A negligência de Bolsonaro talvez tenha começado a lhe custar parte do apoio evangélico.
O agravamento da pandemia do Covid-19 no Brasil contribuiu para o maior isolamento político do presidente Jair Bolsonaro desde sua posse. Graças às suas atitudes irresponsáveis e seus desastrados pronunciamentos oficiais – chamando a epidemia de “gripezinha”, desqualificando as medidas de contenção do vírus e até mesmo expondo centenas de pessoas ao risco de contaminação com seus “rolêzinhos da morte” na capital federal – o presidente perdeu importantes aliados, se distanciou de outros, deu munição de sobra para os ataques da oposição e até despertou rumores sobre seu possível afastamento, por renúncia ou impeachment.
Aparentemente, são pequenas as chances de que Bolsonaro deixe de ocupar a presidência a curto prazo. Mas o último embate na segunda-feira (6) entre ele e o ministro da saúde, Luiz Mandetta – que apoiado pelos militares se manteve no cargo contra a vontade expressa do presidente – deixou claro que a última palavra sobre as medidas contra a epidemia já não são suas, fortalecendo os recentes boatos de que Bolsonaro estaria perdendo poder nos bastidores de seu próprio governo.
Nas últimas semanas, o presidente perdeu apoio de setores da direita, de parte da cúpula militar e de alguns de seus ministros mais importantes, como Paulo Guedes e Sérgio Moro, que defenderam publicamente a quarentena. Até mesmo os evangélicos pentecostais e neopentecostais – uma de suas bases de apoio mais fiéis – tomaram distância de sua estratégia suicida, com algumas poucas exceções. Um grande indício disso é a ministra Damares Alves, a mais representativa evangélica do governo, sempre na linha de frente da defesa de Bolsonaro, cujo silêncio a respeito da epidemia até agora é bem revelador.
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Enquanto o presidente atacava as medidas de contenção do vírus, a maioria das grandes denominações recuava e deixava de promover cultos em suas igrejas e passaram a transmiti-los pela internet, mantendo os fiéis em casa. Apesar do alinhamento político com Bolsonaro, os pastores midiáticos mantiveram o bom senso e não aderiram à cruzada negacionista de seu líder. Nos corredores do Judiciário, no entanto, Bolsonaro mantinha a batalha sob pressão de alguns membros da bancada evangélica.
No último dia 27 de março, o Ministério Público Federal havia entrado com um pedido na justiça para proibir o presidente de adotar medidas contrárias ao isolamento social, conforme orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Dois dias depois, Bolsonaro disse que haveria uma “guerra de liminares”. Logo na sequência, enquanto fazia um pronunciamento fingindo recuar, a Advocacia Geral da União (AGU) recorreu ao TRF-2, e o desembargador Reis Friede (que também é professor do Estado Maior da Aeronáutica e do Exército, faz apologia do golpe de 1964 e acha que Bolsonaro vai salvar o país) derrubou a liminar que mantinha igrejas e casas lotéricas fechadas e decidiu que, por promoverem “atividades essenciais” à população, ambas deveriam permanecer abertas. Na prática, os cultos estavam liberados desde então. Mesmo assim, a maioria das grandes igrejas manteve a orientação de não realizá-los, contrariando o presidente. No dia 2 de abril, a Justiça Federal de Brasília concedeu mais uma liminar proibindo os cultos.
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Entre os pastores mais populares, os únicos que insistiram em continuar a atacar com veemência as medidas de quarentena da população foram Edir Macedo, Silas Malafaia e o deputado federal Marco Feliciano. Edir Macedo já dissera em vídeo do Youtube que a epidemia era obra do Satanás, que ninguém deveria respeitar a quarentena e que os verdadeiros cristãos não deveriam temer o vírus. Mas depois da péssima repercussão, apagou o vídeo das redes.
Em um primeiro momento, muitos pastores de grandes denominações resistiram ao fechamento das igrejas por temerem o golpe financeiro que sofreriam, deixando de arrecadar milhões em dízimos. Mas, nesse caso, os interesses econômicos camuflados de fundamentalismo cristão esbarraram em limites objetivos: o vírus não faz distinção de religião, o risco de contágio é alto e a justiça, até agora, agiu para evitar uma tragédia.
Talvez a negligência de Bolsonaro tenha começado a lhe custar parte do apoio evangélico. Ainda é cedo para tirar conclusões, mas uma pesquisa sobre a opinião dos brasileiros divulgada pelo jornal “Valor Econômico” (27/03) traz um elemento importante. Na pergunta sobre como o entrevistado avalia a atuação do presidente diante da crise, de acordo com o perfil religioso, os evangélicos responderam assim: 37% aprovam Bolsonaro (bem como 24% dos católicos e 22% de “outros”), 35% o reprovam e 28% não sabem avaliar. Se lembrarmos que 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro para presidente, constata-se uma queda considerável de apoio. Mas e os 28% que “não sabem avaliar”? A pesquisa não responde. Outro dado talvez permita avançar na reflexão: quando perguntados sobre como avaliam a atuação dos governadores, nada menos que 70% dos evangélicos disseram aprová-los. Ora, se os governadores são justamente os que se contrapuseram às atitudes irresponsáveis do presidente, uma parte desses 28% de “indecisos” podem estar se distanciando de Bolsonaro.
