A Constituição de 1988 nos brindava com substanciais avanços: a laicidade do Estado; os direitos de mulheres, negros e indígenas; a reforma agrária; a vocação para a cultura de paz do povo brasileiro; a liberdade religiosa e de opinião.
por Antonio da Silva Pinto*
Le Monde Diplomatique
A nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, o exílio, o cemitério.”
Há 28 anos, Ulisses Guimarães, do PMDB, promulgava a nova Constituição brasileira com o discurso acima. Ele próprio e a grande mídia a denominavam Constituinte Cidadã. Adjetivação justa, visto que a Assembleia Nacional Constituinte dedicara grande parte de sua tarefa a um objetivo prioritário: construir um Brasil com vocação para a garantia dos direitos individuais e coletivos. Nada mais natural, pois o Brasil se despedia de seus anos mais obscuros, precedido por uma história de raros momentos de democracia.
Particularmente, embalado pelo vigor da juventude e pela sede de justiça, eu a considerava conservadora. Os que de mim divergiam a consideravam a Constituição possível, e tinham razão. A Constituição de 1988 nos brindava com substanciais avanços: a laicidade do Estado; os direitos de mulheres, negros e indígenas; a reforma agrária; a vocação para a cultura de paz do povo brasileiro; a liberdade religiosa e de opinião.
Quero aqui destacar a forte sinalização que a Carta Magna fez em relação à busca da dignidade de 50% da população: a negra. Em seu artigo 5º, inciso XLII, consta que “a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. E um de seus momentos mais magnificentes: o artigo 68, das disposições constitucionais transitórias, determina a regularização territorial das comunidades quilombolas e protege suas culturas.
Nossa Constituição ofertou as bases de um novo Brasil e iniciou a prestação de contas com seu passado escravagista. Quatrocentos anos de construção baseados no trabalho escravo ainda deixavam suas cicatrizes. A nova Constituição era o alicerce necessário para que o movimento social negro se rearticulasse em torno da busca da reparação dos efeitos danosos históricos dos quatro séculos de escravidão.
Ao contrário dos Estados Unidos, que, ao final da guerra civil, em 1865, instituiu a curta política dos 40 acres e uma mula – instrumental necessário para a inserção dos negros na sociedade norte-americana –, por aqui os negros saíram com uma mão na frente e outra atrás.
Em 1995, as várias entidades do movimento social negro realizaram a Marcha Zumbi dos Palmares e reuniram 30 mil pessoas em Brasília, chamando atenção para o descaso com o qual homens e mulheres negros são tratados pelo Estado brasileiro. Colocavam em xeque o mito da democracia racial brasileira, segundo o qual os casos de racismo no Brasil eram circunscritos a raros e pequenos episódios. Por essa corrente de pensamento, o Brasil era um paraíso racial, com negros e brancos coexistindo em quase perfeita harmonia.
A coordenação da Marcha foi recebida pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que reconheceu o racismo no país e ordenou a formação de um grupo de trabalho com participação da sociedade civil para a criação de ações de combate ao chamado racismo institucional. Uma das principais ações foi o estudo “Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90”, coordenado pelo professor Ricardo Henriques.
Esse estudo foi uma dinamite no mito da democracia racial, apresentando um profundo e inédito diagnóstico da população negra brasileira e preparando as bases para a ação dos governos que sucederam ao de FHC. Diagnóstico: o racismo no Brasil é profundo e deve ser atacado pelos mecanismos de Estado; as políticas de cunho universalistas eram insuficientes para seu enfrentamento. Era necessário foco: ações afirmativas.
O governo brasileiro institui um instrumento eficaz para, a médio prazo, coordenar as políticas de enfrentamento. Assim nasceu a Seppir – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, com status de ministério, não por vaidade, mas por fundamental necessidade de transversalizar tais políticas por todo o conjunto de políticas públicas, sem o qual sua eficácia estaria comprometida.
Quinze anos depois, os resultados, embora pequenos, já são, pela primeira vez na história, visíveis: política de titulação das comunidades quilombolas, prevista na Constituição Cidadã; aprovação do Estatuto da Igualdade Racial; inserção da contribuição dos africanos e seus descendentes na educação brasileira por meio da Lei n. 10.639; significativo aumento da presença dos negros na universidade; elevação na presença dos negros em especial nos concursos públicos, entre outros.
O acesso da população negra ao ensino superior cresceu 232% na comparação dos anos 2000 e 2010, segundo o infográfico Retrato dos Negros no Brasil, feito pela Rede Angola. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o percentual de negros no ensino superior saltou de 10,2% em 2001 para 35,8% em 2011.
Após 28 anos do discurso histórico de Ulisses Guimarães, o Brasil esboçava nova cara. Mas, ironicamente, o mesmo PMDB de Ulisses, que continua a ser o maior partido no Congresso, comandou a maior traição já feita à mesma Constituição e ao Brasil que ajudou a edificar. O desmonte da Seppir, assim como das secretarias dos Direitos Humanos e das Mulheres, acompanhado da promessa de desmonte do SUS e a tentativa de desmonte do Ministério da Cultura e das políticas sociais de emergência, como o Bolsa Família, são inequívocos sinais do ataque à Constituição de 1988 e seus princípios.
A enorme cortina de fumaça, que é o pretexto de combate à corrupção, esconde do povo brasileiro a verdadeira face do momento: desregulamentar direitos consagrados na Constituição. A mesma Constituição que formulou as bases da tão necessária transparência e independência do Ministério Público e os instrumentos para o efetivo combate à corrupção.
Vivemos um momento em que o importante não é a defesa de partidos políticos, embora também sejam necessários à democracia. Precisamos unir forças para a defesa dos direitos do povo brasileiro circunscritos em nossa Constituição. É hora da união dos de boa-fé, não importa a coloração partidária, para a defesa do estado de direito, da democracia e da Constituição Cidadã contra o golpe daqueles de má-fé.
*Antonio da Silva Pinto é administrador, ex-secretário de Planejmento da Seppir, ex-secretário municipal de Igualdade Racial (SP) e diretor de responsabilidade social da SPTuris
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