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quinta-feira, 26 dezembro, 2024

TODO PODER TEM TEMPO DE VALIDADE

  Pedro Augusto Pinho*
As grandes mudanças na História dificilmente foram percebidas pelos seus contemporâneos. Não se tratou de capacitação, desinteresse ou qualquer motivo individualizado. Ocorreu, como sempre acontece, pela desinformação daqueles que viviam o estertor de seu poder, quer ocultando informações, quer desfocando objetivos, quer pura e simplesmente mentindo.
Não nos percamos nos desvãos da história. Fiquemos no século que recém terminou.
No século XIX, o Reino Unido foi líder e centro da economia mundial, sendo as finanças o poder que, sem controvérsias, desde o século XVII, conduzia o país. Porém, na passagem para o século XX, outra força despontava, a industrial. E o     Reino Unido, acomodado no seu modelo financeiro-comercial, perdia as rédeas, o comando. A I Grande Guerra foi um sinal bastante evidente da mudança de tempo, mas as batalhas ideológicas e as guerras e crises permitiram desfigurar o fim do poder financeiro e a emergência do poder industrial.
Recordemos. A Revolta dos Boxers, na China, de 1899 a 1901. A Revolução Mexicana, em 1911. A própria Primeira Grande Guerra (PGG), 1914 a 1918. A entrada da Itália nesta Primeira Guerra, 1915. A Revolução Russa e saída da Rússia da PGG, 1917. Marcha sobre Roma, na Itália, marcando a ascensão do fascismo no país, em 1922. Crise da Bolsa de Valores de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América (EUA), em 1929. Hitler se tornando chanceler da Alemanha. Início da ascensão do Nazismo, em 1933. O início da Guerra Civil Espanhola, em 1936. Quando, em 1939, começa a II Grande Guerra, o mundo já era muito diferente de 1914 e do início do século. Antes da cibernética e do poder termonuclear, o mundo já mostrava a crise do domínio fundiário, financeiro, comercial, e colonizador político-administrativo, que o capitalismo inglês representava. O poder que surge tem duas vertentes, decorrentes da distribuição dos ganhos: o capitalista, liderado pelos EUA, concentrador de renda, e o socialista, conduzido pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que reparte os ganhos pela população.
O período que vai de 1945 a 1990 pode ser lido como a batalha das finanças pela reconquista do poder.
O PODER INDUSTRIAL ESTADUNIDENSE
O poder estadunidense era e é um poder belicoso e corrupto.
Sir Walter Raleigh (1552-1618) afirmou, coerente com sua certeza aristocrata, de espião e corsário da “rainha virgem”: “quem domina o comércio mundial, domina o próprio mundo”. Ele via, com olhar colonial, o mundo de rivalidade dos impérios inglês, espanhol, holandês e francês.
A política colonial inglesa, em relação aos povos que originalmente habitavam as terras colonizadas, sempre foi genocida (Herbert Aptheker, “A history of the american people – The colonial era”, International Publishers, NY, 1959). Escreve Aptheker: “durante as dezesseis décadas da história colonial estadunidense, a guerra e não a paz, era comum”. Obviamente a guerra contra a(s) potência(s) colonizadora(s), (lembrar que Espanha, França, Holanda, além da Inglaterra ocupavam terras do futuro EUA) mas, igualmente, “as guerras de expropriação e extermínio desfechadas contra vários povos nativos”.
Ao lado das guerras, a compra, o comércio, como lhes ensinaram os ingleses, que sempre teve como aliado o suborno, foi ampliando o território dos futuros EUA. A Inglaterra pelo século XVII, para manter a colônia americana dependente, reprimiu a emissão de moeda, limitou a indústria, regulou o comércio, monopolizou o transporte internacional. Também buscou impedir a marcha de colonos para oeste.
Em relação à corrupção, o historiador George Edwin Mowry, em “The Era of Theodore Roosevelt, 1900-1912” (Harper & Brothers, NY, 1958), apresenta um mapa dos EUA, com título “A Corrupção Política nos Estados Unidos no Início do Século XX”, com três legendas para os símbolos indicadores dos estados: sem corrupção, onde a corrupção é parcial e onde a corrupção é muito profunda. Para estes últimos encontram-se 28 estados, para a corrupção parcial, 13, e sem corrupção somente seis. Os estados de Oklahoma, Havaí e Alaska não estavam incluídos, pois foram incorporados no século XX.
Retornemos à passagem do poder das finanças, capitaneados pelo Reino Unido, para o poder industrial, sob o domínio dos EUA, numa parte do mundo, e da URSS, em outra.
As finanças fizeram várias alianças para reconquista do poder e os EUA, na sua tradição bélica e corruptora, envolveram-se em guerras e fomentaram crises. Assim correu a história de 1945 a 1991.
