O ano de 2023 pode ser definido para a posteridade como o da Parceria Estratégica Rússia-China. Essa maravilha de maravilhas poderia facilmente balançar sob um sulco de – quem mais – Stevie Wonder: “Aqui estou eu bebé/ assinado, selado, entregue, eu sou seu”.
Nos primeiros 11 meses de 2023, o comércio entre Rússia e China ultrapassou US$200 bilhões; eles não esperavam chegar a isso antes de 2024.
Agora, com certeza, essa é uma parceria a caminhar num sulco. Mais uma vez assinado, selado e entregue durante a visita de uma grande delegação a Pequim na semana passada, liderada pelo primeiro-ministro Mikhail Mishustin, que se reuniu com o presidente chinês, Xi Jinping, e revisitou e atualizou todo o espectro da parceria abrangente/cooperação estratégica, completa com uma série de novos e importantes projetos conjuntos.
Acrescente-se a isso o detalhamento cuidadosamente estruturado escrito pelo chefe do SVR, Sergey Naryshkin, definindo 2024 como “o ano do despertar geopolítico”, e chegando à formulação-chave após a humilhação cósmica da OTAN nas estepes de Donbass: “Em 2024, o mundo árabe continuará sendo o principal espaço na luta pelo estabelecimento de uma nova ordem”.
Confrontado com um ajuste geopolítico tão detalhado, não é de admirar que a reação imperial tenha sido de apoplexia – revelada epidermicamente em longas e tortuosas “análises” tentando explicar por que o presidente Putin acabou po ser o “vencedor geopolítico” de 2023, seduzindo vastas áreas do mundo árabe e do Sul Global, solidificando os BRICS lado a lado com a China e impulsionando a UE ainda mais para um buraco negro feito por si próprio – e pelo Hegemon.
Putin até se permitiu, meio em tom de brincadeira, oferecer apoio russo à potencial “reanexação” de regiões fronteiriças do 404 outrora anexadas por Stalin, acabando por ser devolvida aos antigos proprietários, Polónia, Hungria e Roménia. Ele acrescentou que tem 100% de certeza de que é isso que os moradores dessas fronteiras ainda ucranianas desejam.
Se isso acontecesse, teríamos a Transcarpátia de volta à Hungria; a Galiza e Volyn regressariam à Polônia; e Bukovina retornaria à Romênia. Já consegue sentir a casa a abalar em Budapeste, Varsóvia e Bucareste?
Depois, há a possibilidade de o Hegemon ordenar aos aprendizes de punks da OTAN que fustiguem petroleiros russos no Mar Báltico e “isolem” São Petersburgo. Escusado será dizer que a resposta russa seria apenas tomar os centros de Comando e Controlo (hacking pode ser suficiente); queimar a eletrônica em todo o espectro; e bloquear a entrada do Báltico, executando um exercício de “Liberdade de Navegação” para que todos se familiarizem com a nova rotina.
Aquela simbiose China-Rússia no Extremo Oriente
Uma das características mais impressionantes da parceria Rússia-China expandida é o que está a ser planeado para a província chinesa de Heilongjiang, no nordeste do país.
A ideia é transformá-la num megacentro de desenvolvimento econômico, científico e de defesa nacional, centrado na capital provincial Harbin, com uma nova e extensa Zona Econômica Especial (ZEE).
O fator chave é que este mega-hub também coordenaria o desenvolvimento do imenso Extremo Oriente russo. Esta questão foi discutida em pormenor no Fórum Económico do Leste, em Vladivostok, em Setembro passado.
Num arranjo único e surpreendente, os chineses podem ser autorizados a administrar latitudes selecionadas do Extremo Oriente russo durante os próximos 100 anos.
Como detalhou o analista Thomas Polin, de Hong Kong, Pequim está orçando não menos de 10 bilhões de yuans (US$ 1,4 bilhões) para a coisa toda. Metade seria absorvida por Harbin. O projeto chegará ao Congresso Nacional Popular em março próximo e deve ser aprovado. Já foi aprovado pela câmara baixa da Duma, em Moscou.
