MÍDIA NINJA
Em meio a uma conversa sobre contracultura, utopias, reminiscências, festivais nos anos 1970, política e entretenimento, a principal preocupação pairou sobre o momento brasileiro e mundial, em algo que o compositor Caetano Veloso definiu como “refluxo contra o que foi conseguido e também consequências radicais imprevisíveis do que foi esboçado”, como a internet. Ele identificou na ofensiva moral contra manifestações artísticas uma manipulação para assustar pessoas mais simples, inocentes.
Por Vitor Nuzzi, na Rede Brasil Atual
“E tem gente que se utiliza disso de uma maneira cínica”, acrescenta. “Muita gente inocente pode estar desconfiada dos artistas, o que já é uma coisa velha na sociedade atrasada.” Ao final de pouco mais de uma hora de debates, Caetano tentará resumir o que vem acontecendo com ele “e pode acontecer com muita gente”: “Eu enfrentei a desilusão do socialismo real. Precisamos enfrentar a desilusão do liberalismo real”.
Ao lado do produtor cultural Claudio Prado, Caetano participou de debate promovido pela Mídia Ninja, na inauguração de sua sede, no mesmo prédio em que funciona a Casa do Baixo Augusta, na região central de São Paulo. O encontro, na noite desta segunda-feira (16), teve como mediadoras a colunista da Mídia Ninja e ativista cultural Antonia Pellegrino e a atriz e a cantora Thalma de Freitas. Segundo Felipe Altenfelder, um dos criadores do coletivo, a sede será “um grande laboratório compartilhado de produção e conteúdo”, em um processo de “reaceleração da nossa relação com São Paulo”, lembrando dos tempos da Casa Fora do Eixo, no bairro do Cambuci.
Interferência ambiciosa
Entre vários temas, a conversa – com 52 mil visualizações no Facebook –se concentrou no conservadorismo político e de comportamento que parece estar predominando no momento atual. Logo no início, Antonia cita frase de Caetano no livro Verdade Tropical, que está sendo relançado com uma edição comemorativa de 20 anos, em que o compositor diz que sua geração “teve o direito de imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do mundo”, um direito que foi vivido como dever. “É um dever que ainda está por se cumprir, um dever infinito. É uma luta permanente. Neste momento, a gente vê que muitas das coisas que foram esboçadas quando a gente era novo e que surgiram no bojo da contracultura vieram à tona na vida política, inclusive na vida política oficial, uma coisa que naquela altura não pareceria natural.”
Esse caráter revolucionário, diz o produtor, vem do fato de que a internet “não tem patente, não foi inventada por uma corporação, não nasce na centralidade da tecnologia” e nem da ciência. “A grande loucura para entender a internet é entender que ela não pertence a ninguém. O sistema não acreditava nem no microcomputador. Isso aqui é uma coisa marxista, é o coquetel molotov do século 21”, afirma, enquanto segurava o seu smartphone, definido como um instrumento de ativismo político. “Imagina se o Trump não quer acabar com a internet. O Temer também.”
“Eu vivo num mundo ainda em que se discute a questão dos direitos autorais, de que vai viver o artista”, responde Caetano, com a percepção de que o Google parece dominar o mundo. “Há coisas que li em revistas liberais, não de esquerda, que dão conta do seguinte: a indústria do entretenimento, ou seja, principalmente música popular e cinema, está mais centralizada do que nunca, menos democratizada do que nunca”, afirma. Até a Netflix? pergunta Claudio. “Olha, os 10 filmes mais vistos do mundo não apenas são americanos, são todos da Disney”, responde, citando a revista inglesa The Economist.
Forças neoconservadoras
Antonia pergunta de onde pode emergir contracultura em um momento paradoxal. Caetano, depois de citar a própria Mídia Ninja e grupos que podem se formar “nas redes, nas ruas, nas casas”, reflete sobre o conservadorismo de direita. “Nós estamos vivendo um período no mundo e no Brasil em que forças neoconservadoras, aquilo que eu chamei de refluxo, estão explicitadas e se apresentando como grupos de atividade clara e definida. Isso não é ruim”, diz. “É bom porque ficam claras as visões de mundo que estão espalhados no seio das sociedades.” Por outro lado, ressalva, há o perigo de “embates que são inúteis e talvez nocivos, desnecessários e que talvez venham a retardar o que é preciso conquistar”.
