De repente, tornou-se de bom tom enquadrar as hipóteses no campo das teorias conspiratórias
Desde o impeachment, depois de mais de uma década de jornalismo de esgoto, parte da mídia decidiu retomar o modelo do liberal britânico, liberal nos costumes, conservador na economia, e dominando a temática das altas discussões europeias. E, numa reedição do pacto políticos dos anos 90, abrindo algum espaço para colunistas progressistas, mas que vêem o Brasil através das lentes britânicas.
Mostre indignação contida com mortes de lideranças camponesas e indígenas, assim como faria um liberal britânico. Mas não ouse defender o MST e formas de organização dos camponeses. Critique a concentração de renda, mas não ouse defender políticas fiscais ou econômicas que, reduzindo a concentração de renda, colidam com a ideologia de mercado. Ataque a especulação urbana, mas evite condenar a prisão de lideranças do MTSTC. Alerte para o fim do emprego, mas não defenda sindicatos e outras formas de organização dos trabalhadores que, segundo todos os estudos dos progressistas do norte, seriam fundamentais para reduzir o nível de corrosão dos direitos sociais básicos. Tudo isso ficou demodée.
Principalmente, esqueça a polarização política do período anterior, no qual a mídia ocupou papel de destaque como arauto da quebra dos princípios constitucionais e legais. Quando quiser lembrar a polarização, estabeleça um paralelismo qualquer da direita com a esquerda, como se a polarização anterior fosse de responsabilidade similar das duas, e a mídia apenas um espectador passivo.
Um dos temas preferidos para mostrar como somos britânicos modernos, antenados com os novos tempos, tem sido ironizar alguns dos temas que estavam no centro da polarização no período anterior. É o caso da influência norte-americana na Lava Jato e no impeachment, a partir do interesse no pré-sal.
De repente, tornou-se de bom tom enquadrar as hipóteses no campo das teorias conspiratórias. Quer ser um progressista moderno? Quando ouvir falar de influência americana na Lava Jato, faça um muxoxo, um ar blasé e decrete: “É ridículo”.
Décadas de trabalhos de grandes especialistas, como Moniz Bandeira ou José Luiz Fiori, décadas de estudos da geopolítica de segurança dos Estados Unidos, tudo é jogado no balaio das “teorias conspiratórias” e tratados com desdém, porque são temas “velhos”.
É o caso de um artigo recente, obra de um competente colunista de temas internacionais, em que aconselha que “para evitar o ridículo, a esquerda nacionalista terá de inventar outro motivo além do petróleo para explicar o intervencionismo norte-americano”.
Qual o motivo para tanta certeza, além da necessidade óbvia se distanciar da esquerda nacionalista? Ora, o advento da indústria do xisto americana. Segundo o colunista, o xisto decretou o fim da era do petróleo, logo a hipótese da intervenção americana – ocorrida antes da era do xisto! – seria uma tese ridícula.
Se é para malhar a “esquerda nacionalista”, poderia aproveitar o tema pré-sal para críticas consistentes contra o abandono das políticas de biocombustíveis, depois das descobertas do pré-sal. Mas ignorar retroativamente a importância do pré-sal e a vulnerabilidades energética norte-americana nos 2.010 é demais.
Em março de 2011, Dilma recebeu o presidente americano Barack Obama para um diálogo estratégico sobre energia. Assinado por ambos, o Diálogo Estratégico sobre Política Energética e a criação do Grupo Binacional de Trabalho Energético tinha como ponto central a próxima transformação do Brasil em um dos maiores produtores de petróleo do mundo, especialmente depois das descobertas do pré-sal.
Em março de 2009, durante visita a São Paulo, o Secretário de Estado Assistente para o Hemisfério Ocidental, Thomas Shannon, já declarava: “Estamos bastante interessados no petróleo e no gás brasileiro… é óbvio que quando o Brasil começar a explorar suas reservas e conhecer sua magnitude… nós estaremos muito interessados em continuar as conversações”.
A possibilidade de um fornecedor estável serviria para amenizar os riscos políticos sempre presentes no Oriente Médio e na Venezuela. Nem se entrou a fundo na questão do etanol, devido às tarifas americanas sobre a importação de etanol brasileiro.
