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quarta-feira, 9 outubro, 2024

Venezuela e Angola, história de duas eleições

Decorreram no último mês e meio dois atos eleitorais sem dúvida importantes, embora entre si com características muito distintas: as eleições para a Assembleia Constituinte na Venezuela e as eleições legislativas em Angola. Ambas produziram resultados positivos, mas os problemas defrontados, embora quanto a alguns aspetos fundamentalmente os mesmos, assumiram também traços muito diversos, por vezes mesmo diametralmente opostos.

Entendamo-nos. Na Venezuela está-se perante um poder oficialmente apostado na transição para o socialismo. O regime tem sido e continua a ser pluripartidário, com uma componente presidencial veiculando muito mais facilmente as pretensões dos grupos desfavorecidos (relativamente aos quais o presidente anterior, Hugo Chávez, ganhou uma verdadeira aura de dirigente “carismático”), ao passo que na componente parlamentar os opositores de direita têm fundamentalmente sido capazes de manter a ascensão:   o “chavismo” ou “bolivarismo”, goste-se ou não desse fato, sempre tem sido mais fraco em popularidade do que Chávez. O ambiente cultural venezuelano é sumamente condicionado pelo predomínio do universo mental “pós-gutenberguiano”, ou mais exatamente audiovisual/televisivo:   a Venezuela, quanto a isso é um caso quase arquetípico de país católico e latino-americano, é tradicionalmente uma sociedade de novelas televisivas, concursos de “misses” alternados com missas… e futebol; sempre muito futebol. É também um típico país de “hemisfério ocidental”, com os cidadãos normais usualmente armados e havendo muito, muito crime; aliás, muito dele violento. A Venezuela é outrossim um país produtor e exportador de petróleo, com as vantagens, mas também os problemas associados, nomeadamente a chamada ” doença holandesa “, ou seja, propensão para a carestia dos bens (inclusive os bens essenciais) no conjunto da economia, por “contágio” da capacidade aquisitiva excecionalmente elevada que o sector petrolífero possui. Obviamente, isto gera grandes assimetrias e tendências para enormes desigualdades sociais, que só um poder político vigilante, esclarecido e com intuitos igualitários pode corrigir.

Alguma coisa tem sido feito na Venezuela, desde que o “bolivarismo” está no poder, para repartir pelos pobres os benefícios do petróleo. Bem mais haverá ainda a fazer nesse sentido, decerto. Mas muito mais ainda há a fazer numa outra vertente:   no sentido de “desagarrar” a economia e a sociedade venezuelanas do enorme “vício” que é a dependência do petróleo. Dito isto, porém, reconheça-se igualmente:   identificar os males é sem dúvida bom e é sempre importante; mas superá-los é, por vezes, muitíssimo mais difícil.

Igualmente “agarradas” ao petróleo estão a economia e a sociedade angolanas, padecendo também em elevado grau de “doença holandesa” e sofrendo de enormes desigualdades, aliás mesmo de pobreza generalizada. A orientação doutrinária do governo angolano não é a mesma da Venezuela: Angola mudou dum regime monopartidário oficialmente socialista para um regime pluripartidário, o partido dominante continuando todavia o mesmo (o MPLA), a bússola doutrinal deste passando entretanto a ser a social-democracia e a “economia de mercado” ficando mesmo consagrada no texto constitucional angolano. Estas diferenças doutrinárias oficiais podem não dizer tudo, mas não são completamente irrelevantes. A título de exemplo, em Angola faria todo o sentido pensar na constituição dum “cabaz de compras” de produtos essenciais, garantindo administrativamente, duma forma ou outra, que os bens fundamentais chegariam ao conjunto da população, mesmo os mais desfavorecidos, a preços aceitáveis. Já na Venezuela, onde tais intervenções na esfera comercial têm ocorrido, depara-se todavia com uma atitude de boicote politicamente motivado por parte de setores importantes do negócio da distribuição (algo de análogo ao já ocorrido, por exemplo, no Chile de Allende), pelo que a recomendação óbvia a fazer consiste, neste outro caso, na necessidade de o estado interceder diretamente, através de empresas públicas, no sector do comércio:   por grosso e mesmo a retalho. De outra forma, quaisquer boas intenções de tabelamento de preços tendem a naufragar na generalização das práticas do açambarcamento e do chamado “mercado negro”:   seja por motivos estritamente económicos-utilitários, seja a fortiori com intuitos de sabotagem política.

Em todo o caso, para uma erradicação da pobreza e uma atenuação das desigualdades em ambos estes países deveremos ir muito mais longe e mais fundo do que a simples esfera comercial: só o arranque sustentado de setores produtivos não-petrolíferos poderá manter estes países em trajetórias de progresso socioeconómico, com melhoria consistente dos indicadores de desenvolvimento humano:   cobertura médico-sanitária, índices de educação, esperança média de vida, etc. Mas é melhor reconhecer igualmente que, em todo o caso, pouco importam decerto estas recomendações dum “treinador de bancada” como eu:   mais um, no meio de milhares e milhares destes que, por esse mundo fora, tentam compensar as suas frustrações de intervenção política no país de origem através dum protagonismo mais ilusório do que real (e não raro disparatado) na vida política de outros países. O que a generalidade dos comentadores portugueses (e doutras sociedades ocidentais) tem dito e escrito acerca da Venezuela e de Angola parece-me, de resto, revelar traços muito interessantes sobretudo acerca desses comentadores e das respetivas sociedades: não tanto a respeito da angolana e/ou da venezuelana.

Da diversidade de trajetórias

As trajetórias económicas e políticas de Angola e da Venezuela são pois, assentemos bem nisso, muito diversas. Diversas foram também as eleições que em ambos os países ocorreram recentemente. Na Venezuela, depois dum período quase-insurrecional sistemático por parte de vários setores da oposição (sempre descaradamente apoiados por Washington e pelos media predominantemente privados do país), a qual tinha já conseguido ganhar as eleições legislativas, tinha-se caído numa situação de impasse político e social em que se tornava completamente impossível governar. O ambiente sedicioso de “revolução colorida”, a violência descarada e desbragada contra os representantes do “bolivarismo” (até ao puro e simples homicídio), os apelos diretos e explícitos à desobediência civil, à violência e mesmo à intervenção dos EUA e doutros países-satélite, como a vizinha Colômbia, tinham feito da oposição oficial venezuelana um bloco político com o qual era, e é, infelizmente impossível negociar compromissos. A solução de saída para o impasse consistiu assim no apelo ao mais fundamental e inalienável dos poderes políticos, o poder constituinte, capacidade imprescritível de todo o organismo político soberano.

Das características dessas eleições não direi nem que são boas nem que são más. Parecem-me, muito sinceramente, as possíveis e necessárias. A Venezuela continua a ter um regime multipartidário, mas as candidaturas e as eleições foram agora pessoais. Os candidatos eleitos apresentaram-se a título essencialmente individual, representando a nação venezuelana sem intermediação partidária. As candidaturas reportaram-se maioritariamente a círculos regionais, por local de recenseamento, mas houve também candidatos eleitos por grupos socioprofissionais, alegadamente tentando promover uma forma de “discriminação positiva” de grupos habitualmente sub-representados:   claro que na Venezuela, como cá, a maior parte dos deputados é usualmente composta por “doutores e engenheiros”, entre diversas outras eminências… Participaram 8 milhões e picos de eleitores, a oposição tendo recusado o ato eleitoral e convocado, em vez disso, um referendo onde (sem qualquer controle por parte de entidades terceiras) declarou terem participado 7 milhões e tantos eleitores. Assumindo como válidos os dados de uns e outros, ficamos com 40 e poucos versus 30 e muitos por cento dos eleitores, com perto de 20 por cento de abstenções, por conseguinte. Fazendo a projeção para 100 por cento dos votos válidos, temos que o “bolivarismo” recolherá o apoio de cerca de 53 por cento dos eleitores, contra 47 por cento da oposição. A população está bastante mobilizada (Portugal só teve 20 por cento de abstenções mesmo nos primeiros anos de democracia), mas o nível de conflitualidade é, claro, excessivo. Constitui obviamente uma situação anómala o governo e a oposição participarem não no mesmo ato eleitoral, mas em eleições diferentes, que cada um organiza por si. Mas devemos também, quanto a este boicote da oposição às eleições para a Constituinte, relembrar acima de tudo o famoso comentário de Willy Brandt a propósito de análoga recusa por parte da oposição aos Sandinistas, aquando das eleições de 1984 na Nicarágua:   em qualquer democracia, a oposição só concorre se quiser…

Ao “bolivarismo” recomendaria eu, portanto, uma mistura de paciência e de firmeza. Paciência para aturar alguns excessos e verduras da oposição:   pesporrente, rabugenta e pateticamente estragada com mimos, pelo excesso de apoios recebidos por parte dos EUA e restante “”Ocidente”. Mas firmeza para fazer compreender a toda a gente que ninguém está acima da lei; e que as eleições venezuelanas são mesmo para ser ganhas na Venezuela:   não na CNN ou na Fox News, não em Washington ou em Bruxelas. Exercício de oposição legítima, que procura a popularidade contrapondo às atuações governamentais várias propostas alternativas, que se revelam melhores: claro que sim. “Revolução colorida”, “praça Maidan” e companhia, entendamo-nos:   claro que não. E à violência ilegítima deverá a república, tarde ou cedo, responder com a sua própria violência legítima:   ” virtù contra furore…”

Oposição rabugenta, excessivamente mimada e tornando-se depois violenta, por não ser capaz de reconhecer a sua própria derrota: eis algo que Angola experimentou em força logo aquando das eleições de 1992, as quais produziram uma vitória do MPLA que a UNITA nunca quis admitir. As consequências foram demasiado sérias, e demasiado atrozes, para se pretender voltar demoradamente a elas. O período de guerra civil e estado de exceção subsequente arrastou-se até 2008, quando a normalidade institucional regressou enfim, com novas eleições legislativas de novo ganhas pelo MPLA; e analogamente em 2012 e também agora, em 2017. O MPLA tem ganho todas as eleições, a República de Angola adotando entretanto o “modelo de Westminster” (muito provavelmente importado via África do Sul) na designação do presidente da república, o qual é por inerência o dirigente do partido mais votado, da mesma forma que no Reino Unido é indicado o primeiro-ministro. Angola permanece com problemas estruturais, em boa medida causados pela guerra e mantidos, como já dito, pela dependência excessiva do petróleo. Trata-se dum país em que, por exemplo, para combater a miséria resultante em larga escala da urbanização (caótica, excessiva, demasiado rápida e tipicamente “terceiro-mundista”), faz sentido pensar num momentâneo regresso parcial de população aos campos e em medidas de “substituição de importações”, procurando garantir a autossuficiência alimentar, as quais tenderão a permitir (quer pelo “lado da oferta” quer pelo “lado da procura”) uma significativa redução das desigualdades e uma elevação consistente e sustentada dos indicadores socioeconómicos.

Bom, mas deixemo-lo. É melhor não incorrer eu próprio no erro que já acima denunciei, de me entusiasmar demasiado a pretender resolver os problemas de outros países… Em todo o caso, quer em Angola quer na Venezuela, duma coisa podemos estar certos:   é da presença massiva de imigrantes e de empresas chinesas (sobretudo empresas estatais, mas não só), apostados nestes países, como aliás no mundo em geral, em interações económicas mutuamente vantajosas (” win-win “, como se diz) através das quais a República Popular da China continuará a desempenhar o papel de quase silencioso (mas portentoso) promotor da paz e da prosperidade a nível global. Pensemos, a título de exemplo, no que já tem sido feito, mas ainda falta fazer, em matéria de construção de infraestruturas materiais (vias de comunicação e outras) num país ainda em grande medida destruído, como Angola.

E os demais países? Bem, os EUA continuarão presumivelmente hostis no caso da Venezuela, sobretudo “atentistas” no caso de Angola. Por enquanto, os negócios vão andando e a vida vai decorrendo. Mas, se quisermos recordar, também na Líbia os negócios iam andando; e todavia… Se as coisas ameaçarem a qualquer momento correr mal aos EUA, se existir perceção de perda de controlo militar ou político para a China ou a Rússia, se um qualquer lobby pró-guerra for mais ativo e mais persuasivo da opinião pública no Ocidente, nenhum país está livre de ser repentinamente atacado e destruído, por guerra aberta, por conflitos étnicos induzidos, secessões à la carte , “revoluções coloridas”, etc. É pensar na lista:   Somália, Jugoslávia/Sérvia, Iémen, Iraque, Líbia, Ucrânia, Síria… É, portanto, crucial evitar as pulsões para uma possível state destruction, simultaneamente promovendo a prosperidade e a equidade distributiva; e canalizando as tensões políticas para um ambiente onde o protesto e a dissensão possam ser exercidos sem ameaçar fazer ruir a ordem pública.

Do missionarismo “humanitarista” do BE

Na Venezuela a tensão permanecerá portanto, muito provavelmente, a níveis elevados. Em Angola pode bem acontecer o contrário, com os vários intervenientes acomodando-se reciprocamente e optando pelo business as usual . Mesmo isso está, todavia, muito longe de ser um resultado garantido. Para além dos problemas já mencionados da diversificação relativamente à monocultura petrolífera de exportação, da substituição de importações, do combate à pobreza e às desigualdades excessivas, da obtenção da autossuficiência alimentar, Angola tem sempre presente um problema de tensões étnicas, por enquanto contidas, mas podendo emergir e ser aproveitadas com propósitos nefastos. Se relembrarmos, na Líbia a queda de Khadaffi começou assim mesmo, com as tendências centrífugas por parte da Cirenaica relativamente à Tripolitânia, prolongando-se depois nas perseguições à população imigrante provinda da África subsaariana… Pelo meio da diversidade angolana de etnias, a preservação da língua portuguesa enquanto língua oficial, bem como da doutrina “Netista” da indivisibilidade territorial da nação angolana “de Cabinda ao Cunene”, deveria ser algo a meditar seriamente, confrontando essa conduta oficial da República de Angola com o que é a atitude típica do meio português, ridiculamente incapaz de ultrapassar os seus patéticos complexos de “retornado” ressabiado, reclamando sempre ser mais genuinamente angolano e melhor conhecedor de Angola do que os angolanos “de lá”, devendo pois ser ele a decidir quem deve governar em Angola:   o MPLA, a UNITA ou outro qualquer; não os pobres angolanos “de lá”, evidentemente incapazes de conhecer de forma adequada os seus verdadeiros interesses bem-entendidos…

Quem leia a imprensa e/ou veja a televisão portuguesa fica, de facto, rapidamente surpreendido acima de tudo por essa discrepância. Os “chavistas” venezuelanos são obviamente uns energúmenos, uns canalhas, uns facínoras totalitários, etc. A ladainha do costume; nada de espantar até aí. Em matéria de Venezuela, a opinião portuguesa alinha pelo conjunto da opinião ocidental; ou melhor:   é ela própria a perfeita “voz do dono”. Mas no caso de Angola (em que os EUA permanecem apenas expectantes e certamente já deram isso a perceber à “União Europeia”, pelo que a Federica Mogherini optou por bater a bolinha baixo e manter o low profile ), os meios portugueses notabilizam-se de imediato pela sua postura “ultra”:   à direita, ao centro e à esquerda. Aliás, sobretudo “à esquerda”, pelo menos no que respeita ao BE. A arrogância de pretenso “observador imparcial” (e precetor moral) universal do Bloco tende, por outro lado, a contagiar a “esquerda europeia” no seu conjunto, pelo que mais facilmente se encontra de facto hostilidade face a Angola na dita “esquerda europeia” do que à direita ou ao centro, onde os princípios de realismo político tendem obviamente a prevalecer. Pelo contrário, à “esquerda” o completo apagamento da memória anticolonial, acrescido do predomínio descontrolado de ideias de intervencionismo e “vigilantismo” humanitaristas (ou alegando proceder com base no tema dos direitos humanos) tendem a constituir este grupo num equivalente funcional perfeito daquilo que foram os missionários evangélicos na propagação da ideia de “missão civilizadora” do Ocidente, aquando da expansão colonial/imperial da segunda metade de Oitocentos.

Outro tema forte é, quanto a isso, o da corrupção, assunto a respeito do qual o “vigilantismo” do Bloco e afins contam com o apoio irrestrito dos media e com a prevalência do “diz-que-disse” e do “toda-a-gente-sabe” lusitanos. Por exemplo, em Portugal “toda a gente sabe”, hoje em dia, que José Eduardo dos Santos é corrupto; e que corrupto é também, evidentemente, o “regime de José Eduardo dos Santos”. Esquecemo-nos é de acrescentar, muito convenientemente, que isso é uma afirmação muitíssimo imprecisa, onde na verdade pode caber tudo e mais alguma coisa; e, por isso mesmo, não cabe nada. Lembram-se dos casos de Milosevic, Khadaffi, Saddam e afins? Eram todos corruptos, não eram? E também eram violentos, claro; e até genocidas; e possuíam “armas de destruição massiva”; e eram amigos da “Al Qaeda” e promoviam o terrorismo; e… Será necessário acrescentar que, nestas matérias, os media ocidentais e a respetiva indústria de opinion-making constituem não uma parte da solução, mas pelo contrário uma parte (aliás importantíssima) dos problemas? Que Milosevic acabou por ser inocentado, mas e daí? Que deu muito jeito acusar e mandar prender o dirigente sérvio precisamente quando a NATO bombardeava Belgrado, como forma de legitimar esta operação? Que nunca se provou nada quanto à sua suposta violência, ou corrupção, mas e daí? Também não aconteceu nada, lá por causa desse pequeno “detalhe”, à inquisidora Carla Del Ponte ou ao “tribunal” superlativamente prostibulário que mandou prender Milosevic. Que também Khadaffi e família possuíam, “como toda a gente sabia”, mundos e fundos… mas afinal, quando se foi mesmo ver, não tinham nada…

De nada disso sobrevive, porém, qualquer memória nos nossos media (por onde tanto pululam os articulistas do Bloco), que continuam eles próprios umas virgens incorruptas e uns “mocinhos” (como dizem os brasileiros), sempre em luta contra um qualquer vilão do momento. E ninguém, podemos disso estar absolutamente certos, pedirá alguma vez contas a quem quer que seja, em Portugal, pelo labéu de corrupção levantado quanto a José Eduardo dos Santos, e a Angola em geral, ou ao “regime de José Eduardo dos Santos”. Ou mesmo, em boa verdade, quanto a Lula e Dilma, de quem também se garantia a pés juntos, em determinada altura, que eram corruptos e que “toda a gente sabia” isso mesmo…

Da impertinência sociológica da categoria de “corrupção”

Deste assunto da “corrupção”, da sua enorme variabilidade institucional, da tremenda imprecisão semântica que o rodeia, tratar-se-á talvez mais tarde, que este artigo já vai muito longo. Mas permitam-me, ainda assim, referir uns quantos aspetos particularmente dignos de reflexão. “Corrupção” é, claro, algo que depende imenso do contexto. Nos EUA a prática do chamado lobbying é legal e está perfeitamente consagrada; em Portugal, entretanto, ela configura crime de corrupção. Nos EUA não existe financiamento público dos partidos políticos, mas por outro lado não existe praticamente qualquer limite ao seu financiamento privado, enquanto em Portugal é ao contrário:   financiamentos privados de partidos são considerados assunto suspeito, a tratar com pinças e muito desinfetante, mas o erário público, por outro lado, financia os partidos. Qual regime político é mais “corrupto”:   o português ou o norte-americano? Pelo que me toca (e não por mero patrioteirismo, creio) prefiro o modelo português… mas reconheço que, do ponto de vista dos “nativos” de qualquer dos países, os usos e costumes do outro são facilmente suscetíveis de serem considerado como “corruptos”. Não será muito melhor, neste caso, abandonar a categoria de “corrupção” nas análises da nossa politologia comparativista, reconhecendo por outro lado a centralidade, isso sim, das categorias de “viés doutrinário”, “ideologia” e outras?

No Brasil, nos tempos de Lula e de Dilma, o presidente era duma orientação partidária, mas a maioria do legislativo era doutra cor. Consequência:   o chamado “presidencialismo de coligação” (ou “de coalizão”, como lá se diz). Não existindo “uma maioria, um governo e um presidente”, o executivo, que era e é constitucionalmente o governo do presidente, tem de negociar, regatear e trocar favores, visando obter maiorias de “geometria variável” no legislativo, que lhe permitam continuar a operar. É isso legítimo ou é “corrupto”? De acordo com muita da filosofia constitucional liberal, sublinhemo-lo aqui, é perfeitamente legítimo:   é, aliás, uma forma por excelência de travão ao possível abuso de poderes; ao poder absoluto (que, como também se sabe, “corrompe absolutamente”, lembram-se?) Mas é inegável que fatores diversos, de índole pessoal e sempre difíceis de julgar não se aferindo caso a caso, permitem e propiciam o resvalar do “presidencialismo de coligação” para o chamado “presidencialismo de corrupção”. Está-se já a começar a ver o oceano de problemas que tudo isto suscita?

Ah, mas não importa. O que importa é pôr o pessoal na rua, a gritar “Fora Dilma!”, assumindo-a como corrupta e corruptora em sumo grau, até prova em contrário. Tudo isto dando no fim, como se sabe, em impeachment. Mas o impeachment, diz a Constituição brasileira, obriga a constituir Dilma como acusada dum determinado crime; e crime muito grave mesmo, porque sem ele fica impossibilitado o impeachment , precisamente em nome da tal separação (e equilíbrio, ou contrapeso recíproco) de poderes que supostamente se pretende salvaguardar. Mas houve tal acusação? Não houve. Mas então, temos de concluir, não foi impeachment legítimo; então foi golpe, não é assim? Bom, mais uma vez: j  á não importa. O que importa é que o golpe resultou, por meio das tais acusações de corrupção feitas à presidente e muito para além delas. Aproximadamente o mesmo, acrescente-se, com Fernando Lugo, no Paraguai; e com Manuel Zelaya, nas Honduras. Fernando quê? Manuel quê? Já se vê que sequência tiveram todas estas histórias, e que importância lhe deram os nossos media. Pois é:   são assim mesmo, os nossos media. Serão eles… o quê exatamente? Corruptos?

Mudemos agora de ambiente:   das “altas esferas” da vida política, para o funcionamento corriqueiro da “máquina do Estado”. Funcionalismo público inoperante e ” state failure ” são, em países pobres, ameaça quase sempre presente e muito próxima. Algures num país da África Subsaariana, um agente da polícia manda parar o automóvel, implicando depois com tudo e mais alguma coisa… até ao momento decisivo em que opta por pedir diretamente a “propina”, ou seja, a “ajuda” monetária que constitui, em certas circunstâncias, mesmo a única coisa que permite continuar a circular na via pública. Noutro contexto, há um visto de saída do país que deveria obter-se em duas semanas, mas afinal só se obtém em dois meses… exceto, é claro, se nos dirigirmos ao guichet do andar acima, o qual opera em regime de “parceria público-privada” e permite, contra pagamento adicional, obter o referido visto em dis dias, ou mesmo em duas horas… São corruptos estes agentes de polícia e estes funcionários? Bom, se eu e o leitor tivéssemos os ordenados desvalorizados pela inflação, como eles em determinado momento tiveram, que acabaríamos nós por fazer, mais tarde ou mais cedo? É melhor nem ter de pensar nisso, não é? A “corrupção” é portanto, nestes casos, mais do que assunto para preleções morais, sintoma claro de state failure iminente. Quando o Estado não provê os bens públicos que devia prover, eles acabam por surgir, por via de “parcerias público-privadas” de vária ordem, e com múltiplas e diversas consagrações institucionais.

Mas regressemos agora dos níveis inferiores da “máquina do Estado” num país da África Subsariana para as “altas esferas” da vida política dum país europeu e ocidental:   Portugal, por exemplo. As designações “Brisa”, “Autoestradas do Atlântico”, “Mello Saúde”, “Lusoponte” (entre tantas outras possíveis) dir-nos-ão algo? E se sim, o quê? Corrupção? Falência do Estado? Viés percetivo doutrinário? Ideologia? Como se vê, assunto para amplos debates. Não seria melhor discutir tudo isso, e a propósito de nós, portugueses, em vez de passar o tempo a pretender (do ponto de vista do presumido “espectador imparcial” universal) pregar moral aos angolanos? E já nem quero alongar-me mais, porque o artigo já está mesmo enorme, a discutir o estatuto de inimputabilidade reconhecido pela República de Angola, em perpetuidade, a José Eduardo dos Santos. Valerá a pena, quanto a isso, pensar no que aconteceu a Milosevic? Ou contrapor a essas medidas tudo o que, implícita ou explicitamente, fica por exemplo configurado em Portugal pela própria existência duma “Fundação Mário Soares”?

São mesmo tão estranhos, bárbaros e corruptos os usos e costumes dos “nativos”, não são?

01/Setembro/2017

[*] Economista e sociólogo, professor do ISEG e investigador do SOCIUS, Universidade de Lisboa

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

04/Set/17

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