© Sputnik . Sergei Savostyanov
Eduardo Vasco
Quando chegou a notícia da queda do helicóptero de Ebrahim Raisi, o primeiro que veio à mente de todo mundo que tem um mínimo de pensamento crítico foi: “seria obra de Israel?”
Essa é uma especulação absolutamente legítima. Contudo, os jornalistas e comentaristas que trabalham direta ou indiretamente para o aparato de propaganda imperialista a descartam categoricamente. O que não passa de pura hipocrisia. São eles mesmos que adoram fazer as mais idiotas especulações sobre tudo – quando convém aos seus patrões, é claro.
Quando houve a queda do helicóptero de Evgeny Prigozhin, por exemplo, a primeira especulação feita por esses propagandistas foi que o governo russo teria sido o responsável. Afinal, o ex-líder do Grupo Wagner havia se insurgido contra Vladimir Putin. Esse era o grande fato que sustentava a lógica dessa argumentação. Era um opositor de Putin, portanto o mais provável é que Putin teria ordenado sua eliminação. Mesmo que ele houvesse se reconciliado e recebido o perdão do presidente russo, mesmo que o helicóptero tenha caído perto da fronteira com a Ucrânia e que os russos tenham garantido que foi uma sabotagem ucraniana.
É possível que nunca se saiba a verdade. Porém, os propagandistas dos EUA tentaram transformar a especulação em comprovação com uma montagem ridícula: o The Wall Street Journal publicou, pouco depois do incidente, que membros do governo russo armaram o assassinato de Prigozhin. As fontes? Agentes de inteligência ocidentais. Ou seja, a CIA, o MI6 e suas filiais. Todo mundo sabe que eles têm um histórico infindável de informações falsas plantadas na imprensa contra os seus inimigos. Será que o WSJ publicaria uma reportagem acusando o governo israelense de derrubar o avião de um presidente iraniano cuja fonte é o FSB (sucessor da KGB)?
Muito pelo contrário. Os veículos de propaganda imperialistas, em sua maioria, sequer levantam a hipótese de envolvimento israelense para ridicularizá-la. Sabem que qualquer menção a Israel, ainda que fazendo chacota da ideia, plantaria uma dúvida naqueles que não pensaram nessa possibilidade.
Jeremy Bowen, da BBC, sugeriu que há a possibilidade de sabotagem relacionada com opositores internos, tanto de dentro como de fora do governo, “mas não temos provas para nada disso”. Mas essas probabilidades, segundo o que se desprende de seu comentário, são legítimas. O que não é razoável é o “instinto de culpar Israel”.
“Autoridades israelenses têm dito a jornalistas que não estão envolvidas nisso. É difícil enxergar como Israel se beneficia de algo que seria interpretado, na prática, como um ato provocativo de guerra”, apontou o editor de política internacional do canal britânico.
Vamos por partes. Primeiro, o fato de Israel negar envolvimento não significa nada. É apenas uma arma retórica de propaganda para os repórteres fingirem imparcialidade ouvindo “os dois lados”. “Fulano disse isso, enquanto sicrano disse aquilo”. Pronto, está feito o trabalho do jornalista. Não se precisa investigar nada!
Em segundo lugar, o comentarista admite ter dificuldades cognitivas em “enxergar como Israel se beneficia” da eliminação do chefe de Estado do seu maior inimigo. Na verdade, não é nada disso. Ele tem plena noção de como isso beneficia Israel, como beneficiaria qualquer país cujo líder inimigo é abatido. Só é um hipócrita que tenta livrar Israel das legítimas acusações.
Por fim, ele considera que Israel matar o presidente do Irã “seria interpretado, na prática, como um ato provocativo de guerra”. Será que ele também acha que Xi Jinping mandar matar Joe Biden não necessariamente seria uma provocação aos EUA? É óbvio que se Israel derrubou o helicóptero de Raisi isso foi um ato de guerra! E que, portanto, o Irã teria absoluto direito de responder com uma guerra à guerra iniciada por Israel.
Israel realmente é o grande protegido do aparato de propaganda liderado pelos EUA chamado eufemisticamente de “imprensa internacional”. Em 23 de outubro do ano passado, o colunista da Folha de S.Paulo Joel Pinheiro da Fonseca descobriu a verdade absoluta sobre quem bombardeou o Hospital al-Ahli de Gaza, ocorrido poucos dias antes. Em um artigo vergonhosamente enganoso, citou as notícias que apontavam Israel como o responsável para refutá-las com a conclusão de que, contudo, “o consenso emergente é que o míssil não veio de Israel. Foi um foguete do grupo Jihad Islâmica que se partiu e caiu no estacionamento do hospital. Muito provavelmente foram menos de 500 mortes.”
