Ao definir-se a chapa eleitoral unitária da Frente de Todos, convertida em União pela Pátria (UP), após vários dias de debates internos, em plena convulsão e repressão social em Jujuy, finalmente se abre um cenário na área do peronismo-kirchnerismo para sair das personificações e expor um programa de transformações, que aponte um futuro numa eventual vitória eleitoral, ao mesmo tempo que abranja o presente, dado que é ainda governo e com muitas pendências.
Apesar de ainda não estarem delineadas todas as pautas programáticas da UP, elas deverão ser o da continuidade e de avanços do projeto nacional e popular que derrotou o macrismo nas eleições de 2019. A contenda de outubro de 2023 será entre dois modelos de país: o da entrega ao poder hegemônico midiático-judicial, com exclusão social e máxima repressão (nos moldes de Jujuy e da ditadura dos anos 76), anunciados pelo PRO-Cambiemos e Libertários vários; ou o da defesa da soberania nacional, com distribuição justa da renda e garantias constitucionais aos trabalhadores, representada pela Frente de Todos, atual União pela Pátria (UP). A contenda é de uma maior polarização de forças contrapostas. Tudo isso no meio de uma guerra judicial-midiática que proscreveu e impediu a candidatura da estadista popular de maior peso, Cristina Kirchner, num clima de ódio e violência inoculado pelo poder hegemônico.
Dois atos importantes do governo ocorreram após a definição da chapa de candidatura da UP. Ambos delineiam o programa do governo atual de Alberto/Cristina e da possível continuidade com Massa/Rossi.
Encontro pela Memória Verdade e Justiça
O primeiro foi o Encontro pela Memória Verdade e Justiça onde Cristina Kirchner e o candidato presidencial, Sérgio Massa, junto aos Organismos pelos direitos humanos e mães e avós da Praça de Maio, dirigiram um ato no aeroporto do Aeroparque, para a apresentação do Skyva, o avião dos “voos da morte” que foi resgatado por esforços do governo atual, como relata Cristina. Este avião, utilizado pelos genocidas da ditadura para a atirar cruelmente no mar os sequestrados e presos na ESMA (Escola Mecânica das Forças Armadas), passa a ser parte do Museu da Memória. O emotivo ato contou com a participação do líder kirchnerista, Wado de Pedro, Ministro do interior e filho de desaparecidos, que encabeçará a chapa dos senadores da UP. Assim, marcou-se um princípio fundamental do programa da UP: continuar e assegurar um “Nunca mais” e a Defesa da Democracia hoje ameaçada pelos três candidatos presidenciais opositores da direita (Milei, Bullrich e Larreta).
Cristina, é condenada, proscrita, mulher, mãe e avó, mas dirige a batalha e a campanha; no centro campo, não fora, como pretendeu o poder concentrado com o atentado de 1 de setembro. Ao contrário, descreve neste ato como se construiu a estratégia de unidade da UP para evitar o abismo da direitização, inclusive reforçando o paredão do kirchnerismo nas candidaturas do Legislativo e disputando o governo da província de Buenos Aires, a mais populosa da Argentina, com a possível reeleição de Axel Kicillof. Há muito, Cristina tem reiterado, assim como Lula, a necessidade essencial de um Congresso maioritário do peronismo capaz de votar leis favoráveis à soberania popular; o que não ocorreu neste governo de Alberto. Da mesma forma, como no Brasil, ela formula alianças táticas com setores da burguesia nacional produtiva (PYME), e do pequeno e médio comércio, através do apoio à candidatura de Sérgio Massa (FR), sem deixar de responder ao legado kirchnerista e ao protagonismo e pressão das Centrais Sindicais peronistas e movimentos sociais.