O NOVO PODER DE NOVA FINANÇA
Na década de 1980, as finanças conseguiram um grande feito: as desregulações financeiras graças aos governos nas duas maiores praças do ocidente: Londres (Margaret Thatcher, no Reino Unido) e Nova Iorque (Ronald Reagan, nos EUA). Logo em seguida é expedido o novo catálogo político-econômico para o mundo: o decálogo denominado “Consenso de Washington” (novembro/1989) e ocorre o fim da URSS (dezembro de 1991).
As finanças pareciam ter eliminado os opositores e reassumiam o poder mundial.
Assim pensaram e assim agiram, provocando uma sequência de nove crises, entre 1987 e 2002, o novo poder financeiro. Destas crises resultaram dois problemas: primeiro um imenso volume de papeis, significativos de investimentos, sem lastro, basicamente derivativos; mais perigoso ainda foram as incorporações, no circuito financeiro, de trilhões, centenas de trilhões de dólares estadunidenses de atividades criminosas, principalmente do tráfico de drogas e de contrabandos de armas, pessoas e órgãos humanos. Este de dinheiro sendo à vista, “cash”, e não alocados em propriedades territoriais, como fortemente ocorria com as finanças inglesas, multiplicava seu poder corruptor.
Um misto de valores sem lastro a sustenta-los e de disputa interna pelo poder no mundo financeiro fizeram eclodir a “crise” de 2008-2010. Esta marca o período de transição, que vivemos atualmente, do mundo unipolar para o multipolar.
Análise esplêndida, como são as do jornalista Pepe Escobar, em “The Cradle” (“Como um míssil em Cabul conecta-se a uma Speaker ‘alto-falante’ em Taipé”, Beirute, 03/08/2022), narra a espalhafatosa, provocante e inócua viagem da presidenta da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi ao extremo oriente. Transcrevo, na tradução comentada de Vila Mandinga:
“Sun Tzu apresenta seu modelo ‘seis lâminas’. Na sequência da escapadela da presidenta Pelosi, da Câmara de Deputados dos EUA, até Taiwan, os danos colaterais multiplicar-se-ão como as lâminas de um míssil R9-X. As primeiras sanções também estão em vigor, contra dois fundos taiwaneses. A exportação de “sable” para Taiwan é proibida; “sable” é commodity essencial para a indústria eletrônica – de modo que a medida fará subir o ponteiro aferidor de dor nos setores de alta tecnologia da economia global. A CATL chinesa, maior fabricante mundial de células de combustível e baterias de íons de lítio, está adiando indefinidamente a construção de uma enorme fábrica de cinco bilhões de dólares e 10.000 funcionários que fabricaria baterias para veículos elétricos em toda a América do Norte, fornecendo para Tesla e Ford, dentre outros. Assim sendo, as manobras à Sun Tzu que se seguirão virão concentradas essencialmente: num bloqueio econômico progressivo a Taiwan; na imposição de uma zona parcial de interdição de voo; em severas restrições ao tráfego marítimo; na guerra cibernética; e no Grande Prêmio: fazer gemer a economia dos EUA”.
AS CONTRADIÇÕES DO MUNDO UNIPOLAR
A globalização não passou de um slogan; era difícil e continuou impossível. A tentativa europeia levou a Europa Ocidental a ser um satélite da Alemanha e, na crise, à possível fragmentação, com enorme custo para impedi-la. Abrir mão da moeda é abrir mão da soberania. Os europeus, com maior ou menor consciência, sentiram no dia a dia, na vida cotidiana esta realidade; os partidos nacionais desapareceram, partidos de interesses pequenos, sem visão do país passaram a disputar os governos. E a se sujeitarem aos ditames das finanças, tradicionais e marginais.
A reeleição de Emmanuel Macron, empregado dos Rothschild, a duradoura presença nas ruas de toda França dos “coletes amarelos”, a contínua progressão eleitoral de Marine Le Pen, a participação do Estado Nacional na luta contra o “terrorismo islâmico” são a demonstração de que a França de Charles de Gaulle não mais existe. Este antigo e poderoso império é hoje uma colônia.
A economia da permanente e acelerada concentração de renda excluiu toda veleidade competitiva, com que o capitalismo sempre se apresentou. Quem são os principais, maiores acionistas da Johnson & Johnson? Os mesmos da Pfizer, da Novartis, da Merck, Roche, Sanofi, Bayer, GlaxoSmithKline …….. , ou seja, os grandes gestores de ativos, com capitais em paraísos fiscais: BlackRock, Vanguard, State Street (SSgA) e, eventualmente, um gestor menor e especializado no segmento ou no país, como Dodge & Cox ou Loomis, Sayles & Co.
