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sábado, 14 dezembro, 2024

A crise do liberalismo

Liberais e neocons, cartoon.

Prabhat Patnaik [*]

A vitória de Trump nas eleições presidenciais dos EUA está em conformidade com um padrão atualmente observável em todo o mundo, nomeadamente um colapso do centro liberal e um crescimento do apoio à esquerda ou à extrema direita, os neofascistas, em situações em que a esquerda está ausente ou é fraca. Isto foi visível em França, onde o partido de Macron perdeu substancialmente e a ascensão do neofascismo só foi impedida por uma aliança de esquerda formada há pressa; isto também é evidente na nossa própria vizinhança, no Sri Lanka, onde um candidato de esquerda emergiu como presidente através de um aumento súbito e substancial da sua quota de votos, derrotando o presidente em exercício que pertencia ao centro liberal. Este colapso omnipresente do centro liberal, indicativo de uma crise do liberalismo, é o fenómeno mais marcante dos tempos contemporâneos; as suas raízes residem no facto de o liberalismo político continuar hoje ligado ao neoliberalismo económico, que entrou ele próprio em crise.

A filosofia política do liberalismo clássico, que forneceu a base para a praxis política liberal, foi sustentada por uma longa tradição de pensamento económico burguês, que se estendia tanto à economia política clássica como à economia neo-clássica. Ambas as correntes acreditavam, apesar de diferenças significativas entre si, nas virtudes do mercado livre, cujas algemas devidas à interferência do Estado tinham de ser removidas com carácter prioritário.

A vacuidade de toda esta linha de raciocínio foi exposta pela Primeira Guerra Mundial (cujas raízes económicas desmentiram todas as afirmações relativas às virtudes do mercado) e, de forma ainda mais flagrante, pela Grande Depressão. Keynes demonstrou que o capitalismo do laissez faire, deixando de lado “breves períodos de excitação”, mantinha sistematicamente um grande número de trabalhadores em situação de desemprego involuntário, que o mercado livre, longe de ser a instituição ideal que se dizia ser, era tão imperfeito que expunha o capitalismo ao perigo de ser derrubado pela maré crescente do socialismo. Mas sendo um liberal, e apreensivo com a ameaça socialista se o sistema não fosse retificado, propôs uma nova versão do liberalismo (a que chamou “novo liberalismo”) que se caracterizaria por uma intervenção perene do Estado para impulsionar a procura agregada e conseguir um elevado nível de emprego, ao invés de a evitar, que fora a marca do liberalismo clássico.

No entanto, o keynesianismo nunca foi aceite pelo capital financeiro. O próprio Keynes ficou intrigado com este facto e atribuiu-o à falta de compreensão da sua teoria. A verdadeira causa, porém, era mais profunda, no receio de que qualquer intervenção sistemática do Estado deslegitimasse o papel social dos capitalistas, especialmente daquela secção de capitalistas que se dedicava à esfera das finanças e a quem Keynes havia chamado “investidores sem função”; este é um receio persistente e que se mantém até hoje. O keynesianismo só se tornou política de Estado depois da guerra, uma vez que a guerra enfraqueceu o capital financeiro e levou à ascensão da social-democracia, a qual abraçou o keynesianismo.

O boom do pós-guerra nos países capitalistas avançados assistiu a uma consolidação do capital financeiro e a uma expansão da sua dimensão, a ponto de se tornar cada vez mais internacional. Ao mesmo tempo, o capitalismo do pós-guerra, ainda que complementado pela intervenção do Estado, entrou num tipo diferente de crise, não uma crise causada por uma procura agregada inadequada, mas uma crise que consistiu num surto inflacionista que ocorreu no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Esta crise teve origem nos dois fenómenos que caracterizaram o capitalismo do pós-guerra:   o elevado nível de emprego, que diminuiu o exército de reserva de mão-de-obra e eliminou a sua “influência estabilizadora” numa economia capitalista, e a descolonização, que eliminou o mecanismo de compressão da procura do terceiro mundo para manter baixos os preços dos produtos primários. Permitiu ao novo capital financeiro internacional desacreditar o regime de gestão keynesiana da procura (com a ajuda e a cumplicidade de um renascimento da economia burguesa apologética que repropagava as virtudes do mercado livre) e promover regimes económicos neoliberais em todo o lado. Uma vez que, na nova situação, manter a “confiança dos investidores” (ou seja, evitar a fuga de capitais cedendo às exigências do capital financeiro internacional) era a principal preocupação da política de Estado, o “novo liberalismo” de Keynes teve de ser posto de parte; o centro liberal, grande parte da social-democracia e mesmo alguns sectores da esquerda alinharam-se pelo neoliberalismo.

