João Carlos Graça [*]
Relativamente ao conflito militar na Ucrânia, eis uns quantos pontos pelos quais, em minha opinião, se deve começar, ou que pelo menos se deve considerar atentamente numa qualquer tentativa de debate informado.
Em primeiro lugar: começou o conflito no passado mês de fevereiro, sendo a Rússia a agressora? Resposta: obviamente, não. O conflito armado vem pelo menos desde 2014, quando, na sequência do golpe da praça Maidan, as regiões ucranianas predominantemente russófonas se manifestaram massivamente em protesto, não raro reclamando mesmo a secessão, e pediram a ajuda russa. Todavia, só nas chamadas Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk o protesto adquiriu dimensão produtora de revolta armada e secessão efetiva. A repressão pelo governo de Kiev destas repúblicas secessionistas provocou, desde então, perto de 15 mil mortos. A Rússia, a França e Alemanha supostamente operaram como mediadoras, apadrinhando os “acordos de Minsk”, que todavia a Ucrânia nunca cumpriu. Os mortos referidos correspondem, na sua imensa maioria, a civis das repúblicas de Lugansk e Donetsk.
Segundo aspeto: o governo de Kiev preparava-se para levar a cabo um assalto em força contra as duas repúblicas, tendo concentrado no Leste do território ucraniano, segundo alguns comentadores (como Scott Ritter, nomeadamente), cerca de 60 mil homens armados, ou mesmo mais. A “Operação Z”, como os russos lhe chamaram, constituiu assim, antes de mais, um movimento de antecipação, que impediu este assalto mortal preparado pelo governo de Kiev.
Terceiro, mas pode a Rússia apoiar abertamente as pretensões secessionistas das duas referidas repúblicas? Sim, pode; e tem, quanto a isso, indiscutivelmente razão em matéria de direito internacional, pelo menos desde as deliberações do Tribunal Internacional de Justiça que em 2010 formalmente indeferiram a queixa da Sérvia relativa à proclamação da independência pelo Kosovo (aqui: en.wikipedia.org/wiki/Advisory_opinion_on_Kosovo%27s_declaration_of_independence). Recordemos, quanto a este assunto, o seguinte. Aquando do desmembramento da ex-Iugoslávia, a Croácia e a Bósnia, por exemplo, fizeram secessão legalmente, porque a própria Constituição jugoslava reconhecia esse direito às suas repúblicas que a compunham. Todavia, depois disso, a Krajina fez também secessão da Croácia, e a Srpska da Bósnia. A resposta generalizada foi então: estas secessões são diferentes e são ilegítimas, porque se trata aqui apenas de regiões, ao passo que a Bósnia e a Croácia eram repúblicas. O problema, nesse caso, é que também o Kosovo era só uma região. E, todavia, depois de a OTAN ter (com os bombardeamentos de março-junho de 1999) imposto à Jugoslávia a saída daquele território, o Kosovo veio a proclamar a sua independência em 2008: reconhecida pela maior parte dos membros da OTAN, tal como Portugal, por exemplo, embora significativamente não pela Espanha. A Iugoslávia restante decompôs-se, entretanto, em Sérvia e Montenegro. A Sérvia, república à qual o Kosovo pertencia, levou o problema até às mais altas instâncias jurídicas, designadamente o referido Tribunal Internacional de Justiça. E este deu a resposta mencionada acima. A secessão do Kosovo seria ilegal do ponto de vista interno da Sérvia, sem dúvida; mas em matéria de direito internacional, opinaram os doutos juristas, dever-se-ia permanecer agnóstico, porque se de um lado estava a pretensão da integridade territorial da Sérvia, do outro estava o propósito de autodeterminação dos kosovares – mesmo sem no Kosovo ter sido feito qualquer referendo sobre a independência, note-se bem. Assim, o Tribunal decidiu-se pelo referido parecer ‘agnóstico’, reconhecendo aliás, do mesmo passo, o caráter predominante político (por oposição a jurídico) da questão.