As ramificações são alucinantes. Teríamos Harbin elevada ao status de cidade administrada diretamente, assim como Pequim, Xangai, Tianjin e Chongqing. E, acima de tudo, um Comitê de Gestão Sino-Russo será estabelecido em Harbin para supervisionar todo o projeto.
As principais universidades chinesas – incluindo a Universidade de Pequim – transfeririam seus campi principais para Harbin. As universidades de Defesa Nacional e Tecnologia de Defesa Nacional se fundiriam com a Harbin Engineering University para formar uma nova entidade focada nas indústrias de defesa. Institutos de pesquisa de alta tecnologia e empresas em Pequim, Xangai e Shenzhen também se mudariam para Harbin.
O Banco Popular da China estabeleceria sua sede para o norte da China em Harbin, completada por bolsas ações e futuros de commodities.
Os residentes de Heilongjiang seriam autorizados a viajar de um lado para o outro para regiões designadas do Extremo Oriente russo sem visto. A nova ZEE de Heilongjiang teria sua própria área alfandegária e sem impostos de importação.
Esse é o mesmo espírito que impulsiona os corredores de conectividade BRI e o Corredor Internacional de Transporte Norte Sul (INSTC). A lógica subjacente é uma integração mais ampla da Eurásia.
Na recente reunião do Astana Club, no Cazaquistão, o investigador Damjan Krnjevic-Miskovic, diretor de investigação política da Universidade ADA em Baku, fez uma excelente apresentação sobre corredores de conectividade.
Ele mencionou, por exemplo, à reunião do C5+1 (cinco “estões” da Ásia Central mais a China) há três meses em Dushanbe, acompanhada pelo presidente do Azerbaijão, Aliyev: o que se traduz como integração Ásia Central-Cáucaso.
Miskovic está prestando a devida atenção a tudo o que evolui no que ele define, corretamente, como “a região da Rota da Seda” – interligando o Euro-Atlântico com a Ásia-Pacífico e interligando a Ásia Ocidental, o Sul da Ásia e a Eurásia mais ampla.
Estrategicamente, é claro, essa é a “dobradiça geopolítica onde a NATO se encontra com a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e onde a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) se conecta com a Turquia e o território da UE”. Em termos práticos, Rússia-China sabem exatamente o que precisa ser feito para impulsionar a conectividade econômica e as “relações sinérgicas” em todo esse vasto espectro.
A guerra dos Corredores Econômicos aquece
A fragmentação da economia global já está a polarizar a expansão dos BRICS 10 (a partir de 1º de janeiro, sob a presidência russa, e sem flertar com a dolarização Argentina) e com o G7 em declínio.
O vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Andrey Rudenko – um especialista em assuntos asiáticos –, em entrevista à TASS, reafirmou mais uma vez que o principal objetivo da Parceria da Grande Eurásia (política oficial russa) é conectar a União Econômica da Eurásia (UEEA) com a BRI.
À medida que a Rússia desenvolve um equilíbrio cuidadosamente calibrado entre a China e a Índia, o mesmo impulso se aplica ao desenvolvimento do INSTC, onde Rússia-Irão-Índia são os principais parceiros, e o Azerbaijão também deve se tornar um ator crucial.
Acrescente-se a isso a melhoria dos laços russos com a Coreia do Norte, Mongólia, Paquistão (membro da BRI e da SCO) e da ASEAN (exceto a Cingapura ocidentalizada).
A BRI, quando se trata dos pormenores mais minuciosos, está em alta. Acabei de ir a Moscou, Astana e Almaty durante três semanas e foi possível confirmar com várias fontes que os comboios em todos os corredores de conectividade estão lotados; via Transiberiana; via Astana até Minsk; e via Almaty para o Uzbequistão.