Em 2008, data das primeiras descobertas do pré-sal, o xisto nem era realidade nos Estados Unidos. Mas a dependência do petróleo importado era assunto de tal relevância que levou o presidente Barack Obama a centrar toda a política pública, de recuperação da economia americana, no desenvolvimento de alternativas para o petróleo importado. Em 2013, depois da implantação do programa de Barack Obama, ainda havia dúvidas sobre o potencial do xisto, especialmente devido aos custos e problemas ambientais.
Mais que isso, os Estados Unidos permanecem grandes importadores de petróleo pesado. A Agência Internacional de Energia estima que, em 2030, as importações brutas de petróleo pesado pelos EUA sejam apenas um terço mais baixas do que em 2010.
Ou seja, no período mais candente de atuação da Lava Jato e das manifestações de rua – estimuladas por grupos diretamente formados nas escolas dos irmãos Kock, petroleiros -, o pré-sal estava no centro das atenções mundiais e, particularmente do Departamento de Estado norte-americano, um país cujo grosso das importações vinham de duas regiões conturbadas: Venezuela e Oriente Médio.
Ridículo é não explicar a razão de o pré-sal, sendo tão desinteressante, ter transformado a Petrobras em uma das empresas mais valiosas do planeta. Sua destruição não se deve a nenhum erro de visão estratégica, mas à sua utilização como barganha política, pelo governo Lula, sua desmoralização internacional pela Lava Jato e, principalmente, pela certeza de que uma das primeiras medidas do pós-impeachment seria revogar a Lei da Partilha, e abortar as estratégias de crescimento da Petrobras.
Aliás, sugere-se a todos os bravos colunistas, que acham que conspiração da CIA é conto da Carochinha, que expliquem as espionagens da NSA, os alertas de Snowden, a parceria entre Departamento de Justiça e Lava Jato, os telegramas da Wikileaks sobre mudanças na lei do petróleo.
A situação do xisto evoluiu de lá para cá. Mas ainda hoje, sequer a Agência Internacional de Energia tem segurança sobre os rumos da indústria, em um mundo carente de energia, por um lado, e sujeito a restrições ambientais, por outro. Não há sequer garantias de que o notável crescimento da produção de xisto americano se mantenha.
O xisto é ameaçado por questão sociais e ambientais, com o nível de queima na Bacia de Permiano, as dificuldades de acesso a financiamentos acessíveis por parte de operadores.
A própria ONU já alertou para os possíveis efeitos da exploração de xisto para as metas ambientais.
Os volumes crescentes de comércio de combustíveis e os riscos geopolíticos crescentes acendem luz amarela sobre o fornecimento de petróleo. Até 2040, diz a Agência Internacional de Energia, quase 26 mb / d de petróleo passarão pelo Estreito de Malaca no cenário das políticas declaradas e cerca de 20 mb / d pelo Estreito de Ormuz. Qualquer impedimento às remessas pode restringir materialmente os mercados, segundo a Agência Internacional de Energia.
Em pleno 2019, é uma situação tão instável, que levou a AIE a traçar dois cenários totalmente distintos, um com base no quadro atual, outro na hipótese de acirramento das restrições ambientais. No primeiro caso, há um crescimento contínuo na demanda até pelo menos 2040.
Em todos os cenários, há o crescimento da população urbana da África, promovendo aumento no consumo global de energia.
Por tudo isso, diz a AIE,
“O uso de óleo em carros de passeio atinge o pico no final da década de 2020 e, durante a década de 2030, a demanda aumenta em apenas 0,1 mb / d em média a cada ano. (Mas) não há um pico definitivo no uso de petróleo em geral, pois há aumentos contínuos em petroquímicos, caminhões e nos setores de transporte e aviação”.
Há enormes alterações na civilização do petróleo, sim. Decretar o fim da era do petróleo e a inutilidade das descobertas do pré-sal, a partir de uma leve menção ao xisto, é um livre-pensar sem sentido. E um desrespeito a todos os estudiosos que se dedicam ao tema.
Há que se pesar melhor as palavras e os conceitos.