Porém quem pode aplicar sanções? quem pode enviar forças militares? quem pode ir à Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU)? Apenas os Estados Nacionais. Então os capitais apátridas, cuja origem se esconde, precisam dominar os Estados Nacionais, sejam eles pequenos e fracos como alguns africanos e latino-americanos, sejam antigos impérios como a França e os EUA.
E como se sente o francês, o estadunidense, quando se vê com o mesmo poder efetivo, no cenário internacional, de um maliano ou um salvadorenho? Ambos subordinados ao capital financeiro apátrida?
Na França cresce a direita nacionalista, nos EUA surge um Trump, em El Salvador, o partido Novas Ideias (NI), derruba a tradicional rivalidade entre a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) e a direitista Aliança Nacional Republicana (Arena), como o outrora poderoso Partido Socialista (PS) foi riscado do mapa político francês. Em El Salvador emerge o jovem, 39 anos, Nayib Bukele, com um discurso que lembra o do deposto Fernando Collor, do Brasil. No Mali, ex-colônia francesa, a crise de mais de uma década, onde etnias e religiões se misturam, lança este país da área do Sahel, ao sul do deserto de Sahara, em permanente miséria.
Tudo sob o manto neoliberal, da liberdade e da competitividade. Empobrecendo e ridicularizando os EUA e políticos estadunidenses.
E NOSSO BRASIL, BRASILEIRO?
A vitória das finanças chega no Brasil com a denominada “redemocratização”. Nos 21 anos, de 1964 a 1985, que o Brasil teve governos militares, escolhidos por seus pares, o brasileiro não participou das decisões políticas. Para preservar a “democracia”, os militares deixaram por quase três décadas os brasileiros sem eleger Presidente, e com restrições para escolher Governador, Prefeito de Capitais e até receberam o “senador biônico”.  Mas os governos militares apenas aguçaram a contradição estabelecida com a Revolução de 1930: nacionalistas (getulistas), de um lado, e, de outro, entreguistas, colonizados (antigetulistas).
Getúlio Vargas foi a maior figura da política brasileira. Ele foi o único a alterar a estrutura do Estado Nacional, voltando-a para as necessidades do Brasil, foi também quem colocou o trabalho como direito e libertação do homem, ao elevá-lo para discutir, em pé de igualdade, com o capital, e criou a ideologia política legitimamente brasileira do nacional-trabalhismo. Os militares que aplicaram o golpe de 1964 eram chefiados pelo antigetulista Humberto Castelo Branco, embora sendo esta a força majoritária no seu governo, ele não podia dispensar o apoio dos getulistas. Na Presidência e na cúpula governamental até 1985, estiveram getulistas e antigetulistas, que, mais do que outra qualquer base político-ideológica, separou o poder brasileiro no que se convencionou chamar Era Vargas.
O último presidente do período militar foi o antivarguista histórico João Baptista de Oliveira Figueiredo. Esta inclinação a sujeição aos interesses estrangeiros muito facilitou a entrada do neoliberalismo e todas suas consequências no processo de retorno dos civis ao governo. Isto também explica porque o primeiro presidente eleito após os governos militares teve como seu o programa das finanças apátridas.
A ânsia de Fernando Collor e de seus companheiros de governo, como o historiador e jornalista José Augusto Ribeiro escreve em “O Brizola Desconhecido” (Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini, DF, RJ, 2022), era pelas propinas – Maílson da Nóbrega relata a José Sarney: “não eram informações para a montagem de um plano de governo, presidente. Eram informações para montagem de uma quadrilha” – os emissários de Collor só queriam saber das concorrências, licitações e contratos a vencer ou renovar com o poder público.
Nenhum governo, de 1990 a 2022, enfrentou o poder financeiro. O país rico em minerais, energia, terras, águas, insolação, como o Brasil, que poderia emergir como potência no século XXI, se humilha como colônia de capitais apátridas, em boa parte de origem criminosa.
Neste momento em que o mundo unipolar dá seus últimos suspiros e surge o mundo multipolar, o Brasil teria posição de destaque se houvesse elite nacionalista, políticos desejosos de projetos para a soberania nacional, para a construção da cidadania, para o integral desenvolvimento do País.
Mas os governos querem abrir mão de governar o Brasil, querem entrega-lo para o “mercado”, querem, estupidamente, combater o “comunismo”, como os histéricos protestantes de Salem (Massachusetts) do século XVII assassinavam mulheres pelo crime de bruxaria. É o retrocesso e a corrupção do neoliberalismo para quem esta “redemocratização”, com medo do getulismo de Leonel Brizola, abriu as portas do País.
*Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.

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