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sábado, 5 outubro, 2024

Quando os “bugres” falam

José Bessa Freir
 “Eles inventam palavras, todas as vezes que veem um objeto que não conhecem.  As mulheres, sobretudo, são excelentes para a invenção dessas palavras novas”.  (Pierre Victor Renault. 1877).  

As vozes indígenas ressoam em Civilização e RevoltaIndígenas e indigenismo na formação do Brasil da antropóloga Izabel Missagia de Mattos, livro que revela o protagonismo dos Borum (gente) – é assim que eles se autodenominam. Na documentação aparecem como “Botocudos”, designação depreciativa dos portugueses para vários povos que usavam botoque, referidos também genericamente como “bugres”. A autora recolheu depoimentos de homens e mulheres em arquivos brasileiros e estrangeiros, em relatos de viajantes do séc. XIX e mais recentemente em entrevistas gravadas em português ou em Borum, uma língua do tronco linguístico Macro-Jê.

Quando necessário, essas vozes criaram léxico novo, mas não se calaram. Uma delas é a de Domingos Pacó (1867-1935) professor bilingue. O manuscrito de sua autoria “Hámbric anhamprán ti mattâ nhiñchopón?” registrado em uma caderneta, com caligrafia caprichada, narra a história do Aldeamento Central Nossa Senhora dos Anjos do Itambacuri (MG), administrado por capuchinhos. Denuncia a invasão de seu território, a exploração da força de trabalho, o etnocídio e o glotocídio, o teocentrismo da catequese, a distribuição de meninas indígenas da escola entre os moradores da cidade de Teófilo Otoni, as tentativas de apagamento da memória e dos saberes tradicionais e a resistência a tudo isso.

O bilíngue Pacó esclarece como “a moralidade e a religião” eram impostas, inicialmente sempre em “idioma selvagem”, por serem poucos os índios que dominavam a “língua brasileira”. Critica o abandono forçado da língua Borum e sua substituição pelo português como forma de apagamento da memória. Ele lecionou por 19 anos, empregado como servidor público da catequese, recebendo apenas a metade dos vencimentos dos demais empregados para o mesmo serviço, até ser demitido da escola pelos missionários, juntamente com as professoras indígenas Romualda Órphão de Meira e Delfina Bacán.

As palavras

Outras vozes se somaram a essa, entre elas as incluídas no relato do engenheiro francês Pierre Victor Renault, que realizou expedição, em 1836, ao alto Mucuri, do qual conservei o nome indígena Mokury (Mo = vá, Kury = lavar)”, quando lá recolheu vocabulários da língua indígena. Ele observou que o contato com os portugueses e o surgimento de uma realidade até então estranha, levaram os Borum a incorporar um vocabulário novo com empréstimos lexicais.

Os depoimentos dos indígenas recuperados por Izabel Missagia oferecem chaves para preencher lacunas no conhecimento historiográfico sobre o destino das terras e do povo Borum:

Eu não gosto dos brasileiros, eu estou muito bravo. Eles nos são hostis, tu trouxeste essa gente aqui, que nos são hostis – falou Kan jirun, cacique dos Pojichá ao mestiço Maicon no diálogo traduzido ao alemão pelo linguista Bruno Rudolph, em 1909, e retraduzido ao português na norma padrão.

O protagonismo indígena permanece ainda hoje, como pode ser verificado em falas relativamente recentes como a de Chico Bugre, em Itambacuri, em 1972, quando, altaneiro, afirmou:

– Não tem nada no mundo que não tem palavra pra índio, só não tá na minha ideia, mas não tem nada neste mundo que bugre não fala.

A catequese está presente no episódio relatado em 1972 por Zeferina, uma velha índia Pojichá,, filha do cozinheiro do Convento, que conviveu por muito tempo com frei Serafim. Entrevistada em sua casa, na periferia de Itambacuri, ela cantou na língua nativa, bailou dança tradicional e fez um relato sobre a relação dos missionários fundadores com os índios, além de descrever uma performance de exorcismo, ela mesma presenciou “a expulsão do capeta”, conforme descrição de Izabel Missagia, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que já atuou como pesquisadora visitante na Universidade de Carolina do Norte (EUA).

