Tudo foi realizado de modo a seguir exatamente o roteiro que estava previsto e prescrito no famoso documento “Ponte para o futuro”, apresentado ainda durante o ano passado pela Fundação Ulysses Guimarães, vinculada ao PMDB. À época, a entidade era – e ainda continua sendo – presidida por Wellington Moreira Franco, que foi nomeado no final de maio pelo chefe de governo para ocupar a Secretaria Executiva do estratégico “Programa de Parcerias de Investimento” (PPI), ligado à Presidência da República.
Vale ressaltar o registro de que esse importante órgão de formulação do peemedebismo já foi presidido pelos seguintes dirigentes do partido ao longo dos últimos 17 anos: i) Renan Calheiros (1999/2001); ii) Moreira Franco (2001/2007); iii) Eliseu Padilha (2007/2015); e iv) Moreira Franco (2015/atualmente). Essa lista dá a relevância do cargo e a capacidade de influenciar a formulação de políticas públicas.
O documento foi apresentado como uma alternativa de programa de governo, ainda durante o primeiro ano do segundo mandato da presidenta Dilma, com o intuito explícito de operar como uma tentativa de qualificação do então vice-presidente junto aos setores mais vinculados ao sistema financeiro e ao grande capital. A estratégia do impeachment estava em marcha e a legitimação do postulante a ocupar o Palácio do Planalto se materializava nas proposições apresentadas ao longo do texto.
Por ali se lançavam as intenções de romper com a política de relações diplomáticas e de comércio exterior do período anterior, escancarando a preferência unilateral de submissão aos interesses dos Estados Unidos. No mesmo material estavam lançadas as bases para a reforma fiscal envolvendo congelamento das despesas de natureza social, com o intuito único de recuperar uma mitológica relação idealizada entre endividamento público e PIB. Além disso, a necessidade de uma reforma previdenciária limitadora das despesas da União se combina à sugestão de desvinculação de tais políticas da sistemática de reajuste do salário mínimo. No documento também podem ser encontradas as referências para uma necessária reforma trabalhista, com retirada de direitos históricos dos trabalhadores, em nome de uma suposta redução do tão criticado quanto desconhecido “custo Brasil”.
Finalmente, à página 18 encontramos a senha para privatização:
(…) “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência”(…).
A primeira etapa do PPI prevê a entrega de 25 projetos de natureza variada ao setor privado. A lista é longa e envolve um conjunto amplo de setores, sendo a grande parte associada a atividades de infraestrutura e logística. O registro tragicômico se deve ao fato de que a maioria dos projetos estava na fila para serem lançados ainda durante a gestão anterior, de quem o governo atual sempre se disse crítico, pretendendo guardar uma distância e uma suposta diferença.
Os projetos estão assim distribuídos:
– aeroportos – 4
– terminais de carga – 2
– rodovias – 2
– ferrovias – 3
– campos de petróleo (vários)
– ativos da Cia Pesquisa de Recursos Minerais (vários)
– empresas de distribuição de energia – 6
– usinas hidroelétricas – 3
– empresas de água e saneamento – 3
Durante a cerimônia não foi adiantada nenhuma informação relativa aos editais nem mesmo a respeito das condições previstas para os processos de privatização. Apenas foram mencionadas as datas estimadas em que o governo pretende apresentar os editais e realizar os leilões. Como os 4 aeroportos já estavam com seus processos bem avançados, as datas previstas para esses leilões caem no primeiro semestre do ano que vem. Todos os demais foram agendados preventivamente para o segundo semestre de 2017 e início de 2018.
A equipe encarregada pelo PPI anunciou que os projetos deverão contar com uma generosa disponibilidade de recursos públicos. Um total estimado em R$ 30 bilhões para financiamento será colocado à disposição dos interessados do capital privado para viabilizar seus empreendimentos. A origem do montante será distribuída entre o BNDES, a CEF e o FI-FGTS. Durante o evento nada foi mencionado a respeito, mas é sabido que tais linhas de financiamento contam com taxas de custeio bastante subvencionadas, fato esse que deve sobrecarregar ainda mais os custos financeiros do Tesouro Nacional. Essa era, aliás, uma das mais pesadas críticas que os atuais integrantes da equipe econômica faziam ao governo anterior.
Por outro lado, nada foi dito tampouco a respeito do detalhamento das regras de realização dos leilões e do estabelecimento de condições mínimas para a aceitação das proposições. Afinal, é mais do que reconhecida a tendência à minimização dos valores dos ativos patrimoniais em momentos de recessão econômica. Como os contratos preveem duração de 30 anos ou mais, aquilo que pode se converter em bom negócio para o empreendedor privado nesse momento tende a se revelar uma péssima opção para o Estado.
A esse respeito vale a pena também observar outra passagem do documento do PMDB. Aqui se observa a intenção de oferecer todo o tipo de vantagem e garantia ao capital privado, seja em termos de condições financeiras para a realização dos investimentos, seja para retirar obstáculos de natureza jurídica, administrativa ou ambiental á realização plena da acumulação de capital. Na verdade, trata-se de uma operação muito delicada, envolvendo claramente um elevado risco para o próprio Estado e para a Nação a médio e longo prazos.
(…) “promover a racionalização dos procedimentos burocráticos e assegurar ampla segurança jurídica para a criação de empresas e para a realização de investimentos, com ênfase nos licenciamentos ambientais que podem ser efetivos sem ser necessariamente complexos e demorados” (…)
Ao que tudo indica, tal operação pretende marcar uma declaração de intenções do chefe do governo, um compromisso mais explícito de sua parte para com a agenda liberal desmontista. O governo Temer passa por um momento de crise em sua base de apoio, onde os setores do capital financeiro não mais parecem dispostos a oferecer todo e qualquer apoio às medidas encaminhadas pelo Executivo. Há uma cobrança cada vez mais generalizada pelos meios de comunicação a respeito de um suposto relaxamento com a questão fiscal, um mui temido descontrole dos gastos orçamentários. Por outro lado, os grupos do conservadorismo mais radical reclamam do pouco empenho do governo e de sua base no Congresso Nacional em avançar as propostas de reforma previdenciária, de teto para o gasto público e da flexibilização trabalhista.
Na verdade, em uma conjuntura marcada pela crise e pela recessão como a atual, não é nada recomendável promover a venda de patrimônio público. Mesmo sob a lógica liberal, é sabido que os ganhos para as finanças públicas são muito reduzidos em razão do rebaixamento patrimonial generalizado que se observa por toda parte. O único argumento plausível seria a ilusão com a tal das “expectativas dos empresários”. Mas esses só fazem mover seu instinto animal caso vislumbrem retornos elevados para seus investimentos. Com a atual política monetária que nos mantém como campeões mundiais absolutos no quesito “ganho financeiro”, o capital só irá para atividade produtiva se contar com mais benesses e generosidades por parte do setor público. E isso significa maiores gastos por parte do Estado ou menores receitas pra o fisco com tais operações de privatização.
Assim, face a uma eventual indagação a respeito de qual a verdadeira razão para transferir esse patrimônio, a única resposta que resta ao dirigente político no atual momento é aquela do tipo janista: “Ora, privatizo porque são públicas”. Pano rápido e ponto final!
*Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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