José Bessa Freire
A veces sigo a mi sombra / a veces viene detrás, / pobrecita si me muero / con quién va a andar.
(Alfredo Zitarrosa. Mi sombra. 1959)
O coveiro jogou uma pá cheia de barro sobre a tampa do caixão, produzindo um ruído seco e sinistro, que doeu lá dentro, no fundo do coração da Zilda. Chorosa, ela depositou flores na sepultura da mãe e, movendo os lábios como se estivesse rezando, murmurou:
– Eu vou me suicidar!
Falou tão baixinho, que ninguém ouviu. Rezou em seguida um pai-nosso, uma ave-maria, um glória-ao-pai e dez jaculatórias. Depois, virou-se para o lado e, olhando para sua colega amazonense – a única amiga que tinha – repetiu, com voz trêmula, mas decidida:
– Rosa, eu vou me suicidar!
Rosa esbugalhou os olhos, porque compreendeu imediatamente que aquilo não era um sentimento passageiro, uma promessa, uma ameaça, uma chantagem, nem mesmo o anúncio de um projeto de vida, digo, de morte. Era um pedido desesperado de socorro, de quem estava se afogando e implorava:
– Pelo amor de Deus, me convence de que a vida vale a pena.
Zilda se debatia no meio do rio, sem saber nadar, e pedia que Rosa, da terra, lhe atirasse uma bóia salvadora.
A tampa e o balaio
No entanto, ficava difícil encontrar um salva-vidas para ela, porque Zilda tinha razões de sobra para querer morrer. Ela não era – digamos assim – uma mulher bonita, atraente ou inteligente. Nasceu corcundinha, com um mondrongo no lado direito da costa. Para disfarçar, usava de forma permanente, no lado esquerdo, uma espécie de almofada, presa por um cinto, que corrigia o desnível existente entre os dois lados, mas dava-lhe um ar de sacristão da catedral de Notre Dame.
Tinha outros problemas menores: seus dentes superiores apontavam pra fora da boca e sofria de mau hálito. Nunca namorou, nunca foi beijada, nunca ouviu um operário da construção civil gritar à sua passagem: “gostosona!”. Era a imagem acabada da solidão.
Com mais de trinta anos permanecia solteira. Não tinha irmão, primo, sobrinho, parente, amigos, enfim, alguém com quem compartilhar dores e alegrias. Agora, a morte da mãe, a deixava definitivamente só, inapelavelmente só, ela e sua cacunda, ela e sua tv preto-e-branco, ela e Rosa, o único elo que ainda a ligava ao mundo.
Rosa de Viterbo Bessa Martins, amazonense, conheceu Zilda Borges Fleury, carioca, em 1950, no Rio de Janeiro, na sede central do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários, o antigo IAPC, onde ambas trabalhavam como auxiliar de enfermagem. Viúva recente, Rosa ainda guardava luto do marido, quando decidiu fechar o casarão da rua Lima Bacuri, em Manaus. Mudou-se para o Rio, em busca de tratamento para uma filha paralítica. O Rio era, então, a capital do Brasil e, se não curava a poliomielite, pelo menos oferecia recursos médicos mais sofisticados que Manaus.
Zilda Fleury foi a primeira pessoa que Rosa Bessa conheceu no Rio. Prestativa, ajudou sua colega de trabalho a procurar apartamento, encontrando um, justamente no mesmo prédio sombrio em que residia, na rua da Glória. Vizinhas, separadas apenas por dois lances de escada, iam juntas para a repartição e voltavam juntas, no mesmo bonde. Zilda seguia Rosa como a sombra do cantor uruguaio Alfredo Zitarrosa na vidala – gênero folclórico argentino:
Às vezes sigo minha sombra,
às vezes é ela que vem atrás.
Pobrezinha se eu morro,
com quem ela vai andar?
Permutaram favores – uma pedia pó de café, a outra um pouco de açúcar. Trocaram confidências – Zilda confessou que tinha nojo do seu próprio pai, um delegado de polícia já falecido, pois quando ela era criança, de noite, escondido da mãe, ele a molestava, alisando sua cacunda “com sexualidade”. Rosa contou, detalhadamente, como havia ficado grávida cinco vezes. Essa troca de favores e de confidências foi criando laços de amizade e de cumplicidade entre as duas, que ficaram ainda mais sólidos com a morte da mãe de Zilda, em 1954. Rosa e Zilda se completavam como a tampa e o balaio.
A troca de calcinhas
Mas Zilda era portadora de algumas esquisitices, que chocavam Rosa. Tinha, por exemplo, a mania de trocar várias vezes de calcinha no mesmo dia. Lavava pessoalmente suas peças íntimas. Não deixava ninguém tocar nelas. Era ela mesma quem lavava, ensaboando-as com obsessão.
Essa mania começou depois que viu Valéria, a filha do porteiro Ernani, ser atropelada por um carro, em frente ao Palácio Guanabara, permanecendo longo tempo com a saia levantada, mostrando a calcinha suja, com um pequeno buraco no centro.
– Se um dia eu for atropelada, pelo menos não morrerei envergonhada de minhas calcinhas – pensava com obsessão.
Um dos seus raros prazeres, era cantar os jingles veiculados pela televisão nos anos sessenta. Preferia os que faziam propaganda de refrigerantes: coca-cola, pepsi, grapete, mineirinho, crush. Com sua voz gasguita, costumava entoar:
– Beba laraaanja, faaaanta, saborosa, faaaanta, que gostosa é a vida, eu, você e fanta, fanta, faaaanta!”