O problema maior, acredita o compositor, “é que toda essa tensão neste momento no mundo aponta para aquilo que assombra todos nós, aqueles que tememos pela permanência da vida na Terra e da própria Terra”, afirma, destacando a “obsolescência planejada” do capitalismo e o armamento atômico. Ele lamenta que, no Brasil, a desigualdade continue sendo o principal desafio. “Ter capacidade de enfrentar isso é prioritário.”
Cita uma frase “bela, triste, melancólica, terrível, doce, amarga” do abolicionista Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. A frase, do livro Minha Formação, está na letra da canção Noites do Norte. Antonia aproveita lembrar de medida do governo Temer favorável à bancada ruralista mexendo em conceitos do trabalho escravo. “É assustador.”
Cortina de fumaça
Claudio concorda com Caetano e vê “caráter pedagógico” nas “loucuras da direita”. Mas vê uma evolução a caminho: “O adubo que elege o Obama é o Bush”. Donald Trump é algo fora da curva, mas ao mesmo tempo observa, otimista, há muita gente percebendo o que está acontecendo no mundo e no Brasil, com Temer. Segue-se, a pedido de Thalma, uma longa conversa sobre os tempos de exílio em Londres, durante a ditadura: episódios na rua, Gilberto Gil, depressão, festival da Ilha de Wight, festival de Glastonbury (onde ficaria um “aeroporto de UFO”), LSD, barracas roubadas da “cavalaria britânica”, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Glauber Rocha, movimento hippie, Frank Zappa, indústria fonográfica.
A conversa volta para o Brasil de hoje: criminalização das esquerdas, conservadorismo, “pedofilia na arte”. Antonia acredita que, de certa maneira, nessa discussão se deslocou o eixo da ideologia para a moral. “Acho que a luta contra o negócio da Renca (a Reserva Nacional de Cobre e Associados, na floresta amazônica, que Temer tentou abrir para mineradoras) uniu muito mais gente (por quebrar a polarização reinante)”, diz Caetano. “Qualquer pessoa minimamente esclarecida percebe que há uma manipulação do tema para assustar pessoas mais inocentes. A grande maioria dos brasileiros nunca fui a um museu.”
Assim, completa o compositor, muitos podem acreditar em afirmações sobre práticas de pedofilia e zoofilia, como em exposições recentes, mesmo que não haja evidência disso. “Tem grupo que está ganhando dinheiro de gente que simplesmente quer manter a desigualdade, da qual a economia brasileira tem dependido desde que o mundo é mundo e da qual não quer abrir mão.” Nesse sentido, haveria uma ação de direita conservadora para criar uma cortina de fumaça para afastar gente que poderia estar engajada na luta contra a desigualdade no Brasil.
Thalma observa que a questão moral, pautada por “canalhas”, impede o debate sobre temas principais, como a Amazônia, a escravidão. Claudio Prado acredita que se trata de questão eleitoral: “O MBL quer carregar isso até as eleições de 2018 e transformar isso em pauta eleitoral no ano que vem”. É preciso reagir, emenda Caetano. “A saída é responder com clareza. Eu respondo com clareza. Deixar de responder parece que você assina embaixo.”
São muitos fronts de combate, diz Thalma, o que obriga a sair da zona de conforto. “Se a gente não começar a treinar todos os dias, não vai conseguir sair das cordas. É começar a trabalhar a nosso favor de uma maneira estratégica, ter respostas claras, objetivas, diretas e passar aos assuntos que são realmente importantes, de risco pra gente, que estão acontecendo todos os dias. Não vai ter descanso tão cedo.”
Ao mesmo tempo, um “novo mundo” estaria em curso, representado, por exemplo, por bancos comunitários, acrescenta a atriz. Claudio concorda, fala em circulação de moedas alternativas como um primeiro passo para a economia voltar a ser uma questão local: “A ideia de uma economia globalizada é uma burrice fora de tamanho. Isso só provoca desigualdade”, diz, chamando a reforma trabalhista, feita para atender a uma necessidade das indústrias, de regressão à escravidão. “Para mim, a única coisa que justifica hoje a existência do Estado é o Estado garantir a condição mínima de qualquer ser humano.”
Fonte: Rede Brasil Atual