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sábado, 27 julho, 2024

Um “incumprimento” russo obrigado pelo Ocidente: quem ganha e quem perde?

– Então, quem vence? A resposta curta é provavelmente o novo sistema económico e financeiro Bretton Woods III liderado pela Rússia, incluindo a China e os BRICS.

Jorge Vilches [*]

A Rússia está atualmente “em vias de incumprimento” (defaulting) ou – no melhor dos casos – num caminho muito direto e firme para um “incumprimento” inevitável.

Ou pelo menos isto parece ser aquilo para que a imprensa ocidental e as agências internacionais de notação estão a pressionar e a torcer, tal como a academia especializada, think-tanks, o establishment político-financeiro-militar… e praticamente todo o Hemisfério Ocidental, incluindo os EUA e a Europa + Coreia do Sul, Japão, Austrália e Nova Zelândia. E pode-se razoavelmente presumir que o acima exposto se deve muito provavelmente ao fato de os governos ocidentais terem ditado oficial e inequivocamente que isto não só é “justo”, mas também sábio para:

Sanções contra a Rússia, resumo do 'Global Times'.

  1. congelar e/ou eventualmente “embargar” os stocks acumulados de divisas da Rússia mantidos em contas bancárias internacionais
  2. forçar a Rússia a pagar as suas obrigações financeiras internacionais a partir de bancos abundantemente solventes dentro da Rússia
  3. declarar que pagamentos russos em rublos ao invés de dólares ou euros ou ienes ou libras esterlinas não são válidos
  4. declarar a Rússia como “em incumprimento” das suas obrigações ao não cumprir os mandatos acima referidos
  5. em caso de dúvida, os governos ocidentais recordam-nos que o “incumprimento” mandatado para a Rússia será necessariamente contestado em tribunais britânicos… os quais, claro, decidirão sempre totalmente contra a Rússia… sem dúvida e convenientemente deixando de lado o que quer que possa restar do outrora tradicional “fair play” britânico.

E o Ocidente não está com rodeios em relação a esta política oficial, com a secretária do Tesouro dos EUA Janet Yellen e o Presidente da Reserva Federal dos EUA, Jerome Powell, a saírem da recente reunião do G-20 assim que o microfone foi passado ao representante russo. A mudança encenada foi também bem coordenada com múltiplos ministros das Finanças e governadores de bancos centrais “inamistosos”, enquanto outros presentes virtualmente desligaram as suas câmaras imediatamente após o responsável russo ter pronunciado a sua primeira palavra. E sem deixar margem para qualquer dúvida, a secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Saki tuitou em termos inequívocos que “Apoiamos os seus passos (de Janet Yellen) e é uma indicação do facto de que o Presidente Putin e a Rússia se tornaram párias no palco global”. A propósito, com algumas notáveis excepções, pelos mesmos “motivos ucranianos”, muitos dos acima mencionados propuseram abertamente expulsar a Rússia do grupo G-20 o mais rapidamente possível.

Assim, para abreviar uma longa história, para todos os efeitos práticos, a Rússia irá necessariamente “incumprir” rapidamente devido à estratégia ocidental do “não o deixaremos pagar, mas tem de pagar”… ou por volta disso.
[ Ref #1 https://www.reuters.com/world/delegate-protests-over-russia-upstage-g20-meeting-2022-04-19/ ]
[ Ref #2 https://www.rt.com/news/554236-g20-summit-boycott-russia/%20%20- ]

É claro que a Rússia diz  (a) que o acima exposto é uma falsa argumentação para uma espécie de “incumprimento artificial”, feito sob medida para desnecessariamente prejudicar a Rússia mais uma vez e   (b) que seria business as usual se o Ocidente não houvesse congelado as contas bancárias internacionais da Rússia. A Rússia acrescenta que o verdadeiro incumprimento é o bloqueio de pagamentos por parte do Ocidente, deixando registado que o congelamento dos fundos russos, de empresas privadas e de ativos individuais é um simples “roubo” como disse o ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergei Lavrov sobre os ditames sem precedentes que ninguém poderia ter previsto de países supostamente civilizados e líderes mundiais no século XXI.
[ Ref # 3 https://interfax.com/newsroom/top-stories/75126/ ]