Mas a vida só era gostosa na televisão. Fora dela, era um horror. Depois da morte da mãe, nos fins de semana, Zilda entrava em depressão aguda. Aos domingos, chovesse ou fizesse sol, ela descia religiosamente do décimo andar, onde morava, para o nono andar, entrava no apartamento de Rosa e repetia a mesma frase de sempre, contendo um pedido de socorro:
– Rosa, eu vou me suicidar!
No início, Rosa ficava angustiada. Segurava a mão da amiga com carinho e fazia um discurso entusiasmado em defesa da vida, pingando espalhafatosamente vários pontos de exclamação, entre uma frase e outra, numa retórica retumbante:
– O quê que é isso, Zilda! Deixa de besteira! A vida é bela, Zilda! Vem aqui pra janela, vem! Olha o céu azul, o sol, o mar, a praia, tudo isso é um hino da criação! Deus fez tudo isso pra gente usufruir, Zilda! Alegria, Zilda!!!. O sol traz vitamina para o corpo!!! O mar tem sal e iodo, que são bons pra saúde!!! Vamos à praia, Zilda!!!.
O piloto automático
Todos os domingos, o mesmo ritual. Depois da conversa, lá iam as duas, carregando uma barraca de praia em direção às areias do Flamengo. Zilda, arrastada por Rosa, vestia sempre uma blusa, já que não podia usar maiô por causa da cacunda.
– Zilda, esta blusa está linda, onde foi que você comprou? – perguntava Rosa, toda animada, fingindo admiração.
Os anos passavam e o ritual não mudava. Todo domingo, era mais fácil o papa ficar sem celebrar missa do que Zilda deixar de ameaçar o mundo com seu suicídio. Mas da mesma forma que a missa acaba perdendo seu significado original, depois de cair na rotina, as ameaças de Zilda, com a repetição, também se banalizavam. Ela passou a dizer “Rosa, eu vou me suicidar”, como quem dá “bom dia”. Às vezes, sequer escondia um sorriso. Rosa, por seu lado, ligava o piloto automático e também respondia:
– Deixa-de- besteira-Zilda-olha-o-céu, olha-o-sol, olha-o-mar, olha-a-praia edicetra e tal.
E iam, rindo, para a praia. Rosa e sua sombra, às vezes na frente, às vezes atrás. Durante vinte e cinco anos, a história se reproduziu dominicalmente com pontualidade britânica ou como o tique-taque de um relógio suíço. Com o tempo, Rosa deixou de acreditar que o “vou me suicidar” era um pedido de socorro, e passou a encará-lo como “charminho” de sua amiga, uma forma de saudação.
Até que um dia, em maio de 1979, vários acontecimentos ocorridos simultâneamente perturbaram a vida de Rosa: a prisão de seu filho José Mário por vadiagem; a morte de seu compadre, o senador amazonense João Bosco Ramos de Lima; os assédios repetidos de seu cunhado tarado Nelson Cunha; o agravamento da doença de Inês, sua filha paralítica; a privada que entupiu, jorrando merda por todos os lados…Aí, chega Zilda, toda sorridente e diz:
– Rosa, eu vou me suicidar!!!
Rosa não aguentou e descompensou, gritando:
– Porra, Zilda, há vinte e cinco anos que eu ouço essa xaropada. Quer te suicidar, vai. Te joga do teu apartamento, mas me deixa em paz.
Matei minha amiga
Zilda fez um beicinho e retornou ao seu apartamento pela escada, sem esperar o elevador. Encontrou Eunice, a faxineira, mulher do porteiro, limpando a cozinha. “Vou lavar minhas calcinhas”, disse, entrando para a área de serviço, onde estava o tanque. Completou, enigmática:
– Eunice, aconteça o que acontecer, não esquece de dizer ao Basinho que eu nunca deixei de amá-lo.
Eram 12h:53m. A faxineira, sem entender o que significava aquilo, começou a fritar o fígado para o almoço, Zilda adorava fígado acebolado. De repente, um estrondo forte como um estampido – PAM! “Eu não ouvi direito por causa do chiado do azeite na frigideira” declarou depois Eunice à polícia. No boletim de ocorrência, foi registrado o suicídio de Zilda Borges Fleury, que se atirou pela área de serviço. Seu corpo, cheirando a fígado e cebola, perfurou o telhado da garagem e caiu em cima do carro do síndico.
Rosa ficou inconsolável:
– Meu Deus, eu matei a Zilda, minha sombra amiga.
No entanto, não foi difícil convencê-la do contrário. Argumentei:
– Tia Rosa, raciocine comigo. Se a Zilda se suicidou por causa de suas palavras, então é porque ela sobreviveu esse tempo todo por causa de suas palavras. Portanto, a senhora, na verdade, deu uma sobrevida de vinte e cinco anos pra ela.
Dessa forma, tia Rosa descobriu, estupefata, que ela efetivamente havia sido uma espécie de vacina, responsável por prolongar a vida de Zilda.
A missa de sétimo dia, na igreja de Santa Luzia, no Castelo, contou com a presença da tia Rosa e de meu querido primo Sebastião – o Basinho – hoje gerente aposentado do Banco do Brasil, por quem Zilda nutriu uma paixão secreta, não correspondida, mas de uma intensidade vulcânica.
Basinho, que nasceu em Itacoatiara, pode testemunhar que tudo o que aqui foi escrito é expressão da verdade, somente da verdade, nada mais do que a verdade. A missa foi celebrada na intenção de mais de trinta pessoas, cujos nomes foram anunciados em ordem alfabética. Zilda foi a última a ser chamada. Na morte, como na vida e na escola, veio sempre na rabiola, no final da linha, já que nunca teve a sorte de ter uma colega chamada Zulmira.
P.S – Lula já governou 522 dias e nada de homologar a Terra Indigena Raposa Serra do Sol conforme prometeu durante a campanha eleitoral.