A inauguração do gasoduto Presidente Nestor Kirchner
O segundo ato foi a inauguração do primeiro trecho do Gasoduto Presidente Nestor Kirchner (GPNK) no dia 9 de julho, dia da Independência, um ato de soberania energética da Argentina. O gasoduto parte das reservas petrolíferas de Vaca Muerta na bacia de Neuquen (responsável por quase 50% do óleo e gás da Argentina) e atravessa outras como Rio Negro, La Pampa e Buenos Aires, possibilitando exportar à Bolívia, Chile e ao Brasil (chegando a São Paulo). Trata-se da 2ª reserva de gás convencional, e 4ª. de petróleo convencional do mundo. A inauguração foi no município de Salliqueló, província de Buenos Aires. O gasoduto de 573 km construídos, implicou numa enorme atividade da indústria nacional, dirigida por um plano estatal e público, pondo em movimento mais de 10 mil trabalhadores de forma direta (40 mil indiretamente), 1300 máquinas, na construção e colocação de 40.700 canos.
A soberania implica que a Argentina não precisará mais importar gás (da Bolívia), ou por navios vindos do exterior. Haverá uma obra de reversão do gás da Bolívia que acarretará uma economia anual de 1,7 bilhões (US$) ao Estado. A diferença de preço entre gás em boca de poço e o que vem em barco é 400%. A substituição da importação implicará numa economia de 2,2 bilhões (US$) até o fim do ano, e 4,2 bilhões (US$) em 2024, além de estimular a produção de energia elétrica baseada em fontes renováveis e limpas. Por outro lado, o país passa a tornar-se um exportador, quando o mundo em guerra requer energia. Isso significa, 11 bilhões de dólares de entrada de exportação no ano. A soberania não implicará só exportar, mas agregar valor, e sobretudo destinar boa parte da produção ao consumo interno, barateando as tarifas energéticas de gás e luz, dado que o funcionamento das centrais termoelétricas será beneficiado pelo gás a baixo custo. No momento, há 40% da Argentina sem gás natural, mas com o GPNK abre-se a perspectiva do seu abastecimento interno. Leia mais detalhes no Página12.
A foto de unidade entre o ministro da economia (Massa), a vice-presidenta (Cristina) e o presidente (Alberto) nesta inauguração do GPNK, teve como foco a unanimidade na defesa da função central do Estado na construção deste patrimônio energético, que pôs em movimento várias empresas nacionais de engenharia, descartando o modelo de mercado do Macri.
Destacou-se o protagonismo da ex-presidenta Cristina Kirchner que em 2012 recuperou 51% da YPF em Vaca Muerta, expropriando a Chevron espanhola. Aí houve decisão do Executivo, normas impostas por um Congresso de maioria peronista; tudo o que faltou na gestão atual para a imprescindível estatização da agroexportadora Vicentin. Na construção do gasoduto de Neuquen convergiram vários fatores: decisão presidencial para opor-se ao freio do FMI, apoio de governadores, e de legisladores que votaram o projeto de Contribuição Solidária e Extraordinária (contribuição de umas 12 mil pessoas físicas com patrimônio acima de 200 milhões de pesos) proposto pelos deputados Máximo Kirchner e Carlos Heller. Uns 25% dessa arrecadação permitiu à ENARSA cobrir 30% dos gastos, além dos fundos do Tesouro Nacional, para concluir este trecho do GPNK. A viabilidade desta ação impulsiona novas leis de impostos a grandes fortunas; sobretudo àquelas maiores, que se negaram a esta Contribuição Extraordinária.
Leia o artigo do economista argentino, Alfredo Zaiat, detacando um informe da Oxfam e ActionAid que denuncia os lucros extraordinários de corporações multinacionais depois da Pandemia e às custas da guerra da Ucrânia. “45 corporações de energia tiveram uma média de lucro inesperado de 237 bilhões (US$) entre 2021 e 2022.” Mesmo o FMI e o Banco Central Europeu não puderam deixar de admitir que os “lucros das corporações representam quase a metade do aumento da inflação na Europa nos últimos dois anos”. Enquanto isso, deteve-se a construção do Nord-Stream2 que transportava o gás natural da Rússia para a Europa (via Alemanha); em meio de uma campanha política “russofóbica”, o povo europeu é vítima de escassez energética, de cortes em gastos públicos, até chegar à explosão social na França. A confirmação de que as multinacionais têm obtido tal lucro extraordinário (às custas de um aumento do preço dos alimentos, produtos básicos, energia e saúde) e empobrecimento fatal de populações, justifica, como mínimo, um imposto às grandes fortunas; sobre o lucro, mas também de 50 a 90% sobre suas utilidades. Esse é o debate necessário.