De onde tirou isso? Ele não disse. Citou apenas a própria Folha e o New York Times, que resolveram adotar “cautela”. Ele não apresentou nenhuma fonte para sua afirmação, nem mesmo indicou se os dois jornais haviam se embasado em algum fato. Também, se houvesse apresentado a fonte dessa afirmação, ele teria revelado sua parcialidade total: foram Israel e EUA que acusaram a Jihad Islâmica de atacar o hospital. A dupla, responsável pelo genocídio em Gaza, é uma “fonte” menos confiável que a CIA quando foi usada pelo Wall Street Journal para acusar a Rússia de matar Prigozhin. E o artigo do colunista da Folha foi escrito com toda a pompa de quem está acima das “narrativas”, com a missão sagrada de desmentir que Israel era o culpado!
O colunista ocultou a fonte de sua “descoberta” porque sabia que, se a revelasse, seu artigo seria alvo de chacota e ninguém o teria levado a sério. Ele também ignorou – intencionalmente? – investigações da BBC, do Channel 4, da Al Jazeera e da Bellingcat, publicadas antes de seu artigo, que apontaram sérias inconsistências na versão israelense-americana e que afirmaram que ainda não era possível chegar a um resultado conclusivo sobre de onde veio o ataque.
Quatro meses depois, a agência de pesquisas Forensic Architecture publicou um estudo que também revela sérias inconsistências na versão israelense-americana comprada por Joel Pinheiro da Fonseca e afirma que “o que aconteceu no al-Ahli permanece inconclusivo”, acusando ainda o regime de Tel Aviv de ter “lançado uma agressiva campanha de desinformação” após o ocorrido.
O estudo conduzido pela Forensic Architecture – ligada à Universidade de Londres e liderada por Eyal Weizman, um pesquisador nascido em Israel – recorda ainda que a lógica culpa Israel: nos dez dias anteriores, a Organização Mundial da Saúde havia contabilizado 51 ataques israelenses à infraestrutura médica de Gaza; quatro dias antes Israel havia ordenado a evacuação de todos os hospitais do norte de Gaza, incluindo o al-Ahli; e três dias antes Israel havia atacado a ala de tratamento de câncer do mesmo hospital, possivelmente como um aviso de que um ataque maior ocorreria, como Israel costuma fazer.
Além disso, termina o estudo, os ataques de Israel a hospitais de Gaza seguem um “padrão consistente” com ataques aos arredores, alvejamento direto, cerco e ocupação. Esses apontamentos significam que tudo indica que o agressor direto ao hospital, com quase 500 mortos segundo o Ministério da Saúde de Gaza, tenha sido Israel, e nada indica que tenham sido os próprios palestinos. Logo, a afirmação de Joel Pinheiro da Fonseca de que “foi um foguete do grupo Jihad Islâmica que se partiu e caiu no estacionamento do hospital” não é respaldada por nenhuma investigação séria – e já existiam muitas que a refutavam. É, portanto, uma mentira. Uma fake news.
Mas uma reportagem do Estado de S.Paulo conseguiu superar as falsidades do colunista da Folha. Na verdade, é um despacho da AFP publicado no New York Times que o Estadão reproduziu no dia 16 de maio deste ano. A fake news é tão escandalosa que ela já vem no título: “Nacionalista e militante pró-Rússia dá 5 tiros no premiê da Eslováquia”
Dentro da matéria, não há nenhuma comprovação do que o título afirma. Apenas uma descrição no lide, de que o atirador é “um ultranacionalista e simpatizante do presidente russo, Vladimir Putin” e em outro trecho que diz que “ele é simpatizante do grupo paramilitar Slovenskí Branci, ligado ao Kremlin”.
Não há nenhuma ligação entre as informações da matéria. Na verdade, a única informação que poderia embasar o título é a última, mas ser simpatizante de um grupo eslovaco (supostamente) ligado ao Kremlin não o torna um “simpatizante do presidente russo”, como diz o lide, e tampouco um “militante pró-Rússia”, como afirma o título.
