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sábado, 12 outubro, 2024

Responsáveis por “voos da morte” na ditadura argentina pegam prisão perpétua

Argentinos celebram a sentença de prisão perpétua para repressores. VICTOR R. CAIVANO AP

Maior julgamento da história do país sobre crimes contra 789 vítimas terminou nesta quarta, 30 de novembro

Carlos E. Cué/ El País

Buenos Aires

A Justiça argentina condenou pela primeira vez e com várias sentenças de prisão perpétua os responsáveis pelos “voos da morte”, o sistema de extermínio dos presos políticos durante a ditadura do país que acabou com a vida de 4.000 pessoas, lançadas ao mar desde aviões militares após serem drogadas para adormecer. A sentença encerra o maior julgamento da história do país, com 54 indiciados por crimes cometidos contra 789 vítimas na Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), o mais conhecido centro da repressão argentina.

Os juízes condenaram ao ex-capitão Alfredo Astiz e a Jorge el Tigre Acosta a prisão perpétua, mas as sentenças mais significativas foram contra o grupo de oito responsáveis materiais pelos “voos da morte”, entre eles Mario Daniel Arru e Alejandro Domingo D’Agostino. Com a decisão, a Justiça comprova a existência do plano sistemático de eliminação, um dos mais cruéis posto em prática no regime argentino, entre 1976 e 1983.

Passaram-se 40 anos, mas a ESMA está quase intacta. Por isso, Miriam Lewin, que passou dois anos detida ali, pode se colocar no local exato em que os presos eram drogados com Pentotal antes de serem despidos e embarcados em caminhões que os levariam a um avião, do qual seriam lançados ao mar. “Era exatamente aqui, neste espaço, que ficava a enfermaria e onde agora estão vocês. Eles eram levados por estas rampas até um caminhão no pátio. Isso acontecia às quartas-feiras. Os escolhidos tinham que parar quando escutavam seu número e caminhar até aqui em fila indiana”, conta ela aos impressionados visitantes da ESMA, que fica no coração do elegante bairro de Núñez e organiza visitas mensais com sobreviventes.

Hoje a ESMA é um centro de memória, um exemplo mundial de como transformar um lugar de horrores e um centro de aprendizagem para inocular anticorpos nas próximas gerações. Algo que a Espanha, assim como outros países, não soube fazer com o seu Vale dos Caídos, erguido em memória aos nacionalistas mortos na Guerra Civil. No Brasil, apesar das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, encerrada em 2014, e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que dizem que crimes contra a humanidade cometidos por agentes do Estado não prescrevem nem devem ser perdoados a priori, o Supremo Tribunal Federal mantém a validade da Lei de Anistia, de 1979, e barra julgamentos penais contra repressores e torturadores.

Lewin, como vários dos escassos sobreviventes do centro argentino, assistia nesta quarta-feira à leitura sentença na Esma num dia vivido na Argentina como uma catarse coletiva, um ato de justiça reparador, com as vítimas na sala encarando os condenados, e telões nas portas do tribunal para que milhares de pessoas possam acompanhá-la nas ruas. No início da leitura das sentenças, os familiares dos militares aplaudiram no andar de cima, enquanto os das vítimas, no andar de baixo, gritavam “assassinos” e cantavam “assim como os nazistas, não passarão, onde quer que vão, iremos buscá-los”, enquanto exibiam fotos dos desaparecidos a poucos metros dos criminosos, separados apenas por uma parede de vidro.

Na década de oitenta, com Raúl Alfonsín, a Argentina foi um exemplo mundial de julgamentos a seus repressores. Depois vieram os indultos e a impunidade dos anos noventa. Desde 2003, com o impulso dos Governos Kirchner, o país voltou a ser um modelo para o mundo em assuntos de justiça humanitária. Hoje há 449 criminosos detidos em cadeias e 553 em prisão domiciliar, e ainda há outros 420 processos em marcha. A mudança de governo não conteve os julgamentos, que são considerados pela Suprema Corte uma política de Estado. A Argentina já deu o exemplo este ano ao realizar as primeiras condenações pela Operação Condor, e antes pelo roubo sistemático de crianças. Agora chegou a hora do processo principal.

O megajulgamento da ESMA foi especialmente complexo porque ninguém sobreviveu aos voos da morte, e praticamente nenhum militar, salvo Adolfo Scilingo, confessou saber da existência das operações ou de ter participado delas. Os advogados das vítimas tiveram que fazer um enorme trabalho de investigação com a escassa documentação de voo que foi guardada para provar que existiram. “O julgamento, ao indiciar os pilotos, permitiu reconstruir as operações e verificar como o grupo de tarefas da ESMA realizava esse método de extermínio – como, depois de dar soníferos às vítimas dizendo que seriam levadas a um centro de recuperação, o Exército conseguia um avião e pilotos no meio da noite. Nenhum dos envolvidos colaborou. O pacto de silêncio continua. Por isso foram usados documentos do Exército, registros de voo e os depoimentos dos sobreviventes da ESMA”, explica Luz Palmas Zaldúa, advogada do CELS, um respeitado órgão de defesa de direitos humanos que impulsiona esses julgamentos.