De passagem e importantíssimo, a China pensa de acordo com a mesma linha russa ao deixar registado que “O congelamento arbitrário das reservas cambiais de outros países constitui uma violação da soberania e é o equivalente a transformar em armamento a interdependência económica”. O embaixador chinês na ONU, Sr. Zhang Jun, fez tais observações numa reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a Ucrânia, claramente “detonando as apreensões arbitrárias de ativos de países” (sic).
[ Ref #4 https://www.rt.com/business/554226-china-west-freezing-assets-violation/ ]

De modo que, na realidade, o problema real que ainda subsiste é analisar as possíveis consequências do já 99,99% certo “incumprimento” da Rússia e, mais especificamente, se isso poderia eventualmente levar a uma onda de auto-flagelações do Mundo Ocidental, como tem acontecido com outras sanções que ricochetearam totalmente e foram “temporariamente varridas para debaixo do tapete”. Consequentemente, vamos fazer duas perguntas básicas e sempre importantes desde tempos imemoriais, ou seja:

Cui bono? (quem beneficia?) e cui nocere? (quem perde?)

Para encontrar algumas respostas, vamos examinar mais de perto algumas das consequências do “incumprimento” russo mandatado pelo Ocidente

  1. Ausência da Rússia

A Rússia atualmente exporta muitas centenas de produtos chave 101% essenciais para os países ocidentais tal como os conhecemos hoje. Todo o inferno será desencadeado no instante em que a Rússia comerciar menos ou cessar de comerciar e ao mesmo tempo deixar de financiamento dos 20% do mundo ocidental… enquanto abertamente comercia e financia-se com os restantes 80% sem utilizar o sistema financeiro dólar/euro, mas sim o seu novo acordo Bretton Woods III. Como matéria de fato, os EUA já proibiram os navios russos e outros “não amigos” ocidentais estão na calha.
[ Ref # 5 https://www.rt.com/russia/554281-us-bans-ships/ ]

Enquanto isso, os planos económicos e financeiros da Rússia continuam firmes sob a muito recente renovação de Elvira Nabiullina como governadora do banco central durante mais cinco anos.

  1. Inflação

A reação automática ao acima exposto será mais uma impressão de moeda não mitigada com impacto facilmente visível no mundo ocidental, enquanto os rendimentos da classe média colapsam por trás da muito delgada fachada produtiva das economias de consumo ocidentais. Além disso, pensar em aumentos de preços com menos oferta aumenta o impacto do Covid + sanções à Rússia + reação da China relativamente a rupturas da cadeia de abastecimento, tal como abordado pelo Diretor Geral do BIS, o Banco Central dos bancos centrais, Dr. Agustín Carstens
[ Ref # 6 https://www.bis.org/speeches/sp220405.htm ]

Além disso, há a perspectiva do guru David Stockman em “ter a Reserva Federal dos EUA [a fazer] um experimento de décadas em matéria egrégia, a bombagem inflacionária de moeda a espalhar-se ignominiosamente por todo o Edifício Eccles” (sic)
[ Ref # 7 https://internationalman.com/articles/david-stockman-on-inflationary-hell-thats-about-to-break-loose/ ] …

  1. Não-pagamento

Os investidores na dívida russa em situação de incumprimento (pense-se em empresas e bancos ocidentais) não receberão um único cêntimo dos instrumentos de dívida russos per se… possivelmente nem os seus Credit Default Swap (CDS) os cobrirão, comprados muito provavelmente para fins de “seguro” CYA. Além disso, os investidores precisariam de fazer as reclamações também contra os bancos de bloqueio, enfrentando assim definitivamente um caminho legal absolutamente complexo e muito provavelmente infrutífero, com as despesas correspondentes. Enquanto a Rússia não aceitará mais dólares ou euros penhoráveis / congeláveis pelos seus tão necessários produtos … apenas rublos ou barras de ouro dos muitos “não amigos” ocidentais…
[ Ref # 8 https://fortune.com/2022/04/21/russia-debt-credit-default-swap-ruble-payment-sanctions-ukraine/ ]

