A democracia no país de Biden: Na Universidade de Wisconsin-Madison, a polícia imobiliza o professor Samer Alatout, que defendeu a liberdade de os estudantes protestarem contra o genocídio sionista-americano de paçestinos
Prabhat Patnaik [*]
Os atuais protestos nos campus universitários dos EUA, exigindo o “desinvestimento” em empresas ligadas à máquina militar de Israel, fazem lembrar os protestos que varreram aqueles campus no final dos anos sessenta e início dos anos setenta, exigindo o fim da guerra do Vietnã. Há, no entanto, uma grande diferença: os EUA estavam então diretamente envolvidos na guerra, ao passo que hoje não estão. Isso significava que havia um recrutamento nos EUA, enquanto hoje não há, o que torna os atuais protestos estudantis completamente isentos de qualquer sombra de interesse próprio. Do mesmo modo, o envolvimento direto dos EUA naquelas guerras e, consequentemente, a perda diária de vidas de pessoal norte-americano, revestiram os apelos no seio do establishment norte-americano para que se pusesse fim à guerra do Vietnã de uma seriedade que hoje em dia falta gravemente a todos esses apelos. O facto de os EUA não serem um combatente direto torna, portanto, os protestos dos estudantes muito mais sérios e baseados em princípios, ao passo que torna as declarações de paz do establishment muito menos sérias e baseadas em princípios.
Os estudantes, em suma, são movidos por um puro sentido de humanidade. Os seus protestos são motivados por um horror ao genocídio, ao colonialismo e à cumplicidade imperialista num regime sionista de apartheid. Eles são uma manifestação da busca da humanidade pela paz e pela fraternidade. O establishment norte-americano, por outro lado, entrega-se a um discurso duplo: ao mesmo tempo que fala de paz, faz tudo para prolongar o conflito e, ao mesmo tempo que professa a sua oposição à crueldade infligida a civis inocentes, continua a fornecer armas para infligir essa crueldade. A humanidade de um lado, o lado dos estudantes, contrasta fortemente com a chicana do outro lado. Se o primeiro é o prenúncio de uma esperança para o futuro, o segundo representa a desonestidade frenética de um imperialismo cambaleante.
Esta desonestidade manifesta-se a todos os níveis. Durante anos os países metropolitanos empenharam-se numa solução de “dois Estados” para a questão palestina, ou seja, em ter um Estado palestino ao lado do Estado de Israel. A questão não é saber se uma solução de “um Estado”, ou seja, um Estado único com o seu executivo central eleito por sufrágio universal de adultos, e dentro de cujas fronteiras os palestinos e os israelenses vivam juntos, é melhor do que uma solução de dois Estados. A questão é que a solução de dois Estados foi aceite durante muito tempo pela opinião internacional e também pelos países imperialistas. Um corolário da solução de dois Estados é que um Estado palestino deveria ser criado e reconhecido de imediato como membro de pleno direito das Nações Unidas. No entanto, sempre que se colocou a questão da admissão da Palestina como membro de pleno direito da ONU, os Estados Unidos, apesar de estarem aparentemente comprometidos com a ideia, exerceram o seu veto no Conselho de Segurança, o qual tem a autoridade final na matéria.
Foi o que aconteceu a 19 de abril. O Estado sionista de Israel não quer um Estado palestino independente pois isso poria fim ao seu projeto de colonização; e os Estados Unidos, apesar da sua postura pública, alinham com este projeto sionista sempre que as coisas se complicam. No passado dia 10 de maio, a Assembleia Geral da ONU votou por esmagadora maioria (143 a favor, 9 contra e 25 abstenções) a favor da plena adesão da Palestina e solicitou ao Conselho de Segurança que reconsiderasse o assunto. Apesar de os EUA, juntamente com alguns dos regimes de extrema-direita do mundo, como a Argentina e a Hungria, terem votado contra, outros países metropolitanos (com exceção da França, que votou a favor) abstiveram-se. Os Estados Unidos, quando a questão for novamente submetida ao Conselho de Segurança, exercerão sem dúvida o seu veto mais uma vez para frustrar não só qualquer perspectiva de paz, mas também a vontade da esmagadora maioria dos povos do mundo para resolver o problema.