Mais de 800 pessoas depuseram. Entre os julgados há figuras muito importantes como o Tigre Acosta, que foi condenado à prisão perpétua, Ricardo Cavallo ou Alfredo Astiz, conhecido também fora da Argentina. O processo permitiu, além disso, uma reconstituição da colaboração da Igreja Católica, a conivência dos meios de comunicação, como a Chancelaria argentina utilizava os sequestrados como mão de obra escrava para fazer propaganda e se contrapor ao que chamavam de campanha contra a Argentina no mundo”, completa Zaldúa. Os condenados não apenas não colaboraram, como alguns chegaram a defender os crimes cometidos. Há menos de dois meses, Astiz, preso desde 2003 –ele permaneceu em liberdade durante vários anos graças a anistias parciais e regras que beneficiavam quem teoricamente apenas recebiam ordens—bradou diante do tribunal: “Jamais pedirei perdão por defender a minha pátria”. Ricardo Coquet, outro sobrevivente, sequestrado na ESMA entre março de 1977 e dezembro de 1978, também compareceu. “Passei quase dois anos, todas as quartas-feiras, escutando essas ações, sentindo que estavam matando todos os meus companheiros, com uma enorme impotência. Toda semana caíam 40 ou 50. Imagine o que é ver como se colocavam as esposas diante do Tigre Acosta, que nos dizia: ‘Jesus diz que tem de viver e quem tem de morrer’. É algo muito importante. Não é um fecho, mas é especial. É justiça. Porque eles têm um julgamento justo, não os torturam nem os jogam no mar”, se emociona.

Coquet afirma que ali dentro todos sabiam que estavam sendo levados para serem mortos, embora procurassem enganá-los. “Eu soube que os traslados eram para a morte porque o companheiro Ignacio Pedro Ojea Quintaba estava com uma roupa minha, que eu lhe emprestara porque vivíamos juntos. Um dia o levaram e no dia seguinte o Tigre Acosta disse para me darem uma roupa decente porque a minha estava toda rasgada. Então me levaram e me deram a roupa de Ojea, que era minha, uma calça jeans Oxford e camisa xadrez. A gente conhece a nossa roupa. Foi aí que entendi. Eram cruéis. Vi mulheres darem à luz e serem colocadas num avião no dia seguinte. Creio que foi isso que mais sensibilizou a sociedade, saber que até os filhos eram roubados. A Argentina está dando um exemplo para o mundo, mas não vejo que haja outros países seguindo esse exemplo”, afirma Coquet.

Miriam Lewin, que é uma conhecida jornalista investigativa argentina, obteve dados que confirmam a história dos voos da morte, em especial o que levou o grupo fundador das Mães da Praça de Maio, com Azucena Villaflor à frente, e duas freiras francesas. Seus cadáveres apareceram de forma inesperada no litoral argentino e foram enterrados como indigentes. Muitos anos depois, foi possível reconstituir a sua história, que agora foi essencial para a condenação dos responsáveis. “Existem as planilhas. É possível ver que foi um voo de uma quarta-feira, noturno, com uma duração sem sentido, três horas sem destino para depois voltar ao Aeroparque. Os cadáveres apareceram mostrando lesões compatíveis com a queda de grandes alturas. Elas foram encontradas porque ocorreu uma grande “sudestada” [vento de sudeste, vindo do alto mar]; os outros nunca apareceram porque os voos adentravam o espaço sobre o mar para não deixar rastros e por isso duravam três horas”, explica a jornalista.

Alguns participantes dos voos da morte comentaram seus crimes muitos anos depois perante testemunhas, embora hoje o neguem. É o caso de Julio Poch, preso na Espanha depois de relatar suas façanhas a colegas da KLM, ou Ricardo Ormello, que contou aos seus colegas das Aerolíneas Argentinas como era o procedimento e uma história, em especial, que fez com que o denunciassem. “Trouxeram uma gorda que pesava uns 100 quilos e a droga não tinham tido efeito nela. Quando a estávamos arrastando, ela acordou e se agarrou no batente. A filha da puta não largava e tivemos de empurrá-la com pontapés até que ela foi para a merda”, detalhou aos seus amigos este homem, que era cabo da Marinha durante a ditadura.

No entanto, não foi fácil comprovar a culpa e as vítimas se inquietavam diante da possibilidade de que a sentença fosse mais suave que outras esse alegasse falta de provas para absolver alguns pilotos e responsáveis pelos voos da morte. Assim, poderiam sair em liberdade, embora não no caso dos outros condenados por outros motivos à prisão perpétua. Alguns temiam que a mudança política levasse a uma mudança no espírito que até então vinha prevalecendo na Justiça, que adotou nos últimos anos sentenças bastante duras. Mas a realidade confirmou que a Argentina segue sendo uma referência mundial nos julgamentos de crimes contra a humanidade.

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