  1. Adeus, SWIFT

A Rússia já substituiu o sistema de mensagens de pagamento SWIFT pelo seu próprio SPFS equivalente o qual aparentemente funciona tão bem que 52 organizações estrangeiras de 12 países já aderiram.
[ Ref # 9 https://www.rt.com/business/554221-russia-payment-system-members-secret/ ]

  1. Direitos de propriedade intelectual

A Rússia aproveitará e fará pleno uso de patentes, modelos, direitos de propriedade intelectual, desenhos, etc, sem qualquer compensação conforme Decreto Presidencial nº 299, 6 de março de 2022
[ Ref # 9 https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=39ef25c3-1bf0-4029-bac2-de0ac11965da ]

  1. Direitos de propriedade

O mundo financeiro ocidental declarou abertamente que os direitos de propriedade já não são válidos de modo que o dólar e o euro e outras contas bancárias em qualquer lugar – ou outros ativos – são vulneráveis ao congelamento / apreensão.

  1. A Ucrânia processa

Tatiana Orlova – economista líder dos mercados emergentes na Oxford Economics – salienta que outro problema para os detentores de obrigações e credores em geral é que a Ucrânia pode reclamar a tribunais internacionais (também conhecidos como tribunais do Reino Unido…) o pagamento de ativos russos para a reconstrução do país.
[Ref#10 https://www.businessinsider.com/russia-debt-default-us-could-seize-assets-resolution-ukraine-sanctions-2022-4 ]

  1. Incumprimento da dívida das empresas

Tatiana Orlova também advertiu acerca de uma provável “avalanche” de incumprimentos da dívida corporativa russa, uma vez que os EUA estão a adotar uma linha dura e a proibir os bancos americanos de processarem pagamentos. De acordo com o JPMorgan, havia pendentes cerca de US$98 bilhões de obrigações de corporações russas em divisas estrangeira quando a guerra começou em fevereiro, enquanto governos ocidentais já congelaram pelo menos 50% dos mais de US$600 bilhões de reservas russas em divisas estrangeiras.

  1. Migrações maciças

A Europa reage mais “eficientemente” (?) a uma súbita exposição a muitos milhões de migrantes sem precedente e inesperadas para os quais não está preparada de modo algum, nem política nem economicamente… se é que podia estar.

  1. Petróleo & gás & carvão

Não ter os combustíveis “certos” com a qualidade russa que as refinarias, centrais eléctricas e equipamento da UE necessitam especificamente significa acabar seriamente com todo o fabrico e produção, alimentação, aquecimento, disponibilidade de energia, ar condicionado, turismo, etc, etc, frio gélido e severa escassez na Europa durante um período demasiado longo para sequer considerar encontrar alternativas válidas, se é que alguma existe, num pesadelo logístico que se aproxima. Muito menos alcançar a autossuficiência com combustíveis relativamente amigos do clima durante o ano todo. Assim, a Europa quer divorciar-se furiosamente da Rússia, enquanto se esquece convenientemente dos muitos descendentes que tem de alimentar. Alguns peritos estão a entreter a ideia de petróleo a US$500 por barril… o que significa que a Rússia poderia exportar menos combustíveis do que hoje, mas – contra intuitivamente – ainda ganhar muito mais.

  1. Reserva de divisas azuis[1]

Obviamente afetam não só o processo de desdolarização como também o euro, a libra esterlina e o iene. A ideia é que estas divisas de reserva – com a Rússia ausente – levarão necessariamente à implosão pois as economias e finanças que lhes estão subjacentes continuarão a ter um desempenho cada vez pior, sem um futuro razoável à vista.
[ Ref. # 11 https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2022-04-20/euro-weakness-may-lead-to-a-currency-crisis-if-the-ecb-doesn-t-act-soon ] Case in point: “Israel Dumps The Dollar For China’s Renminbi”
[ Ref #12 https://quoththeraven.substack.com/p/king-dollars-demise-israel-dumps?s=w ]… tal como a Arábia Saudita.