Quarto, pode dizer-se que, depois deste acórdão do TIJ, as portas ficaram na verdade abertas para praticamente tudo? Que internacionalmente passa a valer tudo, desde que se tenha a força (política, e antes de mais militar) suficiente para fazer prevalecer um qualquer ponto de vista? Bom, se calhar pode mesmo. Aliás, a mencionada sentença assemelha-se estranhamente a um ‘suicídio coletivo’ em termos jurídicos, com a admissão pública de que este assunto está muito acima da cabeça dos juízes – e isso segundo os próprios. Mas é bom que toda a gente tome nota de que é este o mundo em que vivemos, mesmo de acordo com aqueles que, supostamente, estão encarregados de pôr um mínimo de ordem jurídica neste mundo… em todo o caso, a Rússia sem dúvida registou devidamente esse importante ponto de viragem em teoria e doutrina das relações internacionais, os seus responsáveis máximos, incluindo Putin, tendo-o explicitamente referido em público mais duma vez.
Quinto, para além da questão da secessão das repúblicas do Donbass, há o problema da neutralidade da Ucrânia. E, quanto a isso, voltamos a embater no facto iniludível da predominância da pura e simples força. Noutros termos: podem a Rússia ou a China, por exemplo, se Cuba concordar com isso, despejar mísseis hipersónicos seus de última geração naquela ilha, indiferentes ao que os EUA pensem ou não pensem? Não parece muito crível. E, de resto, na década de 1960, JFK (que Oliver Stone fez, com alguma plausibilidade, passar por político ‘pomba’) disse-o claramente a Khrushev. Basicamente: “ou vocês tiram os mísseis de lá, ou tiramos nós”. E os soviéticos tiraram: em troca, acrescentemos e precisemos, de os norte-americanos também tirarem mísseis seus da Turquia (neste caso algum dispositivo mental de ‘simetria’ parece fazer sentido) e de prometerem não invadir Cuba – embora tenham continuado a estrangulá-la economicamente, claro, mas isso é outro assunto. Regressemos à Europa. Imagine-se uma Rússia um pouco menos pacholas do que foi até ao passado mês de fevereiro, dizendo: “ou vocês garantem a neutralidade da Ucrânia, e tiram os vossos mísseis dos vários países nossos vizinhos onde eles estão, ameaçando-nos demasiado perto, ou tiramos nós; e trataremos também de ‘neutralizar’ a Ucrânia”. É abusivo? É belicoso? É arrogância e ferocidade russa? É violação da Carta da Nações, designadamente da soberania da Ucrânia? Em parte, talvez seja, mas, se quisermos produzir um juízo completamente honesto acerca deste grupo de problemas, teremos obviamente de admitir: não foi só Brejnev a argumentar pelo caráter “limitado” da soberania dos países. E, quando o fez, o seu defeito principal foi, talvez, o da franqueza excessiva.
Em sexto lugar, a própria violação da Carta das Nações é, em todo o caso, muito discutível, porque a Rússia tem indiscutivelmente do seu lado, para além do importante princípio da “segurança coletiva” enquanto bem comum indivisível, também o princípio da “responsabilidade de proteger”, normalmente usados (e mesmo muito abusado) pelos norte-americanos. Em essência, quanto ao primeiro: um qualquer país não pode, impunemente, pretender ameaçar outro. Se o fizer, arrisca-se e fica por sua conta, colocando-se fora da alçada da proteção da Carta da ONU, a qual visa primordialmente a defesa da paz. Pode a NATO, portanto, pretender expandir-se indefinidamente para Leste, fazendo perigar a segurança da Rússia, dizendo proceder assim em nome da soberania irrestrita dos países seus membros? Da perspectiva do princípio da “segurança coletiva”, não pode. Em definitivo, que isso fique claro: não pode. Se o quiser fazer, arrisca-se, deixando de ficar sob a proteção da Carta e do espírito constitutivo da própria ONU. Ora, quanto a isso, a Rússia tem infinitamente mais razão em 2022 do que os EUA, quando invocaram abusivamente estas ideias, por exemplo, contra o Afeganistão em 2001 (a suposta “ameaça terrorista”) e contra o Iraque em 2003 (as famosas “armas de destruição massiva”). Nenhum destes países ameaçava outros, menos ainda os próprios EUA. Mas a expansão indefinida da NATO para Leste, incluindo a eventual adesão da Ucrânia (acrescida, para cúmulo, da rescisão do protocolo através do qual está aceitara, aquando da dissolução da URSS, permanecer militarmente não-nuclear!), constituiria uma ameaça mortal e direta, um clear and present danger para a Rússia, impondo a esta uma reação com caráter de urgência.
