Andrés Piqueras [*]
entrevistado por Salvador López Arnal
Tu dedicas o teu último livro “Aos milhões e milhões de comunistas que deram as suas vidas ao longo do século XX, por um mundo sem exploração. Também aos comunistas que dedicaram a sua vida a isto… e venceram”. Uma reivindicação da tradição comunista… apesar do estalinismo e do Livro negro do comunismo?
Claro. Diria que é a razão de ser do livro, tanto que entendo que o movimento comunista da humanidade tem sido até hoje o expoente máximo da evolução humana na busca de uma possibilidade de vida para a espécie que permita a harmonia entre si e com a natureza. De fato, eventualmente, somente um alto grau de coesão baseado em amplas condições de igualdade poderá permitir-nos a existência como espécie.
O comunismo, como diziam Marx e Engels, não é senão o constante movimento autoemancipador e autoconsciente da humanidade. A evolução não é senão uma progressão não linear da complexidade dos organismos vivos (sociais), daí Engels deduz que uma sociedade capaz de planificar sua economia e sua interação com a natureza, de eliminar as contradições inerentes às classes sociais, é necessariamente mais evoluída e está melhor preparada para manter-se (sendo também mais coesa).
Não vou entrar num debate sobre o panfleto do Livro Negro, fiel a propaganda capitalista desencadeada desde o último quarto do século XX (um projeto sistemático de revisão da história e de amputação da memória histórica, já praticamente seccionada para as novas gerações), empenhadas em fazer-nos crer que “comunismo” e “nazismo” são parte do mesmo (como se o nazismo não fosse uma excreção despótica do capitalismo e como se, para começar, a humanidade houvesse chegado em algum momento ao comunismo). Não vale a pena, em uma entrevista com espaço tão limitado, contestar estes libelos difundidos a partir dos centros de inteligência do sistema.
Era uma pequena provocação entre amigos.
Sim, vou dizer que a matança de comunistas e de pessoas acusadas de sê-lo, somente no século XX, desencadeada pelo capitalismo, quer seja na sua forma fascista, quer seja na sua forma “democrática” (liderada pelos EUA) excede em muito qualquer pesadelo. O recente livro de Vincent Bevins, El método Yakarta, é um dos que começaram a revelar a magnitude desta matança.
Seiscentas páginas, mais de trinta de bibliografia, extensas e interessantes notas de rodapé (que recordam, em algumas ocasiões, as notas não menos extensas e interessantes do Capital), prosa substantiva, nada ligeira, argumentos que exigem cotovelos e concentração… A quem é dirigido o livro?
Àqueles que ainda têm gana de transformar o mundo e além disso atrevem-se a pensar por si mesmos(as) (algo cada vez mais difícil a partir de meios de formação e socialização concebidos para subordinar e idiotizar, nossas vidas submetidas a contínuos bombardeios mediáticos teledirigidos, com seus “whatsapps”, “twitters”, “instagrams”, etc, que nos permitem orgulharmos de ser massa e seguir “blogueiros”, “influencers” e qualquer outra ralé narcotizante semelhante).
Como dizia Labriola, este grande pensador precursor de Gramsci hoje tão esquecido, “pensar é produzir”, implica um exercício quotidiano de reconstrução do mundo e da nossa posição nele, de maneira que possamos manejar melhor nossa vida. Ser comunista implica pensar, no seu sentido mais profundo, “radical”, por fora da cosmovisão dominante, como pensar em ação.
Um conceito que usas com frequência: materialismo. O que é o materialismo do teu ponto de vista? Que há de singular no materialismo de Marx e Engels?
O materialismo busca conhecer as causas mais profundas que movem os processos históricos e que se combinam sempre com a ação humana. Deixa de ver as ideias como categorias abstratas, criadoras do mundo, para entende-las como produtos do mesmo. Marx e Engels nos apresentaram um padrão para entender o mundo e as criações intelectuais humanas, de tal maneira que hoje podemos saber que as formas como nós seres humanos conseguimos a produção e a reprodução da nossa vida trazem nossas possibilidades sociais e ideológicas. Quer dizer, que o nó que contém a maior fonte de explicação social é a produção e a reprodução da vida real.