A vice-presidenta Cristina (mesmo o presidente Alberto) alertaram tal situação, e reiteraram o protagonismo do Estado que possibilitou a construção do gasoduto, relevou a ação conjunta do ministro da economia, Sérgio Massa e dos dirigentes da YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales), Pablo Gonzáles, e da ENARSA (Energia Argentina Sociedade Anônima), Agustín Geréz, o que permitiu concluir a construção nos últimos 10 meses, desafiando o descrédito e as pressões contrárias do FMI.
A China, como membro do FMI, o advertiu que se o acordo sobre a dívida demorar, autorizará a Argentina para usar o swap para poder pagar os vencimentos da dívida. “Com relação aos recursos chineses, a Argentina possui um swap cambial com a China no valor de 130 bilhões de yuans, equivalente a US$ 19 bilhões. Essa troca, que foi renovada por Massa e Pesce em sua recente viagem a Pequim pelos próximos três anos, representa hoje 60% das reservas brutas do Banco Central.”Leia. O ministro da economia, Massa, revelou como o FMI pressionou a que não se construísse o gasoduto afim de garantir a diminuição do gasto público. A sua linha é a já proposta pela vice-presidenta e realizada por Nestor Kirchner: a da re-negociação com o FMI, para poder pagar, “mas para que nunca mais volte à Argentina”, como acaba de afirmar.
Falta ver como de fato impedir que um outro sócio do Macri traga o FMI de volta; aquele que, no seu governo, paralisou os investimentos públicos em Vaca Morta. O primeiro desafio para a UP é ganhar as eleições; definir um programa; organizar um âmbito de debate sobre como avançar com mais Estado e participação popular; estatizações dos setores básicos, controle dos lucros, distribuição justa de renda; medidas de choque distributivo (aumento urgente de salário mínimo, subsídios-família, paritárias sindicais) e recuperação do poder aquisitivo do povo. Nas próximas PASO (Eleições primárias), o dirigente da Frente Pátria Grande, Juan Grabois, representando setores populares, mantém sua candidatura; mas deverá incorporar votos ao candidato vencedor da UP no provável segundo turno das finais.
As relações comerciais com a China, a maior potência econômica do mundo, baseada numa próspera planificação estatal socialista, tendem a ocupar os espaços das multinacionais e das políticas neoliberais de recato dos EUA. Este é o outro elemento da agenda da UP que não é nova (Cristina Kirchner é uma das precursoras nos seus governos anteriores), visibilizada com a viagem de Sérgio Massa, acompanhado do deputado, Máximo Kirchner (FdT), em maio a Xangai, quando como ministro da economia propôs ao Banco de Desenvolvimento da China o financiamento do segundo trecho do gasoduto (GPNK) que unirá Salliqueló (Buenos Aires) a San Gerônimo (Santa Fé), rumo ao Brasil. O desafio é muito grande para o governo da FdT chegar à vitória nas eleições de outubro com a UP, diante do ataque das fakenews e do ódio inoculado pela direita para “acabar com o kirchnerismo”. Os efeitos de logros vitais como a da soberania energética através do gasoduto, do combate à inflação, bem como as relações comerciais decisivamente libertadoras com o yuan e as moedas locais nacionais entre o Brasil-Argentina, e a instalação financeira do país no novo BRICS, podem não chegar a tempo, e nem se expressar no curto prazo deste ano 2023. Só uma forte ofensiva comunicacional pública da UP e do governo, via cadeias nacionais de TV e Rádio, e muito corpo a corpo nos bairros, anunciando e explicando ponto por ponto o programa, e as ditas medidas de choque distributivo, apontando presente e futuro, poderão assegurar-lhe um apoio e a sua continuidade.
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