Em sétimo lugar, quanto a “responsabilidade de proteger” (responsibility to protect, ou R2P, como é habitualmente conhecido), idem aspas. Os EUA usaram e abusaram grosseiramente disso, por exemplo, a respeito do Kosovo. Alguém se lembra ainda dos célebres killing fields de Slobodan Milosevic, apressadamente fabricados em 1999 pelos media ocidentais? Alguém recorda Carla Del Ponte, a superlativamente prostibular procuradora do “tribunal especial”, mandando prender Milosevic precisamente quando a Jugoslávia estava a ser bombardeada? Os killing fields do Kosovo nunca vieram a ser encontrados, é claro (porque obviamente nunca existiram), mas o facto é que Milosevic acabou por ser preso e vir a morrer na prisão, sendo depois disso pronunciado inocente pelo próprio tribunal que o mandara prender. Nada disso acarretou, note-se, quaisquer consequências para Carla Del Ponte. Todavia, sublinhemo-lo agora, isto não significa que o R2P seja de todo um princípio inválido, ou que a sua invocação seja sempre uma impostura. Foi uma impostura no caso do Kosovo, sim, onde a ex-Iugoslávia nunca praticou as atrocidades mentirosamente alegadas. Mas isso não quer dizer que não haja atrocidades desse calibre e maior por esse mundo fora. Mais recentemente tem havido, sim, e muitas, designadamente na Ucrânia oriental. Ora, perante está população russófona, que de resto em boa medida se percebe mesmo como russa (a designação de “ucraniana” constituindo, do ponto de vista daquela, um mero topónimo, tratando-se de russos que residem numa periferia geográfica, tal como há espanhóis que são “estremenhos” pela singela razão de viverem na “Extremadura”), face aos sofrimentos infligidos à mesma, pode a Rússia continuar perpetuamente indiferente? Viu-se recentemente que não – mas era mais ou menos perceptível há muito que isso acabaria, tarde ou cedo, por acontecer.
Oitavo, isso leva a outro aspeto importante desta história, que é o facto de Rússia ter procedido lentamente, e até muito tarde apenas a contragosto, apenas depois de muitíssimo pressionada pelos acontecimentos. O conflito presente pode, pois, com facilidade, ser identificado não tanto como um conflito primordialmente Rússia-Ucrânia, mas enquanto conflito da Rússia com a OTAN, ou mesmo com o Ocidente Coletivo, que usou a Ucrânia como instrumento para ‘açular o urso’. Tem, quanto a isso, toda a razão Diana Johnstone (middle-east-online.com/en/us-foreign-policy-cruel-sport): a política dos EUA face à Rússia é sobretudo um desporto, e um desporto cruel. O conflito, repita-se e sublinha-se, pois, não começou agora nem foi iniciado pela Rússia. Esta limitou-se a defender-se, no contexto da Drang nach Osten da OTAN, ocorrida apesar das promessas mentirosas, feitas em 1990/91, de que não haveria “nem uma polegada” de expansão da aliança para Leste.
Em nono lugar, merecem igualmente menção, quanto ao panorama atual, a absoluta, radical exclusão dos russos do imaginário Ocidental, a expulsão simbólica daquela nação de tudo o que possa indicar civilidade (ou, pelo menos, a sua enfática irradiação da Grande Irmandade dos Povos Brancos): de Tchaikovsky e Turgueniev ao atletismo e à patinagem artística, passando pelos concursos de gatos… Apesar de já ter sido sublinhado por vários autores, isso deve ser mencionado aqui, como importante sintoma quanto ao estado de saúde mental do Ocidente Coletivo: em ocasiões anteriores de conflitos, mesmo conflitos muito acirrados – e isso desde a Guerra da Crimeia até à chamada Crise dos Mísseis dos anos 1960 – nunca um certo número de enormidades como as que hoje presenciamos foi obviamente cometido. Já se disse, e com razão: o próprio Hitler, no meio do combate às Hordas Orientais que pretensamente teria sido a “Empresa Barbarossa” (Unternehmen Barbarossa), não chegou a proibir a música russa, ou o ballet…
Em décimo lugar, é merecedor de registo o elevado nível de enlouquecimento coletivo dos europeus (a Ocidente e a Oriente) também quanto aos seus interesses materiais diretos, bem como o abjeto servilismo dos mesmos face aos EUA. Tal como Michael Hudson há muito sublinhou, esta é sobretudo uma guerra de separação económica radical da Europa e da Rússia, criando dificuldades de curto prazo a ambas, decerto, mas num prazo mais dilatado sobretudo aos europeus, que vão ficar muito mais ainda nas mãos dos EUA do que até agora (aqui: thesaker.is/americas-real-adversaries-are-its-european-and-other-allies-the-u-s-aim-is-to-keep-them-from-trading-with-china-and-russia/). Para usar a expressão do mesmo Hudson, em situação subsequente de dificuldades para ambas as moedas, o dólar vai rapidamente “devorar o euro”: resistir.info/m_hudson/dolar_devora_euro.html.
