Pedro Augusto Pinho*
Lionel Balout, arqueólogo, etnólogo, professor e diretor do Museu Nacional de História Natural, em Paris, define que, para o pré-historiador, existe um limiar técnico que abre o caminho do humano. É quando a manufatura não se deveu a qualquer causa natural, não foi, por exemplo, a lasca de uma pedra que desabou, e que esta ação ocorreu cronologicamente primeiro, não se aponta a mais remota evidência de outra similar, anterior. Tratam-se do “como” e do “quando”.
Balout está precisando o momento da história do homem em que, com segurança, o antropólogo está diante do homem, um ser capaz de sobreviver, se defender e progredir.
Lembremos que este homem surgiu na parte oriental da África, por volta de três milhões de anos, como animal de postura ereta e fabricante de utensílios. E irá ocupando a África, migrar para o Oriente Médio, a Ásia Menor, a Europa, lutará com a última glaciação, Würn, há 150 mil anos, e se espalhará por toda Terra.
Mircea Eliade, cientista das religiões, mitólogo e romancista romeno, escreve em sua famosa obra “Histoire des Croyances et des Idées Religieuses” (1976): “mesmo antes da linguagem articulada, a voz humana era não só capaz de transmitir informações, ordens ou desejos, mas de criar todo um universo imaginário por suas explosões sonoras e inovações fônicas” e transfere do mundo sonoro para o pictórico para “visualização das sílabas místicas”.
Há verdadeiramente que se fazer um grande esforço para descobrir algo além da luta pela vida, contra a natureza, a fauna que também se renova e evolui, as condições nem sempre fáceis de prover alimento e abrigo, esta “sílaba mística”.
Existe, ainda, outra questão levantada pelos arqueólogos e antropólogos. O homem ereto, que produziu ferramenta, não surgiu de uma linha evolutiva que se aprimorou constantemente. Muitos seres animais e vegetais, terrestres e marinhos, no correr de milhões de ano, surgiram e desapareceram, em imensa maioria sem deixar vestígios maiores do que a formação do petróleo. Deus inundaria a Terra de seres apenas para que tivéssemos petróleo, e somente a pouco menos de dois séculos?
Examinemos, um pouco mais a história dos homens e da sua dispersão pelo planeta. Os modos de vida fornecem o fundamento de qualquer interpretação que se faça da história.
Tomem-se os “han”; a etnia mais numerosa e dispersa na República Popular da China (China). A geografia favorece e impõe limites ao desenvolvimento da vida. As possibilidades da evolução tecnológica, ampliando os espaços de ocupação humana, não estão em contradição com aquelas habilidades que conduziram as primeiras migrações pelo Planeta. Porém a primeira e mais premente necessidade humana é, sempre foi, a alimentação. As possibilidades de coleta, caça e pesca constituíram impulsos vitais para a ocupação dos continentes.
No entanto, quando se buscam as “sílabas místicas”, podemos cair na falácia do prêmio Nobel de literatura (1927), judeu francês, reverenciado pelo catolicismo, Henri Bergson, para quem o verdadeiro conhecimento não advém de conceitos abstratos, do intelecto, racionalmente, mas na apreensão imediata, da intuição, evidenciada pela experiência interior.
De sua obra de 1932, “As Duas Fontes da Moral e da Religião”, lê-se, logo no início: “A recordação do fruto proibido é o que há de mais antigo na memória de cada um de nós, como na da humanidade” (sic).
Jacques Gernet, eminente sinólogo francês, membro do Collège de France, escreve: “como noutras partes do mundo, na China foram as formas mais evoluídas da agricultura que permitiram os maiores crescimentos demográficos, a constituição de reservas importantes e a formação de Estados organizados” (“O Mundo Chinês”, tradução de José Manuel da Silveira Lopes para Edições Cosmos, Lisboa, 1974).
QUANDO E COMO SURGEM AS RELIGIÕES?
Tendo surgido na África, é bastante natural que a primeira civilização humana, no sentido de corpo de dirigentes e população, se tenha constituído nesse continente. Porém muitos séculos se passaram antes que houvesse a necessidade desta coexistência. Houve migrações mal sucedidas pelas glaciações, houve também ocupações prejudicadas por secas e inundações, até que a sequência de fontes de água, no sentido sul-norte, conduziu os humanos para o entorno do rio Nilo.