Nos primeiros dias do mês de abril, o presidente tentou reaglutinar a população evangélica em torno de si. Com a ajuda de aliados evangélicos, convocou um “jejum pela nação” no domingo (5), cujos objetivos eram demonstrar apoio a ele e pedir a Deus que acabasse com a epidemia. A eficácia do jejum contra o Covid-19 é cientificamente nula, mas a aposta era se fortalecer politicamente.
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Na convocação ao jejum, quase todas as lideranças das maiores igrejas do país – que se mantiveram discretos nas últimas semanas – voltaram a se manifestar em favor do presidente, em vídeos que circularam nas redes sociais. O jejum é um ritual cristão importante e ninguém precisa sair de casa. Desse modo, poderiam manter o protocolo de saúde e garantir o apoio político a Bolsonaro. Foi uma manobra astuta, pois apelou ao fato de que, nesse momento de desespero, muita gente vai buscar refúgio em sua fé. E isso é mais do que legítimo.
No entanto, pesquisas nas redes sociais realizadas pelo Instituto Tricontinental constataram que a adesão ao jejum não foi significativa. Comparada a muitas outras campanhas lançadas por Bolsonaro e seus apoiadores, essa teve um baixo nível de interações. No Twitter, por exemplo, a hashtag #JejumPeloBrasil teve em torno de 10% da média de outras ações bolsonaristas recentes. No Google, as buscas por “jejum” tiveram aumento de 5 vezes em relação aos dias normais, enquanto “panelaço”, por exemplo, teve aumento de até 50 vezes na semana passada. Os sites da direita que apoiam Bolsonaro não deram grande destaque ao evento. Tudo indica que nem mesmo os bots bolsonaristas foram acionados dessa vez. Contudo, também é verdade que, nas classes populares, muita gente não é ativa nas redes sociais. Vai ser preciso esperar os próximos capítulos para saber ao certo se Bolsonaro foi capaz, ou não, de recuperar parte do capital político que perdeu nas últimas semanas.
Contradições do fundamentalismo: uma esperança em meio ao caos
A pandemia tem fragilizado as instituições mais caras ao capitalismo globalizado, mas será que ela também pode afetar o fundamentalismo evangélico? Em entrevista ao Tricontinental, Ricardo Gondim, teólogo e pastor da Igreja Betesda, aponta as imagens simbólicas do pastor R.R. Soares em seus recentes programas de TV: exige o dízimo dos fiéis e ensina uma oração para a cura do vírus, enquanto usa máscara. Evidenciam-se as contradições.
Em contrapartida, para além de discursos, muitas igrejas comprometidas com a vida do povo, embora fechadas para cultos, mantêm seu empenho no trabalho social. A Igreja Betesda (São Paulo), por exemplo, cedeu seu amplo templo ao município por tempo indeterminado para que seja um espaço de saúde e serviço social aos mais vulnerabilizados. Segundo Gondim, esse é o momento que os progressistas do campo evangélico podem colocar com força seu discurso.
Para o teólogo, um novo mundo irá nascer. Ele acredita que a pandemia terá gravíssimas consequências econômicas e sociais e que, portanto, será um nascimento muito dolorido, cabendo à Igreja cumprir seu verdadeiro papel na construção desse novo mundo. No campo popular, não é mais possível ignorar os 30% de brasileiras e brasileiros evangélicos, em especial as mulheres negras e periféricas, tão fortemente presentes nestas igrejas.
Ecoando o pensamento de Nancy Cardoso, pastora metodista e assessora da Comissão Pastoral da Terra, o Brasil que queremos não será possível sem as classes populares, cuja grande maioria encontra refúgio na religião. É muito provável que, após a suspensão das medidas de isolamento social, haja um aumento da procura pelas igrejas. Estaremos empobrecidos pela crise econômica que vai atingir em cheio o país e, certamente, enfrentaremos complicações em nossa saúde mental pelas duras condições de vida às quais a epidemia vem nos submetendo. Precisaremos, portanto, de muita organização para disputar as narrativas em curso a fim de construirmos uma sociedade radicalmente solidária, onde todos se sintam verdadeiramente acolhidos.
*Marco Fernandes, Delana Corazza e Angélica Tostes. Publicado originalmente pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, instituição internacional, orientada pelos movimentos populares, focada em estimular o debate intelectual para o serviço das aspirações do povo.