Todavia, décima primeira observação, esta trajetória deverá acabar por criar problemas também aos próprios EUA, os quais têm até agora extraído consideráveis vantagens de senhoriagem da posição obviamente privilegiada em que encontram, desde que Nixon, há 50 anos, suprimiu a convertibilidade dólar-ouro. Em síntese, só mesmo um país cuja moeda goze das vantagens de senhoriagem que o dólar possui pode continuar a ter simultaneamente um enorme défice orçamental e um brutal défice externo, sem que isso conduza rapidamente à sua ruína. E isso acontece, em essência, porque a procura de dólares continua a ser alimentada, em todo o mundo, pela necessidade de usá-los para transacionar um certo número de produtos essenciais, em particular petróleo. São estes fluxos que fundamentalmente seguram o dólar como ‘super moeda’ mundial. Em paralelo, claro, os EUA transformaram-se também em ‘protetor’ ou ‘padrinho militar’ dos produtores de petróleo do Médio Oriente, embora se trate aqui, de facto, de racketeering, ou duma variedade de ‘serviço’ típico dos famosos Sopranos… Mas isso é conversa mais longa. O importante é que, mesmo sem o reequilíbrio das suas exportações assim parcialmente adquirido, os EUA podem permanecer indefinidamente deficitários, o resto do mundo continuando em essência a comprar dívida norte-americana, na medida em que o dólar continue a operar como ‘super moeda’.
Entretanto, décimo segundo, a prática repetida das chamadas “sanções” (configurando uma completa ilegalidade, um total desrespeito pelo direito internacional, o equivalente do sitiar da cidades nas guerras medievais para as forçar pela fome a render-se, como repetidamente notado por vários autores, entre outro o famoso jurista Alfred de Zayas), o correspondente abuso grosseiro, pelos EUA, das vantagens que lhes são dadas pela sua posição excecional, tem induzido vários agentes económicos à escala global a procurar alternativas. A verdade, porém, é que se tem ‘empastelado’ muito nessa matéria. Todavia, aparentemente não mais, depois da recente vaga das chamadas sanctions from Hell que o Ocidente Coletivo quis (como intenção criminosa, claramente genocida e oficialmente declarada) impor a toda a sociedade russa. Decididamente, não mais. As alternativas estão a chegar: desta vez, podemos estar certos disso, é mesmo para levar muito a sério. Também quanto a isto a Rússia terá demorado a reagir (e o resto dos BRICS decerto mais ainda), mas também quanto a isto se poderá decerto aplicar o princípio do “não perdes pela demora O novo mundo económico e financeiro incluirá a indexação do rublo ao ouro, ao gás e/ou a outros recursos naturais, bem como tentativas de construção duma moeda-cabaz alternativa ao dólar, para o comércio internacional entre países exteriores ao Ocidente Coletivo. Tudo isto tenderá, previsivelmente, a criar pressões deflacionistas na Rússia e inflacionistas (talvez mesmo de hiperinflação) a Ocidente. Pode ir-se conjeturando, quanto a isso, na linha desta entrevista: resistir.info/p_escobar/glazyev_14abr22.html.