Isto sim, a dialética enriquece e complementa o materialismo, dado que entende que o concreto só é tal porque a concentração de infinitas determinações, porque seu molde real nunca é permanente, mas sempre está em um contínuo processo de modificação. A condição chave é não entender as partes da sociedade de maneira separada; por isso que para Marx, nunca ocorreu desenvolver uma teoria política nem uma teoria econômica, por exemplo, mas o que fez foi elaborar uma crítica penetrante da “economia política” dada, a qual opôs a análise dialética do todo e de suas partes. Análises da totalidade, do capitalismo, que por sua vez não é senão uma totalidade dentro de outra: a da espécie humana, que por sua vez é uma totalidade dentro de outra, a da vida, que por sua vez é uma totalidade dentro de outra, o Cosmos…
Por sua parte, o material acompanha o dialético enquanto que a matéria precede a ideia, o organismo à consciência, a formação orgânica-química da vida à evolução e ao Homo Sapiens, os processos para conseguir energia aos momentos para se dedicar a arte e a filosofia. Mas uma vez que estes processos cobram a existência, a ideia, a consciência, a filosofia, entram também relação dialética com o todo. Deste modo, como disse Felip a quem cito, o objeto do pensar não é mais a matéria oposta a ideia, mas a unidade dialética da matéria e da ideia na forma de processos de uma totalidade complexa, estruturada e contraditória.
É necessário seguir reivindicando Marx nesta terceira década do século XXI? Quem duvida no dia de hoje, trabalhando e pensando de boa-fé, que Marx e o marxismo, tem sido muito importantes para a compreensão da composição e evolução das sociedades humanas e de suas transformações?
Isto é o que tentei expressar o tempo todo no livro. O marxismo constitui até hoje a principal práxis da emancipação humana que foi levantada pela humanidade, é a pedra angular de uma crítica da economia política capitalista, de toda sua civilização; suporte de uma luta para livrar a humanidade de estar submetida a leis e forças sociais vinculadas a exploração, a dominação e a exclusão que de outra forma nos seriam em grande medida desconhecidas ou camufladas sob as roupagens da fetichização, a mistificação, a ilusão ou a naturalização das coisas que esconde o capitalismo.
Naturalmente, o marxismo implica um novo projeto civilizatório em que essas dinâmicas de exploração e domínio da espécie humana entre si estejam erradicadas. Por isso é ao mesmo tempo, e irrenunciavelmente, um método científico, uma projeção e um compromisso político e uma compreensão do mundo. Em suma, um croquis que nos ajuda a por ele caminhar para poder transformá-lo. O qual implica, indefectivelmente, uma conduta ou uma síntese de práxis (precisamente a que os “neomarxismos” querem suprimir).
A respeito da segunda pergunta…
A respeito da segunda pergunta, poderia te dizer, com as palavras de Borón, que igual o que ocorreu com Copérnico na astronomia, a revolução teórica de Marx lançou ao mar o saber convencional que havia prevalecido durante séculos. Marx, e ressalto Engels, desencadearam na história e nas ciências sociais, uma revolução teórica tão retumbante e transcendente como a de Copérnico ou de Darwin em outros campos. “E assim como hoje se converteu em uma chacota mundial, quem reivindicasse a concepção geocêntrica de Ptolomeu, não teria melhor sorte (deveria ter, corrijo Borón aqui) quem repreende alguém acusando-o de ser “marxista”.
Apoio-me no teu “sublinho Engels”. Por que falamos tanto de Marx (o que está muito bem) e tão pouco de Engels (o que é muito ruim, e além disso é injusto)? Marx foi o grande diretor da orquestra e Engels um interessante e fiel primeiro violino?
