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sábado, 5 outubro, 2024

POR QUE RONDÔNIA CENSUROU MACHADO DE ASSIS?

José Ribamar Bessa Freire

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver”

(Machado de Assis. 1880. Memórias Póstumas de Brás Cubas)

A experiência como estudante, em Manaus, em 1964, me permitiu compreender porque Rondônia, sob o governo do coronel Marcos Rocha (PSL vixe vixe) mandou recolher das escolas obras de escritores consagrados. O memorando, alegando o “conteúdo inadequado” dos livros, vazou nas redes sociais nesta quinta (6) e causou o maior rebucetê. Por se tratar de literatura cobrada no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), ninguém entendeu. No entanto, a explicação pode ser encontrada no bairro de Aparecida, porque tudo o que acontece ou ainda vai acontecer em qualquer parte do mundo, modéstia às favas, já ocorreu lá no meu bairro.

Quando cursava o Pedagógico no Instituto de Educação do Amazonas (IEA), por exigência do professor de português, eu devia ler Memórias Póstumas de Brás Cubas. Busquei, então, a diretora do Colégio de Aparecida, irmã Consolata, minha ex-professora de latim, para que autorizasse o empréstimo do livro citado. Não era possível porque os 31 volumes das Obras Completas de Machado de Assis não faziam mais parte do acervo da biblioteca.

Com furor cívico, irmã Consolata, apelidada de Roxinha, se antecipara ao ministro da Educação da ditadura, coronel Jarbas Passarinho, que em 1970 mandaria remover das bibliotecas universitárias do Brasil mais de 200 títulos de livros. A freira, mais papista do que o papa, criara sua própria lista, inspirada no Index Librorum Prohibitorum que continha o catálogo de livros proibidos no séc. XVI pelo papa Paulo IV, atualizado ao longo dos séculos e só revogado em 1966 por Paulo VI. Ela me advertiu que Brás Cubas continha obscenidades, aventuras com prostituta de luxo e adultério, enfim, me deu roteiro minucioso daquilo que a ministra Damares não quer que seja lido hoje.

Graça dançarina

A proibição e as dicas da freira, que parecia conhecer as intimidades de Brás Cubas, atiçaram ainda mais minha vontade de lê-lo. Numa cidade ainda sem televisão, a leitura propiciava a um adolescente viagens por mares nunca dantes navegados. Encontrei na biblioteca particular do tio Dantas, que era professor, todo Machado de Assis. Ele me autorizou a retirar um volume de cada vez. Em dois anos, devorei tudo. Bendito tio Dantas, que me permitiu descobrir aquilo que o católico ultra conservador Gustavo Corção já havia percebido:

– “Ninguém mais, neste século, e principalmente neste país, é capaz de escrever com aquela graça dançarina”. É verdade. A fina ironia, o gênio e o humor machadiano deslumbram sempre, ele é eterno com sua “maneira leve de tratar as coisas graves e a maneira grave de tratar as coisas leves”, como sinalizou Tristão de Ataíde, outro intelectual católico.

Lembro da comoção indignada ao ler para o meu pai trecho em que Brás Cubas, de família rica, conta que aos seis anos de idade, quebrou “a cabeça de uma escrava”, porque ela lhe negara “uma colher do doce de coco que estava fazendo” e ainda jogou cinza no tacho, dizendo à sua mãe que “a escrava é que estragara o doce por pirraça”. O defunto autor-narrador relata que “seu cavalo de todos os dias” era o moleque Prudêncio, filho da escrava da casa, em quem montava para cavalgar:

– Prudêncio “punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado e ele obedecia, algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra, ou quando muito um –  ai, nhonhô! – ao que eu retorquia: – Cala a boca, besta!”.

Muitos anos depois, Brás Cubas, já adulto, encontra na rua um negro chicoteando outro negro, que gemia. O que açoitava, gritava – “Cala a boca, besta! Parei, olhei…. Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio – o que meu pai libertara alguns anos antes. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as ao outro. Eu, em criança, montava-o e desancava-o sem compaixão; agora, porém, que era livre […] comprou um escravo e ia lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera”.

