Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Por Frei Betto*, em seu site:
Os primeiros meses do governo Lula mostram como será difícil reconstruir o Brasil. A frente ampla em defesa da democracia para vencer a eleição expressa limites para o avanço em políticas que apontem para um futuro estruturalmente melhor para a população, em especial os mais pobres.
Na educação, o exemplo é o Ensino Médio, cuja reformulação e implementação teve origem no governo Temer. O golpe parlamentar contra a presidenta Dilma legou ao país a profunda crise política em que ainda estamos enrascados e, no bojo, as heranças malditas do teto de gastos, da liberalização da terceirização, da precarização das relações de trabalho e do chamado “novo Ensino Médio”. O golpe visou fazer avançar estas contrarreformas de nítido sentido neoliberal e antipopular.
Desinteresse em relação às disciplinas e currículos, elevada evasão de alunos, necessidade de conexão entre teoria e prática e com o mundo do trabalho. São fatores importantes que exigem constante avaliação e eventual reformulação do Ensino Médio. O governo Dilma já debatia alterações nesta etapa da educação, que representa os anos finais da escolarização da juventude.
O projeto de lei 6.840, de 2013, esboçava mudanças pretendidas pelo governo em relação ao Ensino Médio. Era avaliado criticamente por entidades de professores e estudantes, inclusive ao propor elementos de organização curricular que depois seriam retomados pelo “novo Ensino Médio”, como a redução das disciplinas comuns e a oferta de temas de livre escolha.
O golpe de 2016, entretanto, interrompeu este processo de diálogo. Através da Medida Provisória 746/2016 e, posteriormente, da Lei 13.415/2017, o governo Temer impôs o “novo Ensino Médio”, que alterou a Base Nacional Comum Curricular e seu suporte pedagógico legal, depois aprovada no governo Bolsonaro.
Como se deu a aprovação? Alterou-se a composição do Conselho Nacional de Educação, com a nomeação de conselheiros ligados às fundações e institutos empresariais, defensores das orientações do Banco Mundial para a educação.
A Base Nacional Comum Curricular, portadora dos conceitos neoliberais de empreendedorismo e meritocracia, engessa o currículo escolar do Ensino Médio. Conteúdos de Matemática e Língua Portuguesa passam a ser oferecidos quase no limite de um ensino para domínio instrumental dessas disciplinas, essenciais para a formação plena do estudante.
O que Temer e o Congresso Nacional impuseram significou a precarização do currículo escolar e comprometeu a formação dos estudantes, ao reduzir a carga horária da Formação Geral Básica (Português, Matemática, História, Geografia, Ciências, Artes, Filosofia, Sociologia) no segundo e terceiro anos do Ensino Médio. E ampliou para 40% da carga horária, nesses anos, a parte diversificada do currículo, ao inserir os chamados “itinerários formativos”, em que supostamente os estudantes poderiam escolher o que estudar.
Há uma contradição entre a propaganda de que os estudantes seriam protagonistas de sua carreira escolar e a realidade do “novo ensino médio”, que prescreve habilidades e competências sócio comportamentais necessárias à sobrevivência desses jovens no mundo do trabalho: capacidade de adaptação e resiliência em um cenário de competição e instabilidade. São “habilidades” para uma sociedade baseada na “viração”, na esperteza, o que os defensores da educação neoliberal chamam de “empreendedorismo”. Trata-se de educar para adequar-se ao mercado de trabalho precarizado e ao conformismo como ausência de alternativa.
A implementação do “novo Ensino Médio” ao longo dos últimos dois anos e sob responsabilidade das secretarias estaduais de educação, evidenciou mais problemas, como a precariedade da infraestrutura das escolas públicas – em que estudam cerca de 88% dos quase 8 milhões de estudantes matriculados no Ensino Médio no Brasil –, e a falta de professores. Somam-se a este grave problema maus contratos, muitas contratações temporárias, além de ausência de formação adequada e pouco tempo para preparação de aulas. Todos esses fatos revelam a inadequação desta proposta para a realidade dos estudantes, que passaram a se mobilizar pela revogação.
O “currículo em migalhas” não atende às necessidades e interesses dos alunos, notadamente dos filhos e filhas da classe trabalhadora que estão nas escolas públicas, e não os prepara para a continuidade dos estudos em nível superior ou escolas técnicas, se assim desejarem. Nem para que possam ingressar dignamente no mundo do trabalho, forçando-os à exclusão das esferas de decisão nas empresas, instituições e órgãos do poder público, e à permanência em funções subalternas e mal remuneradas.
O ensino médio neoliberal ampliou o abismo que já existia entre as escolas públicas e as melhores escolas privadas, reforçando o fato de haver no Brasil uma escola “pobre” para os pobres, e escolas de qualidade para os ricos, o que aprofunda o apartheid social.
A bandeira do “Revoga já!” em relação à contrarreforma neoliberal do Ensino Médio tem potencial para expor a raiz do problema educacional no Brasil: a desigualdade nas condições de ensino-aprendizagem entre as escolas pública e privada. E mesmo entre escolas privadas de elite nos grandes centros urbanos e as localizadas no interior do Brasil e nos bairros de classe média nas grandes cidades. É a reprodução ampliada dessa desigualdade.
Ao mesmo tempo, condiciona o horizonte de possibilidades dos jovens (ricos e pobres) ao fatalismo do “fim da história”, ou seja, que o futuro do Brasil não comporta desenvolvimento social e econômico que nos faça superar a dependência e as heranças neocoloniais do subdesenvolvimento: pobreza estrutural, concentração da propriedade da terra (rural e urbana), elevada inserção informal, precária e sem proteção social no mercado de trabalho.
Revogar o ensino médio neoliberal é imprescindível para reconstruir o Brasil. A educação básica e, em especial, a etapa final do seu percurso formativo, que é o Ensino Médio, precisa ser refundada a partir de amplo e democrático processo participativo que reúna estudantes secundaristas e suas organizações, professoras e professores e suas representações sindicais, e especialistas em educação comprometidos com um projeto popular para o país.
Se queremos uma educação que viabilize a democratização e a desmercantilização da vida, há que construir uma reforma educacional humanista e crítica inspirada na educação libertadora de Paulo Freire.
* Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.