Se o prezado leitor observar o mapa físico da África, ficará evidente que o mais longo curso d’água, e único a cortar mais da metade do Continente, no sentido sul-norte, tem início no Lago Vitória e conclui no Mar Mediterrâneo. É o rio Nilo. Quase todos demais e maiores cursos d’água correm de leste para oeste ou vice-versa: o Orange, o Limpopo, o Cubango, o Zambeze, o Congo e o Níger.
Portanto, como enfatiza Jacques Gernet, mais uma vez a geografia conduz a humanidade. E o prosseguirá fazendo na relação dialética que o ser humano e seu redor, o meio ambiente, desenvolvem, formando culturas únicas, pois as naturezas são diversificadas e orientam a pesquisa dos homens.
Alberto Malet (1864-1915), professor de história francês, observa que os primeiros povos buscaram os rios que lhes asseguravam alimento e material para habitações: Eufrates, Tigre, Ganges, Yang-Tse e Huang-He, Mekong, Danúbio, Reno, Marañón-Amazonas, em todos continentes.
No caso específico do rio Nilo, Malet afirma que a inundação e sua regularidade provocavam a admiração dos egípcios, que desconheciam as fontes do rio, os lagos equatoriais Vitória e Albert, os fenômenos pluviais, mas aproveitavam para cultivar e defender os territórios ribeirinhos.
Os egípcios eram politeístas. Tinham muitos deuses, com formas diferentes, que acreditavam proteger locais, populações e fenômenos que eles não compreendiam. Uma das formações das divindades tem origem na ignorância. Isso não ocorrerá somente nas religiões politeístas, porém com religiões monoteístas.
É preciso separar o que constitui a crença em divindades do que significa respeito à ancestralidade ou seguir uma ética de vida. Na China de hoje, conforme levantamento de 2010, 52,2% se declaram “sem religião”. Vem do realismo lavrador, que conhece as manifestações da natureza, sabe ler o tempo de seca e de chuva, e não se deixa influenciar por pensamentos mágicos.
Em segundo, vêm 21,9% que cultuam seus ancestrais. Por terceiro, os budistas, 18,2%, que seguem o pensador nepalês Sidarta Gautama. Portanto, antes de se computar os 5,1% de católicos, 92,3% da população não acredita em deuses ou Deus.
Além da ignorância, o poder é outra fonte mística. Os faraós egípcios eram deuses, para quem se construíam moradas monumentais, pois viveriam em outra realidade e voltariam para Terra, este mundo.
Temos, assim, genericamente, as duas vertentes formadoras da religião: o desconhecimento, que leva a imputar a ser superior a produção, em todos sentidos, do que acontece fora da possibilidade humana, e a distância dos demais que o poder necessita para não ser incomodado, substituído.
Pode-se também concluir que, se o homem surgiu, no processo evolutivo das espécies, na África, as religiões tiveram igualmente origem africana.
DO POLITEÍSMO AO DEUS ÚNICO
Se, ao ocupar o mundo, os homens foram criando deuses, era previsível que, em algum instante do processo de formação de suas civilizações, também se unificassem não só pelas origens mas pelos deuses. O que teve Roma de notável nesta construção civilizatória foi a lei – a cidadania romana que extrapolava a raça e o local de nascimento.
Há cerca de 4.000 anos, um grupo semita, os hebreus, criaram um Deus só para eles. Havia uma razão. Examinemos o mundo há 2.000 anos antes da Era Cristã. A quase totalidade era ocupada por coletores-caçadores nômades e por incipientes agricultores.
Exceto pela província de Zhejiang, no extremo oriental da Ásia, voltada para o Mar da China, no Oceano Pacífico, apenas no curso do rio Nilo e no Oriente Médio, avançando pela atual Turquia, se desenvolviam reinos ou estados-cidades.
Eram os sumérios, com civilização comparável à egípcia, na Mesopotâmia, os fenícios, caracterizados por navegantes e comerciantes, e aqueles espremidos entre estes poderosos: os hebreus, povo semita.
Cristo surrando os vendilhões do templo