Décima terceira observação, o grotesco congelamento dos créditos russos pelos EUA e pela UE obriga imediatamente ao refazer dos contratos Rússia-Europa, passando os pagamentos desta a serem feitos em rublos. Não há nisso qualquer ‘retaliação’ russa, sublinhe-se, mas apenas sensatez elementar. Se a Rússia vende um bem e o seu comprador reconhece o crédito russo (em dólares ou euros), mas ato contínuo o ‘congela’, isso significa evidentemente que o comprador está a proceder de má-fé, pretendendo continuar a consumir, na prática, à borla. Ora, como devia ser evidente para quem não estivesse totalmente ensandecido, a Rússia pode não desejar mal ao Ocidente, mas não tem inclinação para se constituir em instituição caritativa de que aquele fosse o beneficiário. Sendo assim, doravante (depois das famosas “sanções” que são, de facto, um enorme tiro no pé dos europeus…), ou há pagamentos em rublos, ou fecho da torneira. A Europa pode, em alternativa, vir a consumir gás liquefeito transportado por navios transatlânticos, proveniente dos EUA, produzido por fracking em circunstâncias ambientalmente mais agressivas e muito mais caro? Lá isso pode, embora seja coisa para ainda demorar. E, pelos vistos, os dirigentes europeus querem tão bem às suas populações que é mesmo para aí que nos encaminhamos…
Décima quarta observação: este facto, só por si, evidencia bem que na Europa (Ocidental e Oriental), onde se tornou oficialmente objeto de escárnio público e de vergonha ser-se patriota, ou “nacionalista”, é, todavia, um imperativo absoluto ser ‘patriota-dos-EUA’, aceitando colocar os interesses dos EUA (tal como definidos pelo governo daqueles) à frente dos interesses do país de cada um; e obviamente à frente também dos interesses de cada um. Os europeus, pode dizer-se, deixaram de reconhecer uma qualquer Pátria (terra do pai), ou ‘Mátria’, mas foram e são educados (por todo um universo mental que vai de Hollywood à Comissão Europeia) a reconhecer espontaneamente uma ‘Fília’: uma Tochterland, terra-filha, ou terra dos nossos ‘filhos simbólicos’ que seriam os norte-americanos. Se necessário, cada europeu (que deixou, entretanto, de ter Pátria, a favor da UE e de Bruxelas) deve sacrificar-se em tudo o que for necessário a favor da Tochterland, ou seja, dos EUA. É Bruxelas que o impõe. E o patriotismo-por-transferência dos europeus para com aquela é, pelo seu lado, obviamente transitivo para Washington. Isto permite tudo o que o patriotismo ‘clássico’ permitia: da censura da cadeia televisiva Rússia Today à compra forçada de combustíveis mais caros, passando por mais despesas na aquisição de material militar norte-americano e (preparemo-nos) reintrodução do serviço militar obrigatório, com monitorização direta pelos militares EUA e, no fim da linha, ‘juramento de bandeira’ dos recrutas às Stars and Stripes, com música de fundo do John Philip Sousa…
Em décimo quinto lugar (e agora fora de brincadeiras), destaque-se que quem continua a ver nisto tudo sinal da “loucura de Putin”, que o teria levado a reatar com a tradição de “imperialismo russo” remontando ao tempo dos czares – decididamente não percebeu mesmo nada. E continua a ler a situação completamente ao contrário do que devia. Relativamente à vida política na Rússia, deve sublinhar-se que existe neste país, quando comparado com os EUA, um muito maior pluralismo político efetivo. Putin, ao contrário de Biden, defronta oposições políticas muito reais, oposições substantivamente muito diversas em orientação ideológica-programática do seu partido, a Rússia Unida, o qual corresponde a uma espécie de Gaullismo à russa. Esta formação partidária dispõe duma larga maioria na Duma, onde defronta basicamente o PC da Federação Russa, o partido da Rússia Justa (maleável algures entre os dois anteriores) e os nacionalistas conservadores do chamado Partido Liberal de Vladimir Jirinovski. Os neoliberais pró-ocidentais à la Navalny, que os há também, são basicamente uma insignificância neste panorama. Pois bem, nesta Duma, onde o partido de Putin tem maioria absoluta, foram em fevereiro debatidas duas teses quanto ao possível reconhecimento oficial das repúblicas do Donbass: a primeira, mais ‘suave’, fazia o assunto correr primeiro pelo governo; a segunda, mais ‘dura’, deixava a Putin margem para o reconhecimento oficial imediato das repúblicas secessionistas. O partido de Putin era mais ‘suave’ na linha sugerida, o PC mais ‘duro’ e rápido na reação proposta. Pois bem, apesar da maioria da Rússia Unida, a verdade é que ganhou na Duma a ‘linha dura’; isto é, a proposta do PC russo. O que diz muito do estado de espírito geral da população russa, no contexto do qual (e muito ao contrário do que é propalado no Ocidente), Putin é, também ele, predominantemente percebido como um político ‘pomba’. Ver, quanto a isto, o artigo de Gilbert Doctorow: original.antiwar.com/gilbert_doctorow/2022/02/16/meet-the-new-proactive-russia-the-kremlin-moves-on-to-plan-b/
