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quinta-feira, 26 dezembro, 2024

Crivella, o pimbinha, a freira e a fera

Já te contei, leitor (a), que meu irmão é artista plástico? Não? Então conto agora. O Tuta tinha nove anos, em 1958, quando participou do concurso infantil “Desenhe seu bairro” promovido pelo Colégio Aparecida, em Manaus. As melhores obras seriam expostas no salão do Clube do Luso e receberiam prêmios do então candidato a governador, Gilberto Mestrinho, que morava na rua Alexandre Amorim, quase ao lado da escola. Tuta foi desclassificado por escandalizar a diretora, irmã Anunciata, que chamou dona Elisa na sala da diretoria:

– Olhe só a obra do seu filho!

Mamãe olhou. Era uma “obra” mesmo, que refletia o talento do rebento. Lá figurava, pintada com lápis de cor, uma moça de pescoço alongado à la Modigliani, sentada num penico transparente, obrando, com o bundão exposto, observada pela imagem de um menino seminu. Tal qual a carta de Pero Vaz de Caminha, tudo muito natural. Os personagens foram logo identificados. Não havia dúvidas: a pescoçuda era nossa vizinha Vera, mais conhecida como “Fera”, espreitada por seu sobrinho, Heraldo Pimbinha, reconhecido pelo tamanho diminuto da dita cuja que deu origem ao apelido.

– Tuta, tu já me viste defecando para me fotografarassim – reclamou a Fera ferida, que confundia desenho com foto. Não entendeu que se tratava de uma forma de abordar cenas do cotidiano. Se fosse hoje, Tuta responderia:

– Ceci n´est pas une “pimbe” (une petite bite). Mas na época, meu prendado irmão apenas balbuciou candidamente:

– É somente um desenho.

E era. Inocente. Ele havia se inspirado no óleo sobre tela – A Primeira Missa no Brasil – de Victor Meirelles, com índios seminus, reproduzida no livro didático “Infância Brasileira” do Ariosto Espinheira. Mas a freira projetou ali pornografia, indecência, pecado. Vetou a obra por seu conteúdo impróprio.

– A arte não pode estimular a perversão” – disse irmã Anunciata, conhecida como “Roxinha”. Sugeriu que Tuta usasse seu inegável dom para retratar celebridades, por exemplo, o ilustre vizinho candidato a governador. Nesse caso, a freira pintou como eu pinto um futuro glorioso para meu mano, com galeria em Miami, vendendo sua arte para a Disney, a Pepsi, a General Motors. Um dia seria o Thutta ou o Tutta, qual Romero Britto que nem nascido era, mas já circulava por lá, carregando dois “t”.

Obra Aberta

Eis o que eu queria dizer: o Brasil inteiro cabe no tempo mítico do bairro de Aparecida, que já vivenciou tudo aquilo que acontece e ainda vai acontecer no planeta. Assim é que, sessenta anos depois, Marcelo Crivella (PRB, vixe vixe) mascarado de irmã Anunciata, reedita as palavras dela em entrevista na qual vetou a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, com 270 obras de 90 artistas, por considerar seu “conteúdo impróprio”. O prefeito, que reencarnou a freira, ainda debochou:

– Aqui no Rio a gente não quer essa exposição. Saiu no jornal que ia ser no MAR. Só se for no fundo do mar, porque no Museu de Arte do Rio nããão!  Zoofilia, pedofilia, ninguém quer saber disso”.

“A gente” que ele diz é sua corriola. “Ninguém” somos nós.  O bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, em censura prévia, determina o que “ninguém” pode ver, para dessa forma “banir o pecado” potencial da heroica cidade de São Sebastião que ele desgoverna. O pecado, porém, não reside nas 270 obras, se aceitamos o modelo teórico para entender a arte contemporânea criado por Umberto Eco em sua Obra Aberta.  Onde mora então o pecado?

Toda obra de arte, por definição, é aberta, permite diferentes interpretações – escreve Eco, que chama a atenção para a pluralidade de sentidos. Qualquer criação artística que implica linguagem – texto literário, música, obra pictórica, escultura – é um enunciado, cujos sentidos vão se “materializando” na leitura, isto é, nas múltiplas interpretações que lhe atribuem significados. O leitor é um coenunciador responsável por criar sentidos a partir delas, com seus próprios valores que, ao contrário da igreja de Crivella, não são “universais”. Portanto, não há leitura única que monopolize a significação.

Mente suja

Livros e autores foram queimados em períodos obscurantistas da História, na Santa Inquisição ou mais recentemente durante o nazi-fascismo. Quem detinha o poder fazia uma leitura única, doentia, que negava a possibilidade de múltiplas interpretações por considerá-las contrárias aos dogmas religiosos e políticos. Mas se Umberto Eco tem razão – e ele tem – considerar uma criação artística como pecaminosa revela muito mais sobre quem a interpreta do que sobre a obra em questão. O pecado, então, mora ao lado, está na mente pervertida de quem faz tal leitura.

Nesse caso, a obra aberta encontra a mente fechada. Como admitir que 90 artistas brasileiros, dos mais expressivos, defendem a pedofilia e a zoofilia, apenas porque discutem a diversidade sexual? Como o prefeito de uma metrópole toma decisão, em pleno século XXI, baseado em uma bobagem dessas? Crivella não é crítico de arte e sequer viu a exposição, que aliás só deve ser visitada pelos que pretendem massagear a inteligência e procuram a fruição e o gozo – epa! – estético. Não é o caso do prefeito.

Dezenas de diretores de museus e de gestores de centros culturais assinaram carta aberta contra a tentativa de “proibir as legítimas atividades artísticas que se desenvolvem no Brasil, construídas responsavelmente pelas instituições culturais”. Consideram falsas as delirantes “alegações de incitação à pedofilia e de apologia ao sexo”, já descartadas pelo promotor da Infância, de Porto Alegre, de onde a exposição foi escorraçada por covardia do banco Santander, o patrocinador.

O Conselho do Museu de Arte do Rio (CONMAR) também rejeitou a censura e se pronunciou favorável à realização da mostra e da liberdade de expressão. Mas quem decide, em última instância, é o bispo-prefeito de mente poluída.

– Cada um deve ter a liberdade de escolher se quer ou não ver as obras – declarou a atriz Fernanda Montenegro. Quem quer ver, veja. Quem não quer, não veja. O que não pode – completou o jurista Gutavo Binenbojm – é permitir que uma confissão religiosa colonize as decisões dos governantes, quando a Constituição garante a separação entre a igreja e o estado.

O cerco parece estar se fechando contra a liberdade de expressão. Zé Celso, que está remontando “O Rei da Vela”, garante que “jogada às traças, a população reflete, deseja, quer mandar tudo às picas. Mas uma esquerda presa ao passado não saberá articular a revolta”. Será?  De qualquer forma, o Rio está sendo tratado como o quintal de Crivella que se arvora em defensor da honra do Pimbinha e da Fera que não está sendo atacada. Devemos protestar enquanto ainda podemos. Até quando?

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