A mesma desonestidade é visível na forma como o establishment americano trata o movimento estudantil. A polícia foi enviada para vários campuses para desmantelar os acampamentos montados pelos estudantes e centenas de manifestantes estudantis foram detidos, apesar de os protestos terem sido pacíficos. O recurso a métodos de força para lidar com protestos pacíficos constitui um atentado à liberdade de expressão, mas tem sido justificado por todo o establishment americano, de Donald Trump a Joe Biden e Hilary Clinton. Donald Trump falou de “multidões radicais que tomam conta dos nossos campuses universitários” e acusou Biden de ser cúmplice dessas “multidões”. Biden, por sua vez, que apoiou abertamente a ação da polícia contra os estudantes, como na Universidade de Columbia, em conformidade com a opinião “liberal” em geral, acusou os estudantes que protestavam de “antissemitismo”, uma acusação bizarra dado o facto de os estudantes que protestavam incluírem um grande número de estudantes judeus! Hilary Clinton acusou os estudantes de serem ignorantes da história do Médio Oriente, como se o conhecimento de tal história pudesse justificar a perpetração de um genocídio!
O movimento contra a guerra do Vietname chegou a ter o apoio de importantes figuras públicas americanas, como Eugene McCarthy e Robert Kennedy, mas isso também se deveu ao envolvimento direto dos Estados Unidos na guerra. No caso atual, toda a falange de políticos do establishment se alinhou a favor da guerra e contra os estudantes.
Protestos estudantis semelhantes eclodiram noutros locais do mundo metropolitano e foram utilizadas táticas de braço de ferro semelhantes em muitos campuses universitários. Mas também se registaram casos de oposição aos métodos de braço de ferro. Na Grã-Bretanha, por exemplo, o conselho do Primeiro-Ministro Rishi Sunak aos vice-reitores das universidades que assistiram a tais protestos, no sentido de utilizarem a máquina do Estado para os dispersar, não foi bem aceite por todos os vice-reitores. Alguns recusaram-se mesmo a participar numa reunião por ele convocada. Mas na América não houve essa oposição; os responsáveis das universidades que procuraram fazer valer a sua própria opinião sobre a forma de lidar com os protestos foram obrigados a demitir-se.
Foi esta supressão do pensamento nos campus universitários que levou à acusação de um novo McCarthismo que está a ser desencadeado nos EUA. Tanto nessa altura como agora, é um grupo de legisladores de direita que está na linha de frente da tentativa de suprimir o pensamento independente nos campus universitários. Mas coloca-se a questão: na década de 1950, o contexto do McCarthismo era proporcionado pela Guerra Fria e pelo medo do comunismo; o que é que, no contexto atual, está a impulsionar este novo McCarthismo?
Não há dúvida de que o novo McCarthismo está ligado à ascensão da direita e à ascendência do neofascismo no mundo capitalista, no contexto da crise do capitalismo neoliberal. O que a ascensão do neofascismo tem feito não é apenas empurrar para o centro do palco elementos fascistas que até então ocupavam a franja política, mas também permitir que tais elementos hegemonizassem as forças políticas ditas “liberais”, para criar um consenso de direita mais ou menos unificado que derruba todos os esforços de um renascimento da esquerda.
É digno de nota que, quando Jeremy Corbyn foi eleito líder do Partido Trabalhista na Grã-Bretanha e lançou um desafio contra o establishment que ameaçava “sair do controle”, foi montada uma conspiração contra ele, apelidando-o de “antissemita” (devido à sua simpatia pela causa palestina) e até mesmo removendo-o do próprio Partido Trabalhista.
Estudantes e professores universitários continuam a constituir, na metrópole, uma fonte de pensamento independente e, portanto, uma força moral que ameaça a consolidação da direita. O controlo das universidades torna-se assim um ponto importante da agenda desta consolidação da direita. A independência do pensamento tem de ser destruída, qualquer vestígio de humanidade tem de ser destruído, se está consolidação de direita quiser levar a sua avante. O que estamos a ver hoje nos Estados Unidos é esta tentativa descarada de destruir a independência de pensamento.
Protestar contra o genocídio é apelidado de antissemitismo. Nem os estudantes nem Jeremy Corbyn eram antissemitas; na verdade, é entre os seus detratores que se podem encontrar elementos que tiveram ligações com movimentos antissemitas no país e no estrangeiro (como o movimento iniciado por Stepan Bandera, da Ucrânia, que havia colaborado com os invasores nazis). Mas a “utilização do antissemitismo como arma” é útil para a consolidação da direita nos países metropolitanos.
O que está a acontecer nos campus universitários dos EUA é portanto de grande significado. A luta entre a humanidade e a trapaça que hoje se trava nos campi é um presságio das lutas de classes decisivas dos tempos que estão para vir.
20/Maio/2024
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
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