  1. A missão impossível dos EUA

As finanças dos EUA confiam em que estrangeiros lhes emprestem constantemente enormes montantes sempre crescentes de moeda de modo incessante. Deve-se dar todo o crédito ao artigo de David Goldman com a Ref. #13 abaixo. Em suma, só a partir de 2008, a taxas reais negativas os EUA tomaram emprestados US$18 trilhões (trillion) de estraneiros… os quais agora podem não renovar pelo menos alguns de tais empréstimos. Além disso, estrangeiros continuam a manter US$ milhões de milhões em depósitos bancários além-mar para financiar transações internacionais. E enquanto luta com condições altamente adversas na economia estado-unidense, em simultâneo o Federal Reserva também tem ser visto com um balanço em decomposição de US$9 bilhões. O mercado de ações dos EUA agora comercia a aproximadamente trinta vezes mais ganhos com estrangeiros que também têm enorme exposição no mercado imobiliário. Encorajo a leitura completa do artigo de Goldman na Ref #13 h

ttps://americanmind.org/memo/fatal-dependency/

Por outro lado, desde então o BCE da Europa esteve constantemente a desafiar as leis da gravidade. Mas os europeus têm estado a fazer isto durante décadas – incluindo o Target 2 e outros artifícios – até chegarem ao fim da estrada, onde morre o proverbial teatro do chutar para a frente porque não restam mais truques.

Então, quem ganha e quem perde? Como sempre, a resposta não é perfeitamente clara, embora algumas orientações gerais possam ser inferidas, embora dependendo de como os acontecimentos se desenrolam. É claro que a Europa em geral é um perdedor muito claro que, nesta altura, em alguns aspectos, deveria ser considerado um Protetorado dos EUA. A Rússia iniciou um novo jogo de bola com a perda de 1 golo a 0, mas com a grande vantagem de (a) este jogo acabou de começar e (b) ser jogado com a bola da Rússia – por assim dizer – a qual poderiam levar embora se porventura quisessem… Nesse caso, o resultado não importaria.

Então, quem vence? A resposta curta é – apesar das enormes dificuldades a ultrapassar, em muitos sentidos importantes – provavelmente o novo sistema económico e financeiro Bretton Woods III liderado pela Rússia, incluindo a China e os BRICS. Então, quem perde? Mais uma vez, a resposta curta parece ser as economias ocidentais e os seus sistemas financeiros em geral, mais particularmente a Europa. O Reino Unido pós-Brexit pode encontrar alguns truques que lhe permitam um melhor resultado temporário, mas não enquanto os britânicos precisarem de uma economia europeia saudável para sobreviverem, enquanto o projeto Global Britannia nunca saiu da Last Night of the Proms [2].

O que provavelmente é 100% seguro assumir é que os estrategistas do ocidente e as suas elites do establishment – a multidão de Davos incluída – atuaram e reagiram aos acontecimentos na Ucrânia de um modo infantil & visceral, sem pensar suficientemente nas consequências das suas respectivas decisões. Por outras palavras, tal como a psicologia cognitiva indicaria, no estilo tradicional anglicano, a Europa prejudicou-se a si própria. Vá-se lá entender…

NT
[1] Chamam-se (currency blues) àquelas sujeitas a excessiva variação de valor: quando se depreciam os consumidores ficam sujeitos a inflação importada e quando se apreciam as empresas não conseguem exportar.
[2] Last Night of the Proms: Concertos de música promovidos pela BBC.

Do mesmo autor:

[*] Analista espanhol, ver Wikipedia .

O original encontra-se em thesaker.is/a-west-mandated-russian-default-who-wins-and-who-loses/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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