No entanto, o neoliberalismo trouxe imenso sofrimento à classe trabalhadora dos países capitalistas avançados e um sofrimento ainda maior aos trabalhadores do terceiro mundo, mesmo antes de entrar em crise; e o sofrimento aumentou muito quando entrou em crise. A taxa de crescimento da economia mundial abrandou significativamente na era neoliberal em comparação com o período dirigista; e abrandou ainda mais no período após 2008, quando rebentou a última das bolhas de preços dos ativos nos EUA. Esta crise, resultado de uma procura agregada inadequada causada pelo aumento maciço da desigualdade de rendimentos sob o neoliberalismo (que invariavelmente produz uma tendência para a sobreprodução), só havia sido adiada pelas bolhas de preços dos cativos dos EUA que mantiveram a procura agregada mundial através de um efeito de riqueza; a crise manifestou-se com o rebentamento da bolha. Não pode ser ultrapassada dentro dos limites do neoliberalismo, porque o neoliberalismo elimina as possibilidades de gestão keynesiana da procura; e uma nova bolha, que poderia atenuar um pouco a sua intensidade, é excluída pela própria experiência das anteriores, que tornaram as pessoas mais circunspectas. De facto, a política monetária destinada a estimular uma nova bolha só conseguiu estimular a inflação através do aumento das margens de lucro, mesmo num contexto de estagnação da procura, o que só veio agravar ainda mais a crise.

Em suma, o liberalismo contemporâneo, comprometido como está com a ordem neoliberal, pouco faz, e de facto pouco pode fazer, para aliviar o sofrimento dos povos. Não é de surpreender que as pessoas se afastem dele em direção a outras formações políticas à direita e à esquerda. A direita também pouco pode fazer para aliviar as angústias do povo:   a sua retórica pré-eleitoral é invariavelmente divergente da sua política pós-eleitoral, que é neoliberal, como o demonstrou Meloni em Itália, e como o candidato a primeiro-ministro de Marine Le Pen, Jordan Bardella, começava a demonstrar ainda antes das eleições, através de uma mudança de posição do seu partido face ao capital financeiro internacional. Mas a direita lança uma retórica contra o “outro”, tipicamente um grupo religioso ou étnico minoritário, ou imigrantes, para produzir uma aparência de algum tipo de ativismo face à crise, enquanto o centro liberal mal reconhece a existência da crise. O capital monopolista, nesta situação, desloca o seu apoio para a direita, ou para os neo-fascistas, a fim de manter a sua hegemonia face à crise, o que é outra razão para o enfraquecimento do centro liberal e para a crise do liberalismo.

Trump, pode-se argumentar, tem uma agenda económica, de proteger a economia dos EUA contra as importações não só da China, mas também da União Europeia; não pode ser acusado de apenas aderir ao velho guião neoliberal como Meloni. Mas há vários pontos que devem ser notados aqui:   primeiro, mesmo quando se afasta do comércio liberal para o protecionismo, Trump nunca mencionou a imposição de restrições ao livre fluxo transfronteiriço de capital financeiro internacional, de modo que o cerne do arranjo neoliberal permanece incontestado por ele, mesmo na sua retórica pré-eleitoral. Em segundo lugar, o protecionismo não é uma ideia original de Trump; já havia começado sob Obama. Além disso, o protecionismo, por si só, não revitalizaria a economia dos EUA; pode, na melhor das hipóteses, incentivar a produção interna em detrimento das importações de economias concorrentes, mas não pode, por si só, expandir a dimensão do mercado interno, para o que é essencial uma expansão da despesa do Estado, financiada quer através de um défice orçamental, quer através de impostos sobre os ricos. Mas com a sua propensão para a redução dos impostos sobre as empresas, revelada na sua última presidência, Trump não recorrerá a um aumento das despesas do Estado, de modo que, na melhor das hipóteses, após um pico temporário causado por uma maior proteção, a economia dos EUA voltará a cair na estagnação e na crise.

A vitória de Trump era, portanto, esperada, pois está em conformidade com o fenómeno globalmente observado de um colapso do centro liberal, mas mostra que as pessoas não perceberam a sua agenda económica, de adesão aos princípios básicos do neoliberalismo (para além da introdução de um maior protecionismo que pode, na melhor das hipóteses, produzir um aumento temporário de empregos, enquanto agrava a situação inflacionária devido à ausência de importações baratas).

O contexto internacional é, portanto, favorável à ascensão da esquerda, a única que pode pôr fim à crise atual, pondo fim ao neoliberalismo, e a única que pode pôr fim às guerras em curso (e pelas quais o centro liberal é responsável, assunto que será discutido em ocasião posterior). Mas a esquerda tem de estar preparada para esta tarefa.

20/Novembro/2024

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2024/1117_pd/crisis-liberalism

Este artigo encontra-se em resistir.info

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