita e França. Não é por acaso que o presidente Macron, um serviçal zeloso dos Rothschild, chegou a Beirute na quinta-feira para prometer o “apoio” neocolonial de Paris e quase impor, tal como um vice-rei, um conjunto abrangente de “reformas”. Um diálogo inspirado em Monty Python, completo com forte sotaque francês, pode ter seguido estas linhas: “Queremos comprar o seu porto”. “Não está à venda”. “Oh, que pena, um acidente acabou de acontecer.”

Já há um mês o FMI “advertia” que a “implosão” no Líbano estava a “acelerar-se”. O primeiro-ministro Diab tinha de aceitar a proverbial “oferta irrecusável” e, assim, “desbloquear milhares de milhões de dólares em fundos de doadores”. Se não… A corrida incessante à divisa libanesa, durante mais de um ano, era apenas um aviso relativamente delicado.

Isso já está a acontecer em meio a uma maciça captura de ativos globais caracterizada no contexto mais amplo pela queda do PIB americano em quase 40%, de falências em série, um punhado de multimilionários acumulando lucros inacreditáveis e megabancos demasiado grandes para falir devidamente resgatados (bailed out) com um tsunami de dinheiro gratuito.

Dag Detter, um financista sueco, e Nasser Saidi, um ex-ministro libanês e vice-governador do banco central, sugerem que os ativos do país sejam colocados num fundo de riqueza nacional. Os ativos sumarentos incluem a Electricité du Liban (EDL), concessionárias de água, aeroportos, a companhia aérea MEA, a empresa de telecomunicações OGERO, o Casino du Liban.

A EDL, por exemplo, é responsável por 30% do défice orçamental de Beirute.

Isso não chega nem de perto para o apetite do FMI e dos megabancos ocidentais. Eles querem engolir a coisa toda, além de muito imobiliário.

“O valor económico dos imóveis públicos pode equivaler pelo menos ao do PIB e frequentemente várias vezes o valor da parte operacional de qualquer portfólio”, afirmam Detter e Saidi.

Quem está a sentir as ondas de choque?

Mais uma vez, Israel é o elefante proverbial numa sala que agora é sempre retratada pelos media corporativos ocidentais como a “Chernobyl do Líbano”. Um cenário como a catástrofe de Beirute tem estado ligado aos planos israelenses desde Fevereiro de 2016.

Israel admitiu que o Hangar 12 não era uma unidade de armazenamento de armas do Hezbollah. Ainda assim, crucialmente, no mesmo dia da explosão em Beirute, e após uma série de explosões suspeitas no Irão e de alta tensão na fronteira Síria-Israel, o primeiro-ministro Netanyahu tuitou, com o verbo no tempo presente:   “Nós atingimos uma célula e agora atingimos os expedidores (dispatchers). Faremos o que for preciso para nos defendermos. Sugiro a todos eles, incluindo o Hezbollah, que considerem isso”.

Isso está de acordo com a intenção, proclamada abertamente no final da semana passada, de bombardear a infraestrutura libanesa se o Hezbollah prejudicar soldados das Forças de Defesa de Israel ou civis israelenses.

Uma manchete – “As ondas de choque da explosão em Beirute serão sentidas pelo Hezbollah por muito tempo” – confirma que a única coisa que importa para Tel Aviv é aproveitar a tragédia para demonizar o Hezbollah e, por associação, o Irã. Isso está de acordo com lei do Congresso dos EUA, Countering Hezbollah in Lebanon’s Military Act of 2019″ {S.1886}, a qual praticamente ordena a Beirute que expulse o Hezbollah do Líbano.

E, no entanto, Israel foi estranhamente subjugado.

A turvar ainda mais as águas, a inteligência saudita – que tem acesso ao Mossad e demoniza o Hezbollah ainda mais do que Israel – ela intromete-se. Todos os operacionais de inteligência com quem conversei recusam-se a falar on the record, considerando a extrema sensibilidade do assunto.

Ainda assim, deve ser enfatizado que uma fonte de inteligência saudita, cuja especialidade são frequentes trocas de informações com o Mossad, afirma que o alvo original eram mísseis do Hezbollah armazenados no porto de Beirute. Sua estória é que o primeiro-ministro Netanyahu estava prestes a tomar o crédito pelo ataque – dando sequência no seu tweet. Mas então o Mossad percebeu que a operação tornara-se terrivelmente errada e metastaziara-se numa grande catástrofe.