Até aqui, a reportagem publicada no Estadão é uma aberração que utiliza uma pequena informação no final do texto para deturpá-la e exagerá-la. Tecnicamente, seu título pode ser considerado uma mentira porque o texto não corrobora o que foi anunciado. É a ânsia de culpar a Rússia por um crime dos mais repulsivos.
Se fosse só isso, já seria uma delinquência por parte do Estadão. Mas é que todas as afirmações são manipuladas, não apenas o título. Juraj Cintula, o atirador, já expressou, é verdade, sentimentos pró-russos, como “descobriu” o jornalista húngaro Szabolcs Panyi, “escavando seus posts no Facebook”, conforme mencionou a reportagem publicada no Estadão. Mas isso faz muitos anos. Em 2022, quando a Rússia interveio militarmente na Ucrânia, Cintula passou a manifestar apoio a Kiev e às ideias neoliberais disseminadas pelos Estados Unidos, bem como a destilar pesadas críticas ao premiê Robert Fico, que suspendeu o envio de armas à Ucrânia e apoia a reaproximação com a Rússia. Cintula até participou de um protesto antigovernamental no dia 24 de abril em que os manifestantes levavam uma bandeira da União Europeia e gritavam “Longa vida à Ucrânia”, conforme um vídeo veiculado pelos meios de comunicação eslovacos.
De fato, a própria reportagem reconhece que Cintula é um crítico das políticas do governo, particularmente da posição de Fico sobre a imprensa. A imprensa eslovaca, como em qualquer país onde a classe dominante é vassala do imperialismo, tem uma linha editorial pró-OTAN, pró-União Europeia e pró-Ucrânia e tem feito muita pressão sobre o primeiro-ministro e seu governo para que ele deixe a neutralidade de lado e apoie integralmente a política da OTAN sobre a Ucrânia e a Rússia. Fico é rotulado como um líder “pró-Rússia”, ou seja, quase um fantoche de Putin, tanto pelos meios eslovacos como ocidentais.
O governo eslovaco tem acusado precisamente os grandes meios de comunicação de serem os principais responsáveis pelo atentado, uma vez que realizam uma campanha de “discurso de ódio” contra o primeiro-ministro e as boas relações com a Rússia. A reportagem veiculada pelo Estadão poderia facilmente ser inserida nessa campanha, além de ser uma das mais bizarras fake news internacionais dos últimos dias, porque ela inverte totalmente os fatos e a realidade.
Além disso, um atentado contra um chefe de Estado raramente é realizado por um “lobo solitário”, como querem pintar Cintula – ou como fazem com Lee Harvey Oswald, assassino de John F. Kennedy. Levando em conta as posições políticas e a prática governamental de Fico, de neutralidade e, portanto, contrária às ordens imperialistas, e que o atirador é um seguidor da política imperialista e opositor de Fico, e considerando a longa ficha corrida de atentados orquestrados pelos EUA e as potências europeias, é bem possível que estes estão por trás dessa tentativa de assassinato. Ao contrário do que diz o Estadão, Fico foi atacado por um “militante pró-OTAN” e anti-Rússia, e não pró-Rússia.
Mas vamos voltar ao caso Ebrahim Raisi. Seria obrigação de qualquer membro da imprensa questionar as condições em que o helicóptero se “acidentou”. Não veremos esses questionamentos nos grandes jornais, porque sua função não é colocar o dedo na ferida, mas ocultá-la.
Ninguém acha estranho que o percentual de chefes de Estado mortos em acidentes de helicóptero ou avião seja tão alto? O analista de políticas de segurança Michael Maloof levantou uma questão: havia três helicópteros juntos em uma caravana e um deles caiu, sem que houvesse sinal de emergência. E se foi devido à neblina, por que os outros dois não se acidentaram, apenas o helicóptero levando o presidente da república e o ministro das Relações Exteriores?
Pois parece que as aeronaves realmente odeiam chefes de Estado. Que azar do Raisi e do principal ministro do Irã, pobrezinhos!
Mas, para evitar a má sorte, um conselho para o próximo presidente persa: cuidado ao entrar em um helicóptero, principalmente se o seu país estiver em uma guerra fria com Israel, que já explodiu gasodutos no Irã, assassinou cientistas nucleares iranianos e há menos de dois meses bombardeou sua embaixada na Síria. Talvez, por problemas técnicos ou pelo mau tempo, possa ocorrer um acidente fatal.