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segunda-feira, 14 outubro, 2024

Quem são os ‘brasiguaios’ e por que a presença deles incomoda o Paraguai?

Sputnik – Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas explicam como surgiu a população hoje definida como “brasiguaia” e que impactos ela causa na questão fundiária do país vizinho.

Conhecidos como “brasiguaios”, os brasileiros que residem no Paraguai e se dedicam à agricultura representam um desafio para a política fundiária do país vizinho e são alvo de disputas de terras que por vezes se tornam violentas.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam como surgiu a população de brasiguaios e por que a presença deles incomoda a população do país vizinho.
A questão dos brasiguaios remete a duas ondas de migração de agricultores brasileiros para o Paraguai, em dois períodos distintos, nas décadas de 1940 e 1970, explica Eric Cardin, doutor em sociologia, professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e pesquisador do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão “Fronteiras, Estado e Relações Sociais” (Lafront).
Segundo ele, as ondas migratórias foram incentivadas pelo governo paraguaio, que estabeleceu linhas de crédito e mecanismos de apoio à entrada de brasileiros. Essa facilitação se deu porque a elite do país na época tinha uma perspectiva de progresso e desenvolvimento que, na concepção deles, o perfil de produção agrária paraguaia não era capaz de atingir. Isso levou o país a inserir produtores brasileiros em sua estrutura fundiária.

“Somente movimentos sociais [paraguaios] mais isolados durante esse período de 1940 a 1980 vão apresentar algumas manifestações pontuais sobre isso, e que serão rapidamente repreendidas, porque a gente está falando do período militar do Paraguai e do Brasil.”

Operário em fundição de aço (Arquivo) - Sputnik Brasil, 1920, 05.03.2018

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Segundo Cardin, os migrantes brasileiros eram atraídos pelo preço da terra, mais baixo em relação ao do Brasil.
“Ou seja, ele [brasileiro] tem um montante para comprar uma propriedade no Brasil, mas com esse montante de recurso ele consegue comprar duas, três vezes mais no Paraguai, e uma terra com qualidade similar. […] Depois, na década de 1970, com o processo de alagamento da hidrelétrica [de Itaipu], eles também tiveram o processo de indenização tanto do lado paraguaio quanto do lado brasileiro. Eles pegam esse valor de indenização e fazem a avaliação: compensa eu comprar [terras] no Brasil ou comprar no Paraguai? No Paraguai, que a terra é mais barata.”
Ele explica que essa migração ocorreu na esteira do liberalismo econômico vigente na época no Paraguai, que permitia uma maior circulação no país de pessoas, capitais e mercadorias. Porém, ela acabou por promover um conjunto de conflitos e redefiniu aspectos fundiários no Paraguai.
Cardin afirma que não há como precisar a quantidade de brasiguaios existentes hoje no Paraguai. Em 2021, o Instituto Nacional de Estatística do Paraguai projetou em 30 mil a população de brasiguaios no país. O número está muito abaixo da projeção feita em 2008 pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, que estimou a população em 300 mil.

“Ou seja, a gente tem uma certa dificuldade em definir esse contingente. A gente não sabe, por exemplo, se no caso do Itamaraty eles já estão levando em consideração descendentes, filhos de brasileiros que nasceram no Paraguai, mas têm direito à cidadania brasileira caso ela seja requerida. […] É muito imprecisa essa informação.”

Ao longo das décadas, conforme movimentos sociais e de sem-terra paraguaios ganharam força, o Paraguai passou a impor limites à circulação e venda de terras para estrangeiros.
“E, dentro dessa lógica, a gente vai visualizar, mais precisamente no ano de 2004, o Paraguai definir a concepção deles do que vai ser a faixa de fronteira paraguaia. Ela é uma linha demarcada pelos governos nacionais que demanda uma atenção estratégica pelos países. O Brasil tem uma faixa de fronteira de 150 quilômetros de limite internacional para o interior do país […]. No Paraguai foi estabelecida uma faixa de fronteira de 50 quilômetros”, explica Cardin.

Vista da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em Foz do Iguaçu (PR). A usina binacional está localizada no rio Paraná entre o Brasil e o Paraguai - Sputnik Brasil, 1920, 18.06.2024

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Ele acrescenta que essa diferença de 50 quilômetros no Paraguai e 150 quilômetros no Brasil é referente ao tamanho dos dois países.

“Se o Paraguai definisse uma faixa de fronteira de 150 quilômetros, é quase que o Paraguai inteiro dentro da faixa de fronteira. Então é uma faixa de fronteira menor, de 50 quilômetros, mas é uma faixa de fronteira que estava ocupada até aquele momento fundamentalmente pelos brasileiros.”

Quais os impactos causados pelos brasiguaios?

Leandro Baller, doutor em história pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) com estágio doutoral na Universidade Nacional de Assunção (UNA), destaca que as ondas migratórias brasileiras promoveram uma série de impactos nas comunidades locais.

“Quando os brasileiros chegam ao Paraguai […], eles vão introduzindo uma série de valores que são próprios do Brasil. A moeda brasileira, programas de rádio brasileiro, programas de televisão do Brasil, entre outras questões. Então se constrói um aparato ligado à questão identitária tanto na questão social quanto na cultural.”

Em relação ao preconceito contra brasileiros no Paraguai, ele lembra que a relação entre os países nunca foi muito harmoniosa.
“Isso [questão dos brasiguaios] acaba retomando questões que vêm de outros tempos e acaba que desemboca em momentos de maior tensão. Aí se evoca a Guerra do Paraguai, por exemplo, o episódio lá do final do século XIX ainda. E essas coisas vão fazendo com que isso tenha um certo, digamos assim, um estigma em relação a um e a outro.”
Baller afirma que a disputa de terra no Paraguai não envolve somente brasileiros, mas também chineses e americanos.

“Tem várias outras nações aí, outros povos que estão envolvidos. Talvez o Brasil se destaque […] justamente pela expansão, pela quantidade. Então o que o Brasil promove, na verdade, no Paraguai, é uma expansão cada vez maior e internacional da fronteira agrícola que estava acontecendo no Brasil.”

Ele afirma que o principal ponto de acirramento relativo à presença dos brasiguaios é o modelo de agricultura: os proprietários de terras brasileiros têm um modelo baseado no agronegócio exportador; já a população indígena, rural e os chamados carpeiros — como são designados os sem-terra paraguaios — usam o cultivo para subsistência e se veem ilhados pelos latifundiários brasileiros.

“O campesino paraguaio, ele sobrevive durante séculos da maneira como sobrevive. Então a mata para ele era fundamental; é fundamental para ele talvez fazer uma pequena caçada, para ele ter um peixe, para ele ter uma lenha para queimar, e assim por diante. E esse espaço atualmente no Paraguai é quase que inexistente, justamente por conta desse modelo do agronegócio baseado no produto para exportação”, diz o especialista.

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