Décimo sexto, deve admitir-se que este grupo de questões fica, de certo modo, mapeado confrontando a posição do PC da Federação Russa com a do PC grego. Resumidamente, enquanto este último optou por uma posição de “nem-nem” (nem OTAN nem intervenção militar russa), o PC russo contrapôs que autodeterminação do povo ucraniano sim senhor, mas, desde logo, como pode essa tal autodeterminação dos ucranianos exercer-se nas condições resultantes do golpe de 2014 e da completa infestação da Ucrânia por grupos neonazistas? Primeiro terá, portanto, de vir a operação de desnazificação. E, ainda em matéria de autodeterminações, faz sentido pensar na secessão da Ucrânia não apenas das duas repúblicas do Donbass, mas em boa verdade de toda a chamada Novorrússia, aproximadamente os 2/5 sudeste do território. A Ucrânia coloca ou sugere questões sem dúvida muito mais amplas ainda, mas recorde-se aqui pelo menos, quanto a isso: a) o país tem, ainda hoje, um PIB per capita que continua a ser só metade do que era em 1991, aquando da dissolução da URSS, estando longe de completar o enorme U que foi a trajetória económica da maior parte das ex-repúblicas soviéticas; b) a esperança média de vida afundou-se drasticamente e ainda não recuperou; c) entre 5 e 10 milhões de ucranianos abandonaram o país, quer para Ocidente quer para a Rússia; d) a autoridade do estado, já muito ameaçada antes pelo domínio dos oligarcas (maioritariamente enfeudados por sua vez ao Ocidente), colapsou completamente depois do golpe de 2014. Admitamo-lo: a Ucrânia é basicamente um imenso território Mad Max, controlado por oligarcas/senhores-da-guerra e milícias nazis. O possível exercício da autodeterminação pelos 2/5 sul-orientais pode ser pensado como a operação de salvamento daquela gente e daquele território – embora, reconhecidamente, mesmo isso deixe de lado a questão da desnazificação e neutralização militar dos 3/5 centrais e norte-ocidentais.
Décimo sétimo, há antecedentes vários de intervenções militares, às quais a história portuguesa esteve aliás diretamente ligada, que podem contribuir para nos ajudar (por analogia apenas, evidentemente) a tentar compreender a presente situação. Desde logo, o caso de Goa, Damão e Diu, invadidas pela União Indiana em 1961, em aparente violação da carta da ONU, ainda antes das deliberações anticoloniais desta na década de 1960. Nessa altura Portugal levou o caso à ONU, e a cabeça da União Indiana, pode dizer-se, só foi tirada do cepo pelo veto soviético. Ainda assim, a decisão “temerária”, “agressiva” e mesmo “imperialista” de Nehru apressou uma descolonização que, feita ‘como devia ser’, nunca mais aconteceria no “Estado da Índia” – e desencadeou mesmo um movimento mais amplo, que se prolongou a seguir para o início das sublevações anticoloniais nos atuais PALOPs. Vale a pena perguntar: alguém discute ainda, hoje em dia, a legalidade da decisão indiana? Alguém se queixa do “novo Hitler” que, segundo a propaganda portuguesa de então, seria Nehru? Salazar, recorde-se igualmente, ordenou então ‘à lá Batalhão Azov’, um combate até ao último homem – mas não foi obedecido, o comandante militar português de então escolhendo uma via ‘à lá von Paulus’, que evidentemente salvou muitas vidas portuguesas mas lhe valeu, na altura, uma exautorarão e uma humilhação públicas ‘à lá Dreyfus’… Toda a oposição portuguesa de então (da semi-oposição ou quase-oposição católica até aos republicanos, Cunha Leal e António Sérgio incluídos), com a óbvia exceção do ilegal PCP, foi na altura beijar publicamente o traseiro de Salazar, protestando sinceramente patriotismo e lealdade. É obviamente impossível não pensar nisto, a poucos dias do “Big Show Zelensky” na AR portuguesa — e também, acrescente-se, a poucos dias do 48º aniversário do 25 de Abril…
Décimo oitavo, a história portuguesa pode e deve, no momento presente, ser trazida à colação não só por causa do assunto Estado da Índia (deliberação oficial de lutar até ao último homem), mas também pelo caso de Timor-Leste, onde se assistiu, em finais de 1975, a uma reação portuguesa diametralmente oposta à de 1961, mas então face à invasão indonésia (que recebera prévia ‘luz verde’ de Henry Kissinger). Recorde-se que Portugal, neste outro caso, não somente se comportou com suprema mansidão aquando da invasão, como meteu completamente ‘a viola no saco’ quanto ao assunto em todas as instâncias internacionais, só se interessando de novo pelo tema de Timor-Leste quando muito pressionado pela opinião pública internacional, já nos anos de 1990. Estas duas reações ‘simétricas’ de Portugal devem ainda ser complementadas pela consideração da atitude portuguesa em 1999, a respeito do Kosovo, sendo então primeiro-ministro António Guterres e apoiando Portugal a intervenção da OTAN, e pelo reconhecimento subsequente do Kosovo como estado soberano. E enfim (but not the least…), pela memória da infame ‘Cimeira dos Açores’ de 2003, ligando para sempre o nome de Portugal à criminosa chacina do povo iraquiano, quer pelo nome do primeiro-ministro de então, Durão Barroso, quer pelo próprio território, assim (ai de nós) tornado tristemente célebre de forma indelével… Chamemos a tudo isso “alimentação para pensamento” – e tratemos de confrontar esses casos com a reação presente da República Portuguesa.