A gerente de programa do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia, Yulia Melnikova, acrescenta que “Moscovo pode e deve se integrar mais ativamente nas operações de trânsito ao longo da rota China-Mongólia-Rússia” e acelerar a harmonização de padrões entre a UEEA e a China. Sem falar em investir ainda mais na cooperação Rússia-China no Ártico.
O presidente Putin, numa reunião da Russian Railways, revelou um ambicioso e maciço plano de expansão de infraestrutura de 10 anos que abrange novas ferrovias e melhor conectividade com a Ásia – do Pacífico ao Ártico.
A economia russa definitivamente se voltou para a Ásia, responsável por 70% do volume de comércio em meio à demência das sanções ocidentais.
Portanto, o que está no cardápio à frente é tudo, desde a modernização da Transiberiana e o estabelecimento de um importante centro logístico nos Urais e na Sibéria até a melhoria da infraestrutura portuária nos mares Azov, Black e Caspian e o trânsito de carga INSTC mais rápido entre Murmansk e Mumbai.
Putin, mais uma vez, quase como uma reflexão tardia, observou recentemente que o comércio através do Canal de Suez já não pode mais ser considerado eficaz, em comparação com a Rota Marítima do Norte da Rússia. Com um movimento geopolítico único e contundente, o Ansarullah do Iémen tornou-o explícito – para todos verem.
O desenvolvimento russo da Rota do Mar do Norte acontece em total sinergia com o esforço chinês para desenvolver a parte ártica da BRI. Na frente petrolífera, os embarques russos para a China através de sua costa ártica levam apenas 35 dias: 10 dias a menos do que via Suez.
Danila Krylov, pesquisadora do Departamento do Médio Oriente e Ásia Pós-Soviética do Instituto de Informação Científica em Ciências Sociais da Academia Russa de Ciências, apresenta uma visão direta:
“Vejo o fato de os americanos estarem a envolver-se no Iêmen como parte de um grande jogo [cenário]; há mais do que apenas um desejo de punir os houthis ou o Irão, pois é mais provável que seja impulsionado por um desejo de impedir a monopolização do mercado e dificultar as entregas de exportações chinesas para a Europa. Os americanos precisam de um Canal de Suez operacional e de um corredor entre a Índia e a Europa, ao passo que os chineses não querem porque são dois concorrentes diretos”.
Não é que os chineses não queiram: com a Rota do Mar do Norte em funcionamento, eles não precisam dela.
Em desespero e privados de opções, as galinhas sem cabeça vitimadas na Guerra dos Corredores Econômicos – os vassalos da UE do Hegemon – recorrem à deformação da cartilha estratégica do Siga o Dinheiro.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros definiu o congelamento de ativos russos – não só privados, mas também estatais – pela UE como puro roubo. Agora, o ministro das Finanças russo, Anton Siluanov, está a deixar muito claro que Moscou reagirá simetricamente ao possível uso do rendimento desses ativos russos congelados.
Parafraseando Lavrov: você confisca, nós confiscamos. Todos nós confiscamos.
A repercussão será cataclísmica – para o Hegemon. Nenhuma nação do Sul Global, fora da OTAN, será “encorajada” a estacionar no Ocidente suas reservas em moeda estrangeira. Isso pode levar, num piscar de olhos, a que todo o Sul Global abandone o sistema financeiro internacional liderado pelos EUA e se junte a uma alternativa liderada pela Rússia-China.
A parceria estratégica Rússia-China já está a desafiar diretamente a “ordem internacional baseada em regras” em todas as frentes – melhorando suas esferas históricas de influência enquanto desenvolve ativamente vastos corredores de conectividade interconectados contornando a dita “ordem”. Isso previne, tanto quanto possível, uma guerra quente com o Hegemon.
Ou, para colocar em termos da Rota da Seda: enquanto os cães de guerra ladram, mentem e roubam, a caravana Rússia-China passa.
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