Tecendo e destecendo os múltiplos caminhos dos Botocudos ou Borum, a autora  combina criatividade teórica, ineditismo documental, imaginação e qualidade etnográfica para analisar as profundas transformações socioculturais e linguísticas que envolveram os povos indígenas da zona do alto Mucuri e médio Doce, em Minas Gerais, no século XIX, e recupera assim a perspectiva indígena sobre a história, sempre dialogando e rendendo tributo aos pesquisadores que a precederam, como Marco Morel, Hal Langfur e John Monteiro, entre outros.

A força mágica

Dessa forma, a autora (re)constrói, na confluência entre a história e a antropologia, as experiências de grupos pertencentes à família linguística Borum frente ao avanço da colonização nos chamados Sertões do Leste. Ali, naquela “zona fronteiriça”, por defenderem seu território dos invasores, os “Botocudos” foram retratados por naturalistas e colonizadores como “antropófagos” e “ferozes”. Como desfecho dessa relação radical de alteridade, os Borum e outros povos indígenas sofreram brutal perseguição, especialmente a partir dos decretos de guerras “justas” do príncipe regente dom João VI.

Na segunda metade do século XIX, a política indigenista imperial, pautada no Regulamento das Missões de 1845 e na Lei de Terra de 1850, golpeou os povos de recente contato, expropriando-os de seus tradicionais territórios, com a cumplicidade de políticos e intelectuais, que discutiam a inserção dos indígenas no Estado nacional em formação. O plano era expandir as fronteiras agrícolas, para que colonos nacionais e estrangeiros ocupassem as terras expropriadas. Para isso, era necessário territorializar e fixar os índios em aldeamentos de catequese e “civilização” com o objetivo de incorporá-los à sociedade. A ordem era eliminar quem resistisse.

Massacres, doenças, fome, escravidão e diáspora foram alguns dos resultados dessa política de perseguição e tentativas de “pacificação” dos povos indígenas. Afinal, era preciso o uso da força para transformar aqueles “selvagens sem história” em seres “civilizados”, conforme defendia Francisco Adolfo de Varnhagen. Com destreza, Izabel Missagia coloca em tela as razões, os meandros e as mudanças desses processos, destacando especialmente os conflitos e as alianças entre os Botocudos e diferentes atores na província de Minas Gerais.

Impregnados de yikégn, a “força mágica”, os Borum se aproximam, observam e sobretudo resistem. Orientados pela lógica do xamanismo, eles organizam ataques aos colonos e às fazendas, promovem guerras contra seus inimigos históricos (outros povos indígenas e grupos rivais), como fizeram os Pojichá, considerados o “flagelo do Mucuri”. O chefe Botocudo Guido Pokrane que insistia em guerrear contra os Puri, refutou um acordo de paz e foi à Corte no Rio de Janeiro para defender seus interesses. Tais estratégias etnopolíticas e guerreiras tradicionais, com destaque para a “rebeldia”, foram recuperadas na documentação pela autora.

O xamanismo

A linguagem do xamanismo deu aos Botocudos “elementos para a interpretação da experiência histórica das situações de aldeamento” e orientou suas estratégias de sobrevivência coletiva. Izabel Missagia faz uma análise fina da emergência de novas identidades, especialmente no interior dos aldeamentos, da “metamorfose dos indígenas” fortemente impactados pela catequese e do apagamento desses povos sob o discurso nacionalizador da “mestiçagem”.

A autora, ancorada em rico acervo constituído por mapas, fotografias, iconografias, manuscritos indígenas, mostra com originalidade e brilho os Borum de carne e osso constantemente em movimentos de resistência e luta por seus territórios, seus jeitos de ser e viver no mundo, num contexto de interculturalidade. Ela torna evidente a ligação direta entre xamanismo, política e luta por autonomia, desvelando o papel dos indígenas e do indigenismo na formação do Brasil.

Não tem nada no mundo que os “bugres” não falam. Os “bugres’ falaram e Izabel Missagia teve a sensibilidade e a lucidez de nos fazer escutar suas vozes no livro que está no prelo e deve ser lançado brevemente pela EDUERJ. Sua leitura nos proporciona uma forma de ter uma compreensão mais profunda da história do nosso país.

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