O presidente Javier Milei, durante discurso feito em uma convenção organizada pelo partido radical espanhol Vox, em Madri, chamou a esposa de Pedro Sánchez de corrupta. O gesto do argentino desencadeou uma
crise diplomática entre os países.
No período em Madri, Milei esteve em eventos com partidos da oposição e lançou seu novo livro, “El camino del libertario”, mas não foram registrados encontros com o governo espanhol. A
crise escalou quando o presidente argentino disse que não pediria desculpas e, em resposta, o governo da Espanha anunciou, na última terça-feira (21), a
retirada da sua embaixadora na Argentina.
O gesto de Milei, considera Haroldo da Silva, economista e conselheiro do Conselho Regional de Economia do Estado de São Paulo (CORECON-SP), diz respeito a “um modus operandi muito bem pensado”.
“A indignação, o medo, o preconceito, o insulto, a polêmica racista ou de gênero se propagam nas telas e proporcionam muito mais atenção e engajamento do que os debates enfadonhos da velha política”, diz, citando o livro “Os engenheiros do caos”, de Giuliano Da Empoli.
Dessa forma, segundo o analista, é necessário que o governo argentino crie um “ambiente no qual uma espiral infinita de cenas e eventos midiáticos se sobreponham à dura realidade” para que “sua incompetência em tratar dos problemas econômicos que deixaram algo como 50% da população argentina abaixo da linha de pobreza” seja, por instantes, esquecida, “pois ele se mostra ‘autêntico'”.
Por outro lado, Silva acredita que a verdadeira crise enfrentada pela Argentina — a econômica —, não deve sofrer grandes impactos devido à “verborragia de Milei”.
“A balança comercial com a Espanha é superavitária para a Argentina e, do ponto de vista econômico, a atitude de Milei em nada colabora para mudar substancialmente essa relação. Entendo que pode isolar um pouco mais a Argentina, com uma ou outra sanção pontual, mas nada que se sobressaia à questão central: uma brutal crise econômica pela qual passa o país vizinho.”
Bruno Lima Rocha, jornalista, cientista político e professor de relações internacionais, analisa, por sua vez, que a crise diplomática entre os países pode, sim, espirrar na questão econômica, sobretudo pela declaração do presidente da Confederação Espanhola de Organizações Empresariais (CEOE) e de
companhias espanholas com atuação na Argentina.
“A gente pensa que não dá problema, mas dá, tomando como exemplo a indústria frigorífica brasileira e as exportações de carne para a China durante o período pandêmico. A China levantou uma série de barreiras às importações brasileiras, e várias frigoríficas ficaram de fora”, exemplifica.
Para o analista, algo semelhante é possível, “especialmente considerando que não há ainda o engajamento completo do empresariado da Espanha” com o projeto do Vox.
Brasil e Mercosul podem ser prejudicados?
Silva não acredita que o Brasil, tampouco o Mercosul, devem sofrer consequências econômicas ou diplomáticas da crise provocada pelo
presidente argentino.
“Os problemas da Argentina têm outra origem, bem mais complexa. Para exemplificar, as vendas de produtos brasileiros para lá saíram de US$ 5,6 bilhões [R$ cerca de 28,9 bilhões], em 2023, para US$ 3,9 bilhões [R$
20,1 bilhões], em 2024, no acumulado de janeiro até abril de cada ano, uma queda de quase 30% na comparação. E isso não tem relação com a verborragia de Milei. A venda de combustíveis e lubrificantes do Brasil para a Argentina caiu 65% nesse período”, comenta.
Em vez de impactos para o bloco, o especialista considera que as polêmicas do presidente argentino são “cortina de fumaça para o público doméstico”, enquanto o país enfrenta inflação de 290% ao ano, com grande queda do poder de compra do salário-mínimo, segundo o Centro de Pesquisa e Formação Central de Trabalhadores da Argentina (Cifra-CTA, na sigla em espanhol).
Ele fundamenta ainda que o cenário internacional envolvendo a Argentina já “é péssimo” e que falas destemperadas não colaboram para a melhoria da situação.
“A Argentina já está afastada das decisões de investimentos estrangeiros faz muito tempo. Sequer investidores especulativos têm apetite pela Argentina, menos ainda os investimentos produtivos. Como resultado, o peso argentino deverá desvalorizar em cerca de 70% em 2024, segundo o Bank of America. Tudo isso afasta o país do cenário econômico internacional, o que reforça a necessidade de flertar com a estratégia engendrada pelos ‘engenheiros do caos’, para Milei aparecer de alguma forma no noticiário”, argumenta.
O
conflito entre Milei e o Mercosul, conforme Rocha, é algo já dado. Isso significa que os desafetos do presidente, neste momento, têm pouco impacto.
O problema de fundo, segundo o professor, é a Hidrovia Paraná-Paraguai. O megaprojeto que envolve Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai enfrenta discordâncias.
“Tanto o Paraguai como a Argentina assinaram e se comprometeram a conveniar com o Comando Sul dos Estados Unidos para fazer a gestão hidrográfica em conjunto. Os dois governos — Paraguai por chantagem, Argentina por subordinação — colocaram o Comando Sul, colocaram a DEA [Agência de Combate às Drogas] para administrar o corredor do narcotráfico da América do Sul”, relata.
Para o analista, a tendência é de uma situação caótica. “O Brasil teria que se mexer com muita, muita celeridade para não perder o controle do escoamento do eixo da hidrovia do Paraná, que também é uma construção coletiva”, completa.
Crise econômica na Argentina: Brasil sente impacto no setor de turismo
O
setor de turismo é um bom exemplo das perdas adquiridas pelo Brasil em relação à Argentina. Segundo dados da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo
(Embratur), em fevereiro deste ano o Brasil recebeu 10,7% menos turistas argentinos em comparação ao mesmo período de 2023.
Brasil e Chile são os principais
destinos de turistas argentinos. Assim como o Brasil, a crise econômica na Argentina também causou reflexos no Chile, que, segundo a Embratur, tem atuado para compensar a queda da chegada de argentinos com o crescimento da ida de brasileiros.
No sentido contrário, a Argentina “está um pouco mais cara para nós do que estava e muito mais cara para a população argentina”, comenta Lima Rocha, que ressalta a “política xenófoba” como fator mais agressivo para a ida de brasileiros ao país vizinho.
“A desvalorização do peso afeta o ‘turismo de compras’, pois significa aumento de preços, mesmo com o recurso do ‘câmbio paralelo'”, diz Silva.
Além do fator econômico, ressalvas podem ser guardadas por turistas brasileiros para visitar a Argentina neste momento, sugere o especialista.
“Se o presidente argentino trata mal outro chefe de governo, no caso Pedro Sánchez e sua esposa, qual a garantia de que um simples turista brasileiro [ou espanhol] será bem tratado lá? O mau exemplo não ajuda a atrair turistas, o que só piora o quadro da falta de dólares por lá. […] Longe de uma solução, os problemas vão se avolumando”, finaliza Silva.