Esse é um dos livros que Rondônia não quer que os alunos leiam, talvez por conter a memória literária de como se construiu esse Brasil e não por causa da prostituta Marcela e da adúltera Vigília que, no frigir dos ovos, parecem até singelas em relação à maioria dos filmes exibidos hoje pela TV. O romance publicado em capítulos no folhetim da conservadora Revista Brasileira, em 1880, não escandalizou ninguém do séc. XIX. Mas em pleno séc. XXI, melindra as almas pudibundas dos terraplanistas. Por que proibi-lo? Eis cinco possíveis explicações.

  1. Se colar, colou – A primeira suspeita é que se trata de um dos tantos balões de ensaio soprados com o ar dos pulmões do capitão Jair Bolsonaro para sondar as reações dos eleitores. Foi assim quando Flávio Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes defenderam um novo AI-5, responsável por amordaçar a mídia, a música, o teatro, o cinema, a escola. Outro balão foi a performance do Roberto Alvim, Secretário de Cultura, que defendeu o nazismo com palavras de Goebbels, na base do “se colar, colou”. Não colou. A reação vigorosa de setores esclarecidos da sociedade e de suas instituições fez com que ambos os balões murchassem e foi melhor já ir saindo de fininho.
  2. Mãos ao alto. A segunda explicação se relaciona à suposta denúncia de um pai de família. O secretário de educação, Suamy Vivecananda, assumiu a denúncia de que “os livros continham palavrões”. Apontou, então, as armas para Machado, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Nelson Rodrigues et alii e gritou: “Mãos ao alto”. Criminalizou o melhor da literatura, uma das áreas mais importantes de nossa identidade cultural, para puxar o saco do coronel Rocha, que serviu na Academia Militar das Agulhas Negras e é filiado ao PSL. Essa teria sido a forma de Rondônia se weintraubizar, alinhando-se à política educacional do governo.
  3. Fobia às letras – A terceira hipótese está relacionada às diretrizes do Planalto. O capitão já havia criticado os livros didáticos dizendo que são um “amontoado de muita coisa escrita” e prometeu “suavizar o conteúdo”. O ministro Weintraub declarou depois que “muita porcaria” foi excluída com “limpeza boa” feita no material didático. O secretário checou o número de páginas: havia mesmo “muita coisa escrita”. Proibiu seu uso nas escolas. O Sindicato dos Trabalhadores na Educação (Sintero), porém, botou a boca no trombone: “a leitura dessas publicações deve ser incentivada e não censurada”. Diante da repercussão nacional, o governo de Rondônia recuou.
  4. Sabotagem do PT – Pode ter sido “çabotagem”, seguindo o modelo Weintraub no caso do ENEM. O secretário de Rondônia jurou inicialmente que era tudo “fake”, depois diante das evidências admitiu que eram apenas “rascunhos”. No entanto, o jornal Rondônia Dinâmica registra que “ele mentiu”. Em dois áudios, a gerente de Educação Básica de Rondônia, Rosane Magalhães, afirma que o secretário deu ordem para censurar as 43 obras, além de todos os livros de Rubem Alves. Vai ver que ela é uma petista infiltrada, embora tenha sido nomeada por ele. De qualquer forma, para evitar bisbilhoteiros, o memorando passou a ser qualificado como “sigiloso”.
  5. Efeito Consolata – A Academia Brasileira de Letras considerou “ato deplorável” a censura a seu fundador e aos demais escritores. Mas as investigações do MPF podem confirmar a quinta hipótese: o aceno ao fruto proibido foi estratégia inteligente para incentivar a leitura dos clássicos da nossa literatura. Tal hipótese é menos absurda do que aceitar que o Brasil tenha caído num nível de barbárie tão degradante, com um secretário de educação tentando impedir o acesso ao maior escritor brasileiro de todos os tempos. Ou será que o Index Librorum Prohibitorum Bolsonorum comprova que os vermes continuam a roer cadáveres? Nem os mortos estão salvos.

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