Décimo nono, nem todas as intervenções militares são necessariamente más, mesmo as que ocorrerem contra os interesses dos EUA – aliás, sobretudo essas. E menos ainda quando se prolonga infindavelmente a série das intervenções bélicas por parte dos próprios EUA: Jugoslávia, Somália, Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Iémen, Ucrânia… As respostas ‘simétricas’ não podem, neste panorama global, ser alvo de condenação. Não é justo nem sensato proceder assim. A intervenção russa na Síria, por exemplo, será “imperialista”? Ou é antes a resposta adequada ao apelo legítimo dum governo igualmente legítimo, dum país que pretende continuar independente? Será agressivo e condenável a Síria tentar retomar o terço nordeste do seu território, hoje ocupado pelos EUA a pretexto do combate ao ISIS, mas com o propósito descarado de roubar petróleo? E, já agora, alguém se lembrará de condenar essa agressão/ocupação militar norte-americana na AR portuguesa? Mas consideremos mesmo casos em que a intervenção militar foi contrária aos apelos dos governos então reconhecidos. Como se separou o Bangladesh, então Paquistão Oriental, do Paquistão? Graças em parte a uma intervenção militar da União Indiana. Como se libertou o Camboja do domínio dos Khmers Vermelhos? Graças a uma invasão pelas tropas do Vietname. Condenaremos estas intervenções/invasões indiana e vietnamita? Apesar de feridas de inegáveis aspetos de ilegalidade, reprovaremos estas outras “operações especiais”? Condenaremos outrossim a invasão/libertação indiana de Goa? É claro, repito, que se deve ter muito cuidado no uso historiográfico das analogias. Finalmente, “cada caso é um caso”, como se diz. Mas vale a pena, parece-me, meditar aqueles exemplos, tanto mais quanto é evidente estar o nosso mundo a mudar muito depressa, e parecendo definitivamente ultrapassadas as três décadas de ‘unipolaridade norte-americana’ imediatamente subsequentes ao final da Guerra Fria.
Vigésimo, e último. Quanto a isso, vale decerto a pena também considerar o que lucidamente escreve Dayan Jayatilleka (aqui: www.resistir.info/russia/guerra_justa.html), e antes de mais a questão fundamental que ele nos deixa: qual a Rússia que merece verdadeiramente ser recordada pelo resto-do-mundo ou pelo Sul Global com nostalgia? A Rússia Imperial pré-1917? Decerto que não. Mas outro galo cantará, certamente, se pensarmos na Rússia soviética que, depois de esperar e desesperar pela Europa (que nunca mais se lhe juntava, nem juntou alguma vez, na mítica revolução proletária dos países “mais desenvolvidos”), decidiu virar-se em vez disso para sudeste, apelando aos “escravos das colónias” e levantando com isso a chama e a bandeira da libertação do Vasto Mundo do domínio do Ocidente. A história não se repete, claro; mas, como por vezes também se acrescenta, frequentemente rima. É sobretudo adentro desse quadro global, de disputa do domínio do “West” pelo “Rest”, que em minha opinião a Rússia pode talvez ainda ‘reformatar-se’ de forma decisiva, e inquestionavelmente para melhor. E é nesse âmbito que a “Operação Z” deve pois ser julgada.
18/Abril/2022
[*] Economista.
Este artigo encontra-se em resistir.info