O problema começa com o fato de que isto não era um depósito de armas do Hezbollah – como até mesmo Israel admitiu. Quando depósitos de armas são explodidos, há uma explosão primária seguida por várias explosões menores, algo que pode perdurar durante vários dias. Não foi isto o que aconteceu em Beirute. A explosão inicial foi seguida por uma segunda explosão massiva – quase certamente uma grande explosão química – e então houve silêncio.

Thierry Meyssan , muito próximo da inteligência síria, adianta a possibilidade de que o “ataque” foi executado com uma arma desconhecida, um míssil – e não uma bomba nuclear – testada na Síria em Janeiro de 2020. (O teste é mostrado num vídeo anexo ). Nem a Síria nem o Irão jamais fizeram referência a esta arma desconhecida e não tive confirmação da sua existência.

Assumindo que o porto de Beirute foi atingido por uma “arma desconhecida”, o presidente Trump pode ter dito a verdade: foi um “ataque”. E isso explicaria porque Netanyahu, ao contemplar a devastação em Beirute, decidiu que Israel precisaria manter um perfil muito discreto.

Observe aquele camelo em movimento

A explosão de Beirute, à primeira vista, pode ser vista como um golpe mortal contra a Iniciativa da Rota da Seda (Belt and Road), considerando que a China encara a conectividade entre o Irão, Iraque, Síria e Líbano como a pedra angular do corredor do Sudoeste da Ásia da Estrada da Seda.

No entanto, isso pode sair pela culatra – muito mal. A China e o Irã já estão a posicionar-se como os investidores preferidos após a explosão, em nítido contraste com os pistoleiros do FMI e como aconselhado pelo secretário-geral do Hezbollah, Nasrallah, há apenas algumas semanas.

A Síria e o Irã estão na vanguarda do fornecimento de ajuda ao Líbano. Teerã está a enviar um hospital de emergência, pacotes de alimentos, remédios e equipamentos médicos. A Síria abriu suas fronteiras com o Líbano, despachou equipes médicas e está a receber pacientes dos hospitais de Beirute.

É sempre importante ter em mente que o “ataque” (Trump) ao porto de Beirute destruiu o principal silo de cereais do Líbano, além de provocar a destruição total do porto – a principal linha de abastecimento comercial do país.

Isto se ajustaria a uma estratégia de matar o Líbano à fome. Nesse mesmo dia, o Líbano tornou-se em grande medida dependente da Síria em termos alimentares. Como ela só dispor de trigo para um mês de abastecimento, os EUA atacaram silos na Síria.

A Síria é um grande exportador de trigo orgânico. E é por isso que os EUA rotineiramente alvejam silos sírios e queimam suas plantações – tentando também esfaimar a Síria e forçar Damasco, já sob sanções severas, a gastar fundos extremamente necessários na compra de alimentos

Em contraste absoluto com os interesses do eixo EUA/ França/ Arábia Saudita, o Plano A para o Líbano seria abandonar progressivamente o estrangulamento EUA-França e ir diretamente para a Rota da Seda, bem como para a Organização de Cooperação de Xangai. Ir para o Leste, o caminho da Eurásia. O porto e mesmo boa parte da cidade devastada, a médio prazo, podem ser reconstruídos de forma rápida e profissional com investimentos chineses. Os chineses são especialistas em construção e administração de portos.

Este cenário confessadamente optimista implicaria um expurgo dos hiper-ricos, a plutocracia corrupta das armas/drogas/ canalhas imobiliários do Líbano – os quais, de qualquer forma, fogem para seus elegantes apartamentos em Paris ao primeiro sinal de perturbação.

Junte-se isso ao sistema de bem-estar social muito bem-sucedido do Hezbollah – que eu próprio vi em funcionamento no ano passado – tentando ganhar a confiança das classes médias empobrecidas e, assim, tornar-se o núcleo da reconstrução.

Será uma luta de Sísifo. Mas compare esta situação com o Império do Caos – o qual precisa do caos por toda a parte, especialmente na Eurásia, para encobrir o caos Mad Max dentro dos Estados Unidos.

Os notórios 7 países em 5 anos do general Wesley Clark mais uma vez vêm à mente – e o Líbano continua a ser um destes sete países. A lira libanesa pode ter entrado em colapso; a maior parte dos libaneses pode estar completamente falida; e agora Beirute está semi-devastada. Este pode ser o fardo de palha adicional que quebra as costas do camelo – soltando o camelo para a liberdade de finalmente refazer seus passos de volta à Ásia ao longo das Novas Rotas da Seda.

08/Agosto/2020

Ver também:

US encourages ‘peaceful’ regime change as protests rage in blast-ravaged Beirut

The Beirut Explosion: Who Is Responsible?

[*] Jornalista.

O original encontra-se no Asia Times e em The Saker

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