Felizmente, depois de décadas de denegrimento de Engels, sobretudo por parte dos “neo” e “pós” marxismos (no livro explico porque), está criando força um movimento de recuperação de sua enorme figura dentro do marxismo (aproveitando o recente bicentenário de seu natalício).
El Viejo Topo publicou recentemente, um grande trabalho de González Varela, Friedrich Engels antes de Marx, onde se põe no lugar a importância teórica, política e revolucionária deste colosso que se empenhou em ser o “segundo violino” para dar lugar a Marx (como ele mesmo escreveu a Mehring, “Se encontro algo a discordar é que você me atribui mais crédito do que mereço, ainda que tenha em conta tudo o que, com o tempo, possivelmente poderia ter descoberto por mim mesmo, com seu coup d’oeil mais rápido, e sua visão mais ampla, descobriu muito mais rapidamente. Quando se tem a sorte de trabalhar durante quarenta anos com um homem como Marx, geralmente não se lhe reconhece em vida o que se crê merecer. Se morre o grande homem, ao menor facilmente se super-estima, e este parece ser justamente o meu caso na atualidade; a história terminará por pôr as coisas no seu lugar”.
Engels tem uma dimensão impressionante, e foi o precursor e inspirador de Marx em diferentes campos (o da luta pela igualdade entre mulheres e homens, entre outros). De fato, como é mais sabido, é quem inicia Marx no materialismo e quem abre a via que este materialismo se dialetizasse. E sem dúvidas, parte de sua grandeza está em que ele mesmo se põe de lado para permitir que fosse seu amigo quem ocupasse um primeiro plano, porque apesar de que fosse Engels que o guiasse em várias ocasiões, havia descoberto em Marx, um potencial que o superava intelectualmente e, como bom revolucionário, decide colocar-se em segundo plano.
“O capitalismo está em fase terminal”. Que indícios te levam a esta conclusão? À primeira vista não é o que parece. Para alguns, que não são poucos, segue mais vivo que nunca apesar de suas crises e tropeços.
As razões principais que venho indicando e desenvolvendo em meus trabalhos, nos últimos doze anos pelo menos, alguns dos quais você cita na introdução. Também temos expostas nas elaborações coletivas da OIC. Eu as resumo esquematicamente.
Neste momento histórico o capitalismo viola crescentemente os dois principais elementos que constituem sua razão de ser: a conversão do dinheiro em capital e a conversão de seres humanos em força de trabalho assalariada (inclusão real do trabalho ao capital), ou dito de outra maneira, em uma mercadoria que realiza o trabalho abstrato.
Temos visto alguns dos problemas aos quais enfrenta o neoliberalismo financeirizado como modelo de crescimento que se tem tentado por em prática em escala quase planetária. Com a degeneração deste modelo, o capitalismo em si mesmo enfrenta uma série de contradições cada vez mais intransponíveis:
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1. Entre acumulação e regulação (forma em que se expressa hoje a contradição clássica entre desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção).
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2. Entre valorização e realização (dada que a escassa recuperação da taxa de lucro na produção se faz a custa de uma exacerbada depressão da demanda).
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3. Entre valor fictício gerado pela estrutura financeira e especulativa mundial e a mais valia real gerada, que responde a um estancamento da rentabilidade (o que denotou uma recuperação parcial das taxas de lucro sem acumulação proporcional do capital)
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4. Entre estancamento e endividamento, o qual como fator imprescindível do crescimento atual não tem contrapartida, nem produtiva, nem energética para possibilitar que uma acumulação hipotética futura possa satisfazer as dívidas do presente.
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5. Entre o valor capitalista e a riqueza social e natural, pois aquele depende cada vez mais da destruição destas.
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6. Entre o desenvolvimento das forças produtivas (a automatização) e as bases de sustentação do capitalismo: valor, trabalho assalariado, mais valia, lucro…, que resultam crescentemente deterioradas.