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terça-feira, 8 outubro, 2024

UMA NOVA ORDEM MUNDIAL CONFRONTA O OCIDENTE

– O fracasso na Ucrânia poderia significar a desintegração da UE e da OTAN

Alastair Crooke [*]

Por vezes as mudanças revolucionárias insinuam-se furtivamente nas nossas vidas. Só tomamos consciência da grande bifurcação quando a observamos no espelho retrovisor. Isto é particularmente verdadeiro quando aqueles que foram os primeiros a puxar o gatilho não têm consciência plena – para si mesmos – daquilo que fizeram.

Rolo de papel higiênico com um dólar dos eua impresso • adesivos para a parede tangível, moeda estrangeira, deteriorado | myloview.com.br

O que é que foi efetuado? Num momento de preconceito visceral, alguns membros da “equipe Biden” decidiram alavancar o Croce seu plano para levar o valor do rublo ao colapso. Eles, portanto, recorreram ao truque de capturar as reservas de dólares, euros e Títulos do Tesouro pertencentes ao Banco Central da Rússia.

Eles estavam de tal modo seguros de que este plano arruinaria completamente os esforços da Rússia para salvar um rublo em queda que nem mesmo se deram ao trabalho de consultar o Federal Reserve ou o BCE. Estes depois desaprovaram publicamente a ação empreendida.

O que se seguiu foi o lançamento inadvertido do sistema financeiro ocidental na sua queda progressiva. Os falcões russófobos de Washington desencadearam estupidamente um conflito com o único país – a Rússia – que possui as commodities necessárias para dirigir o mundo e para disparar a mudança para um sistema monetário diferente.

Será que este acontecimento monetário também modificará a dinâmica geopolítica? Certamente – já é o caso.

Ao capturar as suas reservas, Washington de facto estava a dizer a Moscovo:   os dólares estão proibidos para vós; não podem comprar absolutamente nada com dólares. Se este é o caso, para que deter dólares? O fim da manobra americana e europeia era inevitável:  a Rússia venderia o seu gás por rublos.

Mas é aqui foi introduzido um viés maquiavélico:   ao jogar em ambos os lados da equação, ou seja, ao ligar o rublo ao ouro e depois ao ligar os pagamentos energéticos ao rublo, o Banco da Rússia está fundamentalmente a alterar todo o conjunto das hipóteses de trabalho do sistema comercial mundial (ou seja, substituiu os dólares fiduciários nominais por uma moeda sólida apoiada em commodities).

Mas atenção, o Banco Central da Rússia fez duas coisas de importância geoestratégia:   ele ao mesmo tempo acrescentou um “piso” de preços e (menos notado) suprimiu um outro. O BCR acrescentou um piso ao preço do ouro – prometendo comprar ouro a uma taxa fixa.

Entretanto, ao insistir no pagamento na sua divisa nacional, a Rússia começou a suprimir o piso que os Estados Unidos impuseram em 1971 ao preço do dólar, através do qual o mundo tem de vender as suas divisas nacionais (o que as enfraquece) para comprar dólares (a fim de pagar energia). Em suma, embora o porta-voz russo, Dmitri Peskov, tenha dito que a Rússia atuaria com prudência, esta decisão rompe a sobrevalorização estrutural concedida ao dólar.

Os produtores de energia do Médio Oriente veem claramente aonde isto conduz: a Rússia, ao ligar o rublo ao ouro e o pagamento da energia em rublos, lança um processo que visa ligar o preço do petróleo ao preço do ouro. É a revolução tranquila. O ouro torna-se provisoriamente a moeda de reserva neutra, na expectativa do desenvolvimento de uma moeda mais ampla.

Isto é, portanto, o terceiro “arrebatamento”: começa o afastamento dos intercâmbios de matérias-primas dirigidos pelo papel americano, que o ocidente manipula para manter os preços das mesmas e do ouro sob controle. Isto potencialmente dá um horizonte inteiramente novo à OPEP+, por exemplo.

Eis o essencial: se os títulos do Tesouro e os dólares detidos pelo Fed de Nova York forem ignorados, o que é que se tornará a reserva de valor natural? As matérias-primas, certamente. Por que é que isto é tão revolucionário? Porque numa era de perturbação dos abastecimentos, de perturbação alimentar e de guerra, o ocidente não terá mais acesso às matérias-primas baratas.

Talvez os membros da equipe Biden devessem ter tido o cuidado de consultar o Federal Reserve pois, numa espécie de ironia, eles não só assustaram os outros detentores estrangeiros de títulos do Tesouro americano e de dólares de reserva quando apreenderam as reservas russas, como fizeram isso exatamente no momento em que a inflação interna americana está em vias de subir em flecha e em que as obrigações estão de qualquer modo comprometidas.

Após quarenta anos de existência, os títulos do Tesouro americano hoje são considerados como “riscos sem rendimento” (riscos devido ao temor de que a inflação torne as taxas obrigacionistas ainda mais negativas em termos reais. Mas os rendimentos dos títulos a dois anos explodem em alta. Mas se o Fed quer combater seriamente a inflação, as taxas de juro devem subir muito mais alto).

Como era de esperar, a corrida para as matérias-primas (por todas estas razões: ameaça de guerra, perturbação do abastecimento, sanções contra a Rússia) inflamou os preços das mesmas. Os preços elevados das matérias-primas tiveram um impacto sobre todos os outros preços e reflexos por toda a parte – mas em nenhum lugar tanto quanto nos Estados Unidos, onde uma pesada estrutura financiarizada repousa sobre uma minúscula base de garantias de matérias-primas. E onde a administração está encurralada entre Scila, o medo da inflação, e Caridbe, o crash bolsista em caso de subida das taxas de juro.

Poderá esta trajetória de crise económica e de declínio – pressagiada pela evolução da ordem monetária global, pela ameaça da hiperinflação, pelas penúrias alimentares, pelas prateleiras vazias, pela pobreza decorrente da inflação, pela alta dos preços do aquecimento e da gasolina – ser revertida por uma “vitória americana” no conflito ucraniano?

O que “Bucha” nos conta é que o ocidente está num frenético “tudo ou nada” para provar que pode vencer esta guerra. Um fracasso na Ucrânia poderia bem significar a desintegração da UE e da NATO. A colcha de retalhos da coesão no interior destas alianças não sobreviverá ao trauma da derrota. E “Bucha” diz-nos que o ocidente está pronto para ir para uma “vitória” numa guerra imaginária, mesmo a expensas da perda estratégica sobre o terreno ucraniano.

O desespero no ocidente também é revelado pela Europa a imitar o Ouroboros (o antigo símbolo de uma serpente a devorar a sua própria cauda e a comer-se viva). Ao deliberadamente abster-se das commodities mais baratas russas, Bruxelas está a cortejar uma espiral inflacionária fora de controle e relega a Europa a uma periferia económica pois a sua base manufatureira é tornada totalmente não competitiva devida aos altos custos da energia.

O presidente do Atlantic Council estado-unidense, um destacado “ideólogo da unipolaridade”, Frederick Kempe, escreveu na semana passada: “uma vitória ucraniana – com um ocidente forte e unido por trás dela – forçaria a repensar o compromisso e a competência dos EUA e mudar a trajetória de influência e relevância transatlântica em declínio… A questão não é o que seria a nova ordem mundial, mas ao invés se os EUA e os seus aliados podem, através da Ucrânia, reverter a erosão dos ganhos do século passado – como um primeiro passo rumo ao estabelecimento da primeira ordem mundial verdadeiramente ‘global’ “ [ênfase acrescentada].

A importância da Ucrânia está no fato de que o mundo [para além da Europa ocidental e dos EUA] observa atentamente. Para a maior parte, ele recusa-se explicitamente a juntar-se às condenações da Rússia. Um símbolo deste reajustamento político é a frieza da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos para com Biden. Ambos os países recusaram-se a uma visita de Biden e mesmo a responder a telefonemas seus, enquanto se recusam também a cessar de trabalhar estreitamente com a Rússia sobre preços e níveis de produção de petróleo.

De um modo ou de outro, as “placas” geopolíticas já estão deslocadas. Um líder regional resumiu isto de modo sucinto: No rastro da iniciativa da Rússia com o rublo, “Já não temos mais medo de sanções; vimos outros países sobreviverem”.

Ver também:

[*] Antigo diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum com sede em Beirute.

O original encontra-se em www.strategic-culture.org/news/2022/04/11/through-ukraine-can-west-use-war-to-stem-its-decline-and-shift-new-global-monetary-order/ e a versão em francês em www.les-crises.fr/guerre-en-ukraine-l-occident-confronte-a-un-nouvel-ordre-monetaire-mondial/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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