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quinta-feira, 28 março, 2024

Venezuela: Rupturas na narrativa

por Thierry Deronne

Em 2 de agosto pouco depois de uma forte mobilização cidadã que se manifestou pela eleição da Assembleia Constituinte, os venezuelanos puderam ver na Globovision (uma das televisões privadas maioritárias do país) Henry Ramos Allup, um dos mais beligerantes líderes da oposição declarar: “decidimos participar nas eleições regionais, na dos presidentes de câmara e nas presidenciais”. [1] Um sector importante da direita demarca-se assim publicamente das violências da extrema-direita de Leopoldo Lopez e admite publicamente a validade do Centro Nacional Eleitoral (CNE), que até à pouco denegria como instrumento chavista. Legitimar o retorno à via democrática preconizado pelo presidente Maduro? A “história contada” a toda a hora, destilada todos os dias, por todos os meios e que em consequência a quase totalidade dos cidadãos ocidentais acreditam, começa a rodar no vazio.

Quanto mais tempo passa, mais o mamute da concentração mundial dos media tem dificuldades em impedir a difusão de elementos que lhe escapam. A imagem de uma guerra civil ou de uma oposição democrática em luta contra um regime repressivo já não se mantém. Sabe-se que a maioria das vítimas foi causada pelas violências da extrema-direita [2] , que esta violência está confinada a alguns por cento do território – zonas ricas ou paramilitarizadas (municípios de direita e fronteira com a Colômbia) – que a grande maioria vive em paz e rejeita estas violências, incluindo eleitores de direita [3] . O “regime” (na realidade um governo eleito) prendeu e julgou rapidamente os membros das forças da ordem que fizeram uso de força de excessiva [4] .

É preciso destruir o perigoso exemplo de uma Assembleia Constituinte. Enquanto em 4 de agosto militantes chavistas, feministas, ecologistas, militantes da cultura popular ou contra a especulação imobiliária estreiam em Caracas os seus lugares de deputados constituintes [5] os grandes media fazem tudo para denegrir o sufrágio dos venezuelanos tornando credíveis as denúncias de “fraude” lançadas desde Londres pelo diretor da Smartmatic – uma sociedade comercial que forneceu máquinas ao Centro Nacional Eleitoral (CNE) mas que não tem acesso aos dados da votação [6] .

Os media não mencionam uma fonte bem mais séria. Após terem observado o escrutínio localmente, o Conselho dos Peritos Eleitorais da América Latina (CEELA) formado por juristas e ex-presidentes de tribunais eleitorais de vários países da América Latina concluiu que “o resultado das eleições na Venezuela é verídico e fiável”. O CEELA “utilizou o mesmo sistema que utilizou em todas as eleições, incluindo as de 2015 em que a oposição obteve a maioria dos lugares na Assembleia Nacional”. Este sistema eleitoral, qualificado pelo observador Jimmy Carter de “melhor do mundo” [7] permite a “a qualquer pessoa verificar que os votantes foram efetivamente os 8 089 320 anunciados pelo CNE” [8] .

Uma das consequências da velocidade emocional, da comunicação instantânea por satélite, da falta de contexto, etc que caracterizam qualquer campanha de propaganda chama-se a obrigação da média . Por um lado, milhares de órgãos de comunicação martelam-nos exatamente a mesma versão, por outro a Venezuela real permanece distante e de difícil acesso. A maioria dos cidadãos, intelectuais e ativistas é reduzida a fazer uma média forçosamente frágil entre a enorme quantidade de mentiras diárias e uma minoria com verdade. O que dá, no melhor dos casos é que “há uma luta entre blocos, há problemas de direitos humanos, há uma simetria na violência, uma guerra civil e condeno a violência venha do onde vier, etc…” E no pior, o prazer cobarde de repetir os títulos de 99% dos media sem nada saber da Venezuela, de gritar com a matilha para se sentirem poderosos, de apontar o dedo e ir caçar os “partidários do ditador”. Em França sobretudo, mas também em Espanha, a Venezuela é substituída por um ecrã em branco para sessões de ajustes de contas entre correntes políticas. O problema é que a quantidade de repetição, mesmo se cria uma qualidade de opinião não faz por si uma verdade. O número de títulos ou de imagens idênticas poderia ser mil vezes mais elevado que isso não significaria que nos falassem do real.

Como, portanto, voltar a conectar-se ao real? Quando o Movimento dos Sem Terra no Brasil, o conjunto dos movimentos sociais [9] , os principais partidos de esquerda da América Latina [10] ou as 28 organizações venezuelanas de direitos humanos [11] denunciam a violenta desestabilização da democracia venezuelana e apoiam a mobilização dos cidadãos para eleger uma Assembleia Constituinte, dispõe-se então de um vasto leque de conhecimentos mais profundos da realidade provenientes de organizações democráticas, que a uma “ciência-política” europeia “média” obrigada a preservar um mínimo de “respeitabilidade” nos media para proteger a sua carreira.

Para não deixar assassinar Salvador Allende de novo e não agredir os que rejeitam a febre da propaganda, que se descobrirá amanhã que tinham razão sobre a Venezuela, a sociedade ocidental necessita de uma democratização radical dos meios de comunicação social – o desenvolvimento do pluralismo de informação em França é obrigação legal do CSA [12] e paralelamente a criação e multiplicação de meios de comunicação fora da esfera privada quer sejam públicos quer associativos, criar novas escolas onde sejam restabelecidos como fatores centrais de um jornalismo ao serviço dos cidadãos: o tempo de investigação, a aquisição de cultura histórica, a possibilidade de viajar aos locais [13] e escutar um sector tão vivo como o dos movimentos sociais.

Caracas, 4 de agosto 2017

Fotos (Invisíveis nos nossos media): Assembleia Constituinte a instalar-se no Congresso em Caracas, 4 de agosto.

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Notas
1 – Ver entrevista completa na televisão privada Globovision: www.youtube.com/watch?v=9unGt_pSCnM . Na Venezuela a maioria dos media, como a economia em geral são privados e opõem-se às políticas sociais do governo. Ler Thomas Cluzel ou l’interdiction d’informer sur France Culture
2 – Para um gráfico e um quadro exato e completo das vítimas, dos sectores sociais, dos responsáveis e pessoas condenadas, vervenezuelanalysis.com/analysis/13081 ; Sobre os assassinatos racistas da direita: Sous les Tropiques, les apprentis de l’Etat Islamique , 27 juillet 2017; Le Venezuela est attaqué parce que pour lui aussi “la vie des Noirs compte” (Truth Out) 24 de julho de 2017
3 – Sobre as sondagens da firma privada Hinterlaces: Nouveaux sondages surprises au Venezuela (juillet 2017)
4 – Sobre prisões de membros das forças da ordem, ver Direitos Humanos na Venezuela, dois pesos e duas medidas. venezuelanalysis.com/analysis/13081 E um quadro completo da situação em venezuelanalysis.com/analysis/13081
5 – Sobre a mobilização popular para eleger a Constituinte: venezuelainfos.wordpress.com/… pode-se ler entre outros: Quels sont les enjeux du vote du 30 juillet pour l’Assemblée Nationale Constituante ? 28 juillet 2017, De qui ont peur les Etats-Unis et la droite mondiale? 28 juillet 2017, Génération “chaviste rebelle”: les visages et les voix des candidat(e)s député(e)s à la Constituante, par Angele Savino (L’Huma) 27 de julho de 2017
6 – Ver “O CNE rejeita as alegações de fraude” www.cne.gob.ve/web/sala_prensa/noticia_detallada.php?id=3554
7 – Former US President Carter : Venezuelan Electoral System “Best in the World” “,
venezuelanalysis.com/news/7272
8 – Informações dadas em conferência de imprensa da CEELA e retomadas por El Universal (jornal da oposição) www.eluniversal.com/…
9 – Reunião de movimentos sociais do Brasil com lista de assinaturas: baraodeitarare.org.br/…
10 – Les partis de gauche et les mouvements sociaux d’Amérique Latine appuient un peuple qui écrit sa constitution à la barbe de l’Empire. 21 de julho de 2017
11 – 28 organisations des droits humains demandent le respect du droit au suffrage pour l’Assemblée Constituante 29 de julho de 2017
12 – Com efeito, segundo a lei, uma das obrigações do Conseil Supérieur de l’Audiovisuel (CSA), as obrigações da lei francesa n° 86-1067 de 30 setembro 1986, modificada e completada relativa à liberdade de comunicação (e que se gostaria de ver aplicada) diz: Artigo 29: o CSA vela para que uma parte suficiente dos recursos em frequência seja atribuída aos serviços editados por uma associação e realizando uma missão de comunicação social de proximidade, entendida como para favorecer as trocas entre grupos sociais e culturais de expressão das diferentes correntes socioculturais, a manutenção do desenvolvimento da proteção do ambiente ou a luta contra a exclusão.
13 – A entrada em força dos grandes acionistas privados no campo mediático levou a cortes nos orçamentos e por consequência à supressão de correspondentes estrangeiros e ao aumento da dependência de agências como a AFP, Reuters ou EFE. Ora estas recentemente procederam ao blanchi le terrorisme d’extrême droite en le relookant comme un “combat pour la liberté” (Reuters) ou fizeram passar les photos d’électeurs chavistes pour des électeurs de droite (EFE) . 

O original encontra-se em www.legrandsoir.info/venezuela-ruptures-du-storytelling.html .

Tradução